domingo, 23 de agosto de 2015




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Você mete medo, tem uns olhos de avião levantando voo em meio à tempestade. Aquela corrida desmesurada seguida do milagre absoluto. Tem uns olhos que sustêm a ordem dos dias mais imprevisíveis: olhos de manter o sol queimando o topo das cabeças, de fazer o vento se enfiar nas frestas entre os edifícios, de conservar a mais descabida montanha de pé. Tem uns olhos de incêndio num campo a quilômetros daqui onde ninguém vai ver, mas cujo calor nos atinge sem remédio. Você tem cravado no meio do peito tudo que é amplo e inabitado, os vãos entre os pilotis, o oco dos cofres, o irredutível espaço entre dois corpos que se tocam. Todo mundo sabe que você debocha das leis da física e dos princípios sobrenaturais. Que embaralha tabelas e gabaritos, que se lava em poça d’água e que dorme até às três da tarde indiferente à plenitude da luz. Tem os dedos longos de arrombar fechaduras e roçar o inexiste. Uns braços de atravessar mares e canais, de abraçar tudo que é vago e indigente, de transformar o que se ergue indivisível em poeira e estilhaço. Quando você vem chegando os bichos que andam com a barriga no chão sentem a terra estremecer. As aves dão indício de uma nova corrente de ar. Sua selvageria tem a lógica e o efeito de uma engrenagem, você colapsa todos os sistemas de medida, desmorona tudo que se sustenta sob o signo da coincidência. De você o que advém é milagroso e imperfeito como a vida. Sua presença, em tudo justa no mundo, dá a ver que a justiça sobrevive no rigor da diferença. Você mete muito medo, você é a prova de que só há verdade enquanto houver dessemelhança.  

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