Como desviar do que é crucial? Agora mesmo enquanto fujo da sua cama de solteiro, da sua seriedade matutina repleta de rigores e algumas gentilezas, existem pessoas que estão acordando, outras já cometeram atos precisos, algumas estão com as pernas flexionadas dando o impulso para mergulhar. Há ainda as que temem terem colocado tudo a perder. Passeio pela Avenida Central confiando na previsão do tempo, alheia às violências que cometo e aos milagres que opero. Espero já tem tempo pelo 454. Por enquanto todos os prédios se equilibram sobre suas fundações, os parafusos dos automóveis parecem bem apertados, nenhum cão se soltou de sua coleira, nenhum movimento tectônico abala o contínuo do asfalto. Por enquanto nenhum verão, nenhum pranto imponderado, nenhuma memória que chegue rasgando o corpo quieto do presente. Mas não me engano, sei que nesse momento os planetas orbitam atraídos por uma força descomunal, fagulhas revolucionárias provocam atritos entre os desiguais, o amor mais incondicional do mundo fraqueja e se transforma. Não me engano, um rei é decapitado no sul da ásia, uma mulher escapa de seu algoz na instante do ataque e outra sequer percebe o que lhe aconteceu, uma criança empreende seus primeiros passos seguidos de um já conhecido tombo. Ou talvez eu me engane. Fico apreensiva ao som de uma sirene que passa costurando os veículos estáticos no engarrafamento às dez da manhã na Avenida Central. Fico alegre lembrando de um carinho tão espantoso quanto esvaziado de sentido. Os corpos ocupam as ruas com suas leis arbitrárias, as táticas de deslocamento se revelam insuficientes. Consulto mais uma vez o horário, falta muito pouco agora. Preencho, cuidadosamente, cada um dos meus espantos de delicado sentido enquanto espero o 454. Dias depois, rente a um muro alto, dia, em plano sequência: caminho lentamente, passo por um homem que lembra um amor antigo, passo pela banca de jornais, passo por um pequeno alagamento, passo por uma mulher que lê um livro sem a capa e então me ocorre que só chega diante do crucial à custa de um laborioso e imponderável desvio.
domingo, 30 de agosto de 2015
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