segunda-feira, 10 de agosto de 2015


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Tramou lentamente, entre a lida com as feras, o campo indócil ao arado e o contato estrangeiro com os amantes, a costura de seu amuleto. Primeiro houve a época das cheias, os dias de flutuação, exercício das palafitas, fundações levíssimas ante afogamentos. Dessa era reteve o sal e a umidade, o apagamento das palavras imutáveis, mas reteve sobretudo o aviso de que seu rosto refletido na superfície, ora turva ora cintilante, era um convite ao mergulho sem retorno. Duvidar dos espelhamentos, sabe-los jogos de refração mutante, foi sua primeira sorte. Depois houve os dias de colheita: a terra em estado de volúpia, alegres desperdícios, a embriaguez e a intimidade com a tormenta. Chegou mostrando-lhe que lhe importava menos os exotismos, as simetrias, os corpos poderosos. Sustentava uma feroz fidelidade ao múltiplo e também ao raro, à vida como ela vem e especialmente à criação de mundos. Não se deixava tomar pelos corpos crentes em si mesmos, jamais traiu as incertezas. Soube que ele era o segundo presente da fortuna. Com ele vieram os jogos de azar, as tardes de silêncio, a distância renovadamente calculada e esquecida. Aprendeu a ser fiel à beleza em marcha das coisas que se sabem provisórias. Dividiam cama e mesa e o que persistia era a certeza de estar só. Foi uma solidão toda permeável a visitas que acrescentou ao amuleto. O terceiro tempo foi o presente, onde a própria pele coincidia com os campos inundados e férteis, o arado impotente e atroz, as feras e o amores nômades. Também descobriu-se coincidente aos solos inertes,  à vingança pelo crime nunca cometido e a todos os crimes desde sempre impunes. Ao amuleto acrescentou todas as emergências jamais previstas. Nunca deixou de ser assombrada por aquilo mesmo que a protege. 

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