terça-feira, 1 de outubro de 2013

é o pulso de um coração de aço 
força solene
contra as horas de mudez 

é tempo de torpores
o horizonte escuro feito a mágoa
e tudo que palpita nesse ritmo infalível

meu pensamento se debate em apneias 
meço meu corpo com simetrias e fulgores
minha imaginação dorme, mansa, numa cama fria

solidão ruidosa
e o ar da sala permanece
arranhando de espasmos

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Limpeza





Sou uma mulher dissolvida pelo ardor da minha bílis e pela água sanitária. É limpando a casa que me dou conta como é bonita a coragem para investigar o obscuro. Arredo sofás, invado frestas, vasculho antigas gavetas. O resultado é bom, mas o processo doi. Nada mais aviltante que encontrar uma barata ressacada atrás da geladeira, ou um emaranhado de estranhas teias no fundo de um móvel.  Ao menos,  o ralo, que é o coração da casa,  está limpo. Manter a alma em estado puro é mantê-la bruta, por isso o obstinado trabalho na casa, as faxinas. É uma ternura que recorre, uma insuspeita inquietude. É como um exorcismo. Já que nunca tive a honra de ser exorcizada no altar de Deus, o que seria uma glória, e contento-me com discretos aleluias inclinados na direção de Afonso, para quem cubro meu cabelo com mantilhas e a quem endereço meus suspiros durante o Magnificat.  Na casa de Deus celebro a silenciosa sedução, na minha casa solto os demônios ajoelhada sobre um chão ensaboado. Fico imaginando uma madame perversa me fazendo ameaças: limpe esse tapete de banheiro a ponto de poder dormir com ele em sua própria cama. Tenho calafrios. Não posso com coisa suja na cama. Menos homens, esses eu recebo bem. Estremeço com a fome do mendigo endereçada ao meu corpo, mas isso é segredo.  Assim como quando deixo a cozinha toda imunda só para ter um indizível júbilo em limpa-la. É a comunhão com as partes baixas da existência, comer do pão místico da imundice, digerir o indigesto. Peço aos céus apenas que eu não fique metida demais, com ares de santa, só por ter encontrado essa via para a salvação. Mulher com jeito de santa é um saco, eu gosto de ter um ar meio tapado, como quem estivesse sempre um pouco sem ar, ofegando. Chegando em casa, quando não tem ninguém, me permito respirar mais fundo, franzir o cenho, ler alguma metafísica.  Meu plano para conquistar Afonso é que um dia ele venha aqui em casa e veja como sou caprichosa, como transformo qualquer craca pesada em cristal reluzente. Quando ele elogiar meu capricho, eu me declaro: sabe, Afonso, a alma de um homem é  um canto escuro. Vês como sei lidar com o pó e a gordura? Pois não sabes o que posso fazer de ti. Eu sou uma mulher humilde, tapada, mas tenho cuidados que sobram. Será que não queres desfrutar do meu asseio e ser uma só carne, na direção da eternidade, em mim? Eu aposto que ele topa, quem não?   

domingo, 8 de setembro de 2013

Ana

Lembrava da pele de Ana e enganava os dedos, contornando a espessura do vidro, as ranhuras do estofado. Terminava o primeiro cigarro do dia, falhando na promessa de parar e sucumbindo ao pensamento nela de quem eu fugia com tanta obstinação. Encarava o rosto de Ana enquanto olhava as ondulações que ladeavam meu caminho até Minas Gerais. Ana e seus olhos-pergunta, sua pele sem traço de perfume qualquer, pele toda corpo. Era preciso que Ana ficasse para trás e eu seguisse adiante. Ela e o apartamento em Botafogo, a São Clemente inundando, a sinfonia de buzinas e Ana lamentando a morte de alguma de suas plantas, a reação de algum aluno, o desfecho de um filme. Tudo doía nela, menos eu.

 Lembro daquela tarde em que chovia, Ana se lamentava e eu coloquei minhas mãos pesadas no seu ombro abaixando seu vestido até a cintura sem dizer nada. Não era desejo propriamente dito, era vontade de derrubar, desafiar aquele corpo. Era vontade que Ana se doesse em mim. Lembro da respiração pesada, quase um lamento. O corpo que cedeu ao chão. Seus olhos opaco e os membros pesando feito pedra. A São Clemente naufragava e eu ia junto. Na tentativa de ter aquela mulher, perdia tudo.

Ela dormia um sono pesado quando eu ia até a janela fumar um cigarro. E tinha lembrança daquela primeira vez quando eu a vi sambando desajeitada, aquela dança que prendeu meus olhos por ser estranha e divertida. Encontrei com ela na saída do banheiro. O rosto vermelho, o cabelo suado grudando no pescoço, o vestido fino de malha preta marcando um corpo magro e pequeno. Não foi exatamente fascínio, foi um desejo simples e imediato de estar ao lado dela. Eu disse que era bonito ver ela dançar, ela abriu um sorriso largo e branco  e me convidou para uma cachaça no balcão. 

Nessa primeira noite o corpo de Ana era a possibilidade e tudo, na noite do naufrágio era uma ilha  e hoje, a direção oposta do caminho tortuoso por onde eu seguia.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Enteléquia

Os grandes óculos de grau, sem eles, a nudez. Engraçado  me sentir carnal por estar com o rosto despido, como se estivesse cometendo o maior dos impudores. Míope e vulgar, poucas combinações são mais providenciais. Tomada dessa estranha luxúria eu saía correndo, desviando da chuva, demorando um segundo embaixo das marquises tomando fôlego para outro mergulho na rua-correnteza. Um vira-lata começou a correr atrás de mim, abanando o rabo molhado.  Importava chegar a tempo para vê-lo e o eclipse nos seus olhos. A cada mil anos o sol se escondia atrás dos olhos dele e ele sentia minha falta, por coincidência, nesse exato dia ele estava a dois quarteirões daqui. Se cansaria de me esperar e voltaria de táxi para a Ilha do Governador? Não, espera, deixa eu sentir de novo o toque das tuas mãos, uma sobre a outra, enquanto eu coloco a minha, clandestina, entre elas. Não vai embora sem soprar teu silêncio de montanha antiga em mim. Ele dança com a leveza da chuva que me atrasa e persiste, em cada lugar por onde passou, como a memória de uma cidade em ruínas. Eu era Pompeia coberta de pó e lava depois da sua passagem. Fazia apenas um mês que eu o conhecia, mas o tempo já se desdobrava confuso, entre atrasos e aléns. Eu corria, mais feliz que o vira-lata que tinha acabado de me adotar. Estremecia de frio, de alegria, de saudade e de uma insuflada liberdade. Calma, só mais cinco minutos e eu já to aí, molhada como o cãozinho que me segue, só que menos altiva. Todo vira-lata é altivo, porque é rei da sua vadiagem. E eu só sou uma mulher míope molhada correndo. E nada parecia mais honesto que correr na chuva atrás dele que eu conhecia como se conhece o escuro, que é sempre o mesmo, e que compactua com todos os espantos. Ontem li no Livro de Hidelgarda uma menção à noção aristotélica do ser-em-ato, a enteléquia, ser-sendo, ser-correndo-na-chuva. Aristotélica, nadadora, vadia e ofegante, assim cheguei até você.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Tempo de bala



Um escuro que escapa pelos dedos. Dentro de mim, esse rumor, inquietude pelas frestas, o ar suspenso em frágeis fundações. Leio o livro de Hildegarda, um apócrifo que só eu conheço e tenho em mãos. Ela fala sobre o amor dos homens, sobre o abraço à terra e essa náusea que nos acompanha diante do obscuro de nós mesmos. Faz sete dias que me vejo sozinha em casa. Mateus saiu e não mandou recado qualquer. Não sinto desespero ou revolta, mas experimento uma sensação de vazio que desconhecia. Mateus já foi o nome dos meus dias e o preenchimento dos sulcos de cada manhã. Agora o céu é branco, o chão da casa acumula fina camada de pó, as portas se debatem junto a mim. Tomo banhos demorados, deixo a pele enrugar, experimento os calores e os gelados de cada superfície com meu corpo nu. Estendida sobre a mesa de jantar, olhando o teto como quem se deixaria tragar por uma noite iluminada. Faz sete dias que a casa parece ter uma vida própria, toda vez que busco organizá-la algum caos se revela em formação. Tempestades domésticas se anunciam, qualquer gaveta é o olho do furacão. Por vezes vou até a rua e fico dando voltas em torno do prédio. A calma é sentir o chão sob os pés, a dor é não haver ninguém que possa compreender minha deriva circular. Estou sozinha e isso me enlouquece e me enche de desconhecido ânimo.  Meu corpo se estende e encolhe sem que eu queira, tem vida própria. Caminha com as pernas mínimas, repousa com imensos braços e um peito denso, repleto de palpitações. E meus olhos se estreitam diante da luz, enquanto minha boca dilata de sede e de tanto silêncio retido. No tempo de Mateus, meu corpo era moldado para ser o avesso do dele e nos encaixávamos durante o dia todo. Mateus em silêncio e eu solta numa maré de palavras, depois Mateus de pé e eu ao rés do chão. Ele quieto e eu eufórica, ele cuidando da terra e eu trocando a lâmpada, ele querendo a salvação e eu me perdendo a cada instante. Todos nossos contraditórios eram os passos de uma dança. Meu pé na direção das pernas dele e ele dando um passo atrás. Agora Mateus está longe do meu conhecimento e eu mais próxima que nunca da minha própria atenção. O próximo passo é aprender a inventá-lo só.   

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Em Teu nome


Em Tua direção lançarei meus braços, ávidos pelo antigo susto. Que Teus dedos toquem meus olhos e atendam sua fervura obscena. Que pelo peso do Teu amor, eu possa provar dos sabores do mundo com a pele, a língua e os olhos nus. Que as superfícies de todas as coisas umedeçam meu olhar e, feito amante embriagado, verta todo pranto na direção da vida como um gozo lento e abundante. Que meu coração oscile no ritmo do Teu, e juntos dancemos, corpo a corpo, apartados pela distância da carne e unidos pela graça do absurdo.  Que meu corpo comungue e meu espírito palpite, que minha carne honre a vida em cada um de seus ímpetos e minha alma seja  plena da capacidade de hesitar. Que Em teu nome minha dúvida seja cada vez mais fervorosa, mais apaixonada: a dúvida como uma imensa fé na vida em sua possibilidade de oscilar. E que, pela Tua graça, se possa saber que por Ti não há julgamento a se fazer, restrição a se impor. Que Tu és o nome de todas as possibilidades. Que em Teu nome se descubra que em Teu nome não se pode enumerar mandamentos, nem absolver faltas, nem acumular riquezas. Que Tu és o nome do mistério, que és o próprio indivisível entre todos os corpos, que em Ti há a proximidade inelutável entre a fome e a fartura, o calor e o profundo frio, o imenso vazio e o cheio mais inebriado. Que Tu és a encarnação etérea, a afirmação divergente, o imperativo oscilante. E na Tua direção faço uma prece, não de joelhos, mas com os dois pés bem fincados na terra e o peito aberto para o mundo, e peço que todo aquele que vive o sagrado como uma moralidade possa receber o sopro da contradição e perceba que o desejo não é reto, e  que a curva, a questão, a inquietude nos dignificam. Que a moralidade é a Tua morte e o lugar onde fazes silêncio. E que Tua voz só é ouvida em cada gesto de amor pela existência. O paradoxo repousa em Tua fronte, e a dúvida pende de Tua grandiosa mão, feita Tua insígnia mais poderosa. Tua benção não é a exceção dos dias, mas o próprio tempo condensado em calma. Na noturna solidão de um corpo que não sabe do sentido do existir, mas existe: aí estás. A dor cotidiana de uma vida cansada, mas permeada de deslumbre: este é Teu reino. Que em Teu nome, se descubra que o milagre não é o impossível tornado fato, mas o próprio absurdo da vida em suas numerosas faces. Que em Teu nome se descubra que Teu nome é o nome da Vida e que não há nada mais grandioso que a terra molhada, a ferida, duas peles que se tocam, a chuva que precipita, o engano, a risada na hora equivocada. Que em Teu nome aqueles que vivem  esperando a recompensa pelo bem-viver possam compreender, ainda que por um lampejo, que a vida já é o bem maior. E que morrer não é ir ao teu encontro para ser julgado, mas dissolver-se no sorriso que ostentas através do tempos sem saber do que ris. Que o peso da ideia de não ser julgado nos seja possível, que não nos ofenda o fato que não há ninguém nos medindo, nos avaliando, que estamos sós, entre os corpos, operando na ética de nossos desejos. Que a invenção é nossa magia,  e a incompreensão nosso amante maior. E que, no fim, Tu  não explicarás o sentido de tanta dor, de tanto  susto, por que o  gozo nos assusta mais que a injúria, por que há sempre essa fome revolvendo nossa carne, e nos dirá, olhando em nossos olhos, sempre sorrindo, o enunciado e a solução de todo mistério: viveste.     

quarta-feira, 22 de maio de 2013



Lição das águas

Lentamente diante de ti. Para que suspeites. Minhas feições: ontem abandonadas, hoje cultivadas por ardis, e em breve despidas de qualquer cuidado. Te mostro quem sou. Dessa vez de dentro para fora, eu que sou toda fora, que me estendo pelas superfícies e me camuflo na textura de todos os toques.  Olha que não sustento mais a fala, nem as tramas da memória, nem os nomes próprios, e os retratos votivos de tantas mulheres a quem dedico minhas preces:  te coloco solitário em meu altar. E depois, desfeita de elevações,  me disponho terrena ao teu conhecimento. Toca-me. Repara que sou densa e que tenho uma finitude em cada começo. Que tudo que me excede também finda.  Me ponho diante do teu olho, que é espelho e  lâmina, te dando os meus próprios olhos contra a claridade, te dando minha cegueira, minha incorreção. E depois noto que teus olhos já não me refletem e nem me cortam, mas me dissolvem, me deformam. E brinco, desajeitada, de ter a forma de todas as coisas. Tenho o peso da espuma. Depois sou maciça feito cobre. Afundo. E me ergo. Anêmona, âncora, baú. Sou onde cabe qualquer vida. Depois ocupo o espaço de um templo. E diminuo, peixe amedrontado, conhecendo a morte antes de entender o que é nascer. E reparo que teus olhos me dão a existência sem um rosto, e eu me dou todas as faces, grito no escuro, fico sutil rente ao pânico, sou iluminada por uma ternura. Aqui, nesse escuro onde dou ao teu olho a justa medida do olhar, me faço abundante e informe. Úmida,  lama, tesouro. 














terça-feira, 7 de maio de 2013




(fotos de Paul Outerbridge)


"Oh cabelo antes preso p´lo penteado justo!
Oh olhos algo inquietantemente ousados!
Oh simples macho corpo feminino"


(...)

quinta-feira, 25 de abril de 2013


Rosto coberto de avesso















Uma névoa quente

Num impulso, cortei minha franja com uma tesoura de cozinha. Vejo que fica torta e muito curta e me dá vontade de rir. Lembro-me da transgressão infantil de trancar-me no banheiro com uma tesoura e cortar livremente meu cabelo sem nenhum  critério, para o susto e apreensão da minha mãe. Uma pequena experiência libertadora de quem assume o corpo como seu, de quem faz um pequeno uso secreto e indevido de si. Semanas seguiam com a minha mãe passando gel para tentar domar a franja feia, usando grampos rentes à minha testa e me lembrando diariamente do gesto inconsequente. Aos vinte e três anos, sem precisar me esconder para deixar minha franja curta e torta, com o chuveiro quente ligado vejo minha imagem ficando cada vez mais embaçada no espelho e passo algum tempo diante da figura enevoada, encarando camadas do meu rosto antigo-atual se tornando borrão.
Banheiro de um hotel no Canadá. Ligo o chuveiro para entrar no banho e vejo, novamente, minha figura tornando-se mancha. Com a franja já reta e um pouco maior, mas ainda atingida pela fragilidade assumida pelo meu reflexo, sinto desejo de registrar o processo do meu corpo se encarando num espelho, primeiro nítido no espelho frio, depois esfumaçado pela superfície umedecida. Quem fotografa é a minha mãe, essa que agora me ajuda nesses pequenos manejos  incomuns  de mim mesma. Ela se posiciona ao meu lado, desligamos e religamos o chuveiro  quente e ela fotografa. O resultado são imagens monótonas, que quase não diferem. A passagem do tempo só é notada por pequenas alterações da minha postura e pelo espelho que, depois de muitos quadros, se torna completamente embaçado. Um rosto coberto de névoa quente, enquanto o corpo aguarda, permanece, do lado de cá.


Um rosto coberto de avesso

Passeando pela lojinha de um museu, encontro um livro de anatomia humana. Não resisto às imagens estranhas, belas, cortantes. Cresci em torno de livros como esses e mesmo de coisas como estas, já que – ainda criança – costumava ajudar minha mãe em sessões de macroscopia que consistiam em transcrever frases ditadas por ela enquanto ela fatiava órgãos a serem analisados. Ela provavelmente estava apenas querendo me ensinar o valor e a importância do trabalho. Mas o ato de escrever enquanto minha mãe manuseava vísceras deve ter me atingido de alguma maneira que não entendo, pois até hoje me interessa fazer uso dessas imagens de anatomia num contexto ficcional, inventivo. As imagens que mais me chamam a atenção no livro são parte de uma sequência de homens que abrem a própria barriga com as mãos para mostrar o interior. De algum modo, sinto que repito esse gesto. Quando produzo, sei que quero mostrar algum avesso, alguma entranha. Mas sinto que meu gesto difere, já que não é a entranha como um fim que me interessa, mas a invenção que posso fazer dela, a máscara que posso criar com essa matéria. A minha entranha não é uma verdade, mas uma criação. Esse é meu rosto coberto de avesso.


Cortes

Releio os textos que produzi nos primeiros meses de 2012, parte da disciplina de Processos Artísticos Contemporâneos.  A pergunta é: como torna-los um trabalho visual, uma proposição plástica? Os próprios textos contêm muitas chaves e pistas para essa elaboração. Volto-me, uma vez mais, para o papel. Imprimo os textos e separo trechos que me parecem, por alguma razão, mais indispensáveis que outros.  Num processo lento e difícil, colo – frase a frase- num caderno vermelho. Poderia escrever a mão, sinto que seria mais fácil e rápido – mas uso dessa técnica de sequestradores e de admiradores secretos, de criar uma caligrafia com letras já formadas.  Ainda à maneira de sequestradores e amantes platônicos sinto que há, nesse gesto, uma emoção que se revela numa tentativa torta de impessoalidade, de anonimato. A paixão revelada no tremular de uma mão que se implica, mais do nunca, no próprio gesto com o qual pretendia se anular. Mostrar-me através de uma tentativa de esconderijo, essa jogada que tantas vezes recorre.


Insisto

São gestos que me desafiam. Recortar colar recortar colar, não sabia que era tão difícil manusear a cola. Depois passo madrugadas desenhando pontos e outra cobrindo o branco papel de tinta preta. Encontro a forma desse trabalho através de procedimentos que me fazem querer desistir deles próprios, de exaustivos que são. Mas insisto. Quero descobrir uma paciência que não tenho, quero inventar uma habilidade que não possuo. Quero ser mais forte que eu.


Astronomias

Injustificável é essa minha atração por objetos de estudar o cosmos. Vou ao sebo e compro livros de astronomia em língua estranha. Passeio em planetários. Penso em comprar um telescópio e aponta-lo ao teto concreto do meu quarto. Existe algo nesse projeto insano de compreender os astros que me encanta. Um esforço em torno do imensurável. Uma técnica para não cegar, um modo de encarar espectros de astros, que dizem que nem estão mais lá. É o rigor diante do infinito que me cativa. São  as tentativa sinceras e precárias que me encantam. Entender a mim mesma, entender o que faço, apontar o astrolábio na minha direção, parece ser o mesmo indispensável e dispendioso esforço.


Gelo liso

Um pequeno aforismo de Nietzsche que , pra mim, fala do processo de criar. Criação, esse passeio num terreno de quedas, onde só se pode estar quem sabe criar o imprevisível do corpo, a dança desvairada dos afetos.  

02.08.2012


quinta-feira, 18 de abril de 2013







A exposição de Eduardo Berliner, presente na Sala A Contemporânea do CCBB-RJ no período de 26 de fevereiro a 31 de março, é composta de pinturas sobre tela, pinturas e desenhos sobre papel, objetos escultóricos, vídeos e fotografia. Em suas figurações, o artista apresenta um mundo sem contornos definidos, feito de súbitos lampejos e iminentes dissoluções.  Utiliza-se da tinta borrando limites, transbordando margens. Seus traços invadem, abruptamente, campos de cor. Com uma paleta que tende para tons escuros, constrói céus sombrios, cenários úmidos e focos de fogo. Quando o calor se mostra em cor é no vermelho do sangue ou das flores  que surgem sobre a estranha aridez que as fecunda.  A presença da figura humana recorre, envolta de paisagem bucólica ou na arquitetura da cidade.  Os atritos entre corpo e mundo são feitos de perfurações, capturas, dilaceramentos, pancadas. Pinceladas furiosas constroem a pele como uma massa de ocres, compondo corpos desmembrados e membros sem corpos, que anunciam presenças irreveladas. Nos contatos  entre  corpos, a violência não é óbvia, mostra-se aguda e pungente. Há também ternuras que persistem, sujeitos que testemunham a fragilidade de outros e, assim, também a própria finitude.



As figurações de Berliner apontam a uma intimidade estrangeira com o mundo. Do banal emerge o inesperado. Do conhecido, o susto. Nesse sentido, o artista persegue a gramática dos sonhos: o mais alheio produzido pelo profundamente pessoal.  O artista introduz nas suas imagens esse teor indesvendável do onírico, aquilo que, tendo parentesco com o conhecido, está fora da simbolização, estranho à linguagem e suas normativas. A arquitetura da cidade,  promovedora da inação, do tédio e da preguiça, pode ser o cenário da angústia e do fascínio. O estranho, em Berliner, faz corte com qualquer homogeneidade apaziguada. O artista coloca em questão o desenho de observação, apresentando-o como uma experiência de nascimento: o que nasce sempre tem a potência de perturbar o mundo. O imaginário da infância, que recorre em suas obras, pode ser tomado como um duplo do seu próprio gesto: a infância, assim como a obra, abre um rasgo que faz vacilar as estruturas das instituições. A verdade da produção poética e a verdade da infância são alheias às  medidas do saber constituído, são potentes de um modo diverso ao do poder como se conhece. Ambas chegam ao mundo com exigências de hospitalidade inconformadas com as medidas estabelecidas.  Eduardo Berliner trabalha a superfície como enigma, figura o reconhecível que produz mistério, peles que se dilaceram em aparatos protéticos e a infância como campo de tensões em que o surgimento do diverso acolhe o mundo e seus nascimentos súbitos.


* uma versão editada desse texto foi publicada na revista Dasartes n. 27 
** imagens: reprodução de obras de Eduardo Berliner 

segunda-feira, 25 de março de 2013



Prestou devoção aos detalhes, abriu frestas de um embrulho, manteve as portas inertes. Todo dia essa luta, a permanência dos corpos sólidos e o temporal incoerente que molha as plantas já regadas, o  chão dissimulado, os furores de dentro. Dentro, uma batida forte. Marcação de um compasso antigo no seu peito e uma voz  ao longe que diz: é preciso acreditar na diferença, a fidelidade é uma muralha que nos protege de querer compreender  qualquer coisa por inteiro. Ela se sentava para dançar, só os dedos correndo pelas superfícies. Experimentava texturas, às vezes gritava. Seus sustos eram sem razão. Ela inteira dentro de uma atmosfera forjada: a luz do dia não dizia nada sobre seu corpo, quem era, ao sol do meio dia? E depois, às três? Invejou os seres guiados pela luminosidade, o tropismo das plantas, o delírio mortal das mariposas. Que a luz fosse esse sentido, essa sedução. Mas fechava-se em um escuro sem saída. O único caminho era mesmo a dança das suas mãos. Com seus dedos urdia uma mortalha. Linho para revestir a morte ou manta de acolher nascidos? Melhor era lavar a casa, esfregar as paredes, os azulejos, o chão antigo. Investigar os cantos, tentar a paz com os animais.  Mas o dia passava e sua febre era a direção de seus impulsos. Machucava-se contra as superfícies, como quem de repente deixa de caber e depois tornava a conviver com as medidas que conhecia, buscando o cálculo exato que revelasse a anatomia  do acidente, do acaso bruto tornado lenta vida.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013



Diálogo com Georges Bataille*


Eu: Sobre o papel, me curvo: tracejando o papel e as horas, ocupando as formas e os instantes. O que irrompe são imagens que dançam. Figuram e desvanecem, vivem. Mão e forma se  impulsionam mutuamente: feito  a sístole e a diástole que sustentam um corpo.

Ele: (...) a obscenidade escondida no fundo de nosso coração. (p.126)

Eu: São desenhos obscenos?  Não pela natureza do que figuram, mas pela intensidade com a qual dão ver algo que não é localizável no visível, provendo existência do que antes não estava em cena. O esforço da mão criar o que não controla  é obsceno, porque  dispendioso e  excessivo. Mas, se a intenção é  imoderada, o gesto é simples: disposição de tinta preta sobre um fundo branco. A estratégia é  criar contornos e depois texturas que se integrem  buscando o efeito de volume, de carnalidade,

Ele: A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência. (P.86)

Eu: Sim, são desenhos do excesso. A única lei que os regula é a lei dos nascimentos inesperados, essa vocação primeira da vida. 

Ele: (...) a vida é armadilha feita ao equilíbrio, (...) toda ela significa uma situação instável, desequilibrada, para onde nos conduz. É um movimento tumultuoso que se encaminha constantemente para a explosão. Mas,  se a explosão contínua não consegue esgotá-la, ela só prossegue sob uma condição: que entre os seres que ela gerou, aqueles cuja força de explosão está esgotada, cedam o lugar a novos seres, entre no círculo com uma força nova. (p. 56)

Eu: As formas que proponho são afirmativas do surgimento e da desaparição, são desenhos que incluem a dissolução. São fabulações em torno da permanência e do desvanecimento, já que apresentam equilíbrios provisórios, apetites apenas brevemente satisfeitos.

Ele: Entre um ser e outro, há um abismo, uma descontinuidade.  (...) Mas não posso evocar este abismo que nos separa sem ter logo o sentimento de uma mentira. Este abismo é profundo, e não vejo como suprimi-lo. Somente podemos, em comum, sentir a sua vertigem. Ele nos pode fascinar. Este abismo, num sentido, é a morte, e a morte é vertiginosa, fascinante. ( p.12)

Eu: Há uma vertigem dos aniquilamentos. Será por isso que desenho? Porque tudo fenece e desaba me entrego à pulsão de formar. Criar existências quando tudo está fadado a inexistir é um salto no inseguro. São desenhos que jogam com as forças da vida e da morte: esqueletos e crianças  interagem. Revelam a intensidade das formas com vocação para o informe, do estável que se abre ao aviso de todos os abalos.

Ele: O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. (p. 18)

Eu: Apesar de serem meticulosamente construídas, acredito que sejam desenhos que lidam com a dissolução. Não apenas pelas texturas se misturam e se ultrapassam,  mas pela própria natureza das composições. As figuras concebidas são intuitivas, surgem de sonhos, pesadelos, de significantes que irrompem. Crianças que jogam, esqueletos, vísceras, animais, musculaturas, camuflagens, regiões negras, cabelo, insetos, asas e corpos povoam nichos, interessa-me essa aglomeração sobre o esvaziamento. Busco trabalhar a relação entre o excesso e o vazio, o pleno em suas duas faces.

Ele: A continuidade é dada na superação dos limites. (p. 112) Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação. (...) Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado (...). ( p. 16)

Eu: Tratam-se de formas contínuas que se suprimem, de fato. Se há um léxico que as amarra, não é o das significações, mas o das formas, o das superfícies. São peles, ossos, penas, texturas que se confundem, porque guardam em si a vocação dos entrelaçamentos. São traços que tangem a qualidade dos corpos de se prenderem, de se seduzirem. Não são narrativas, mas lampejos – como um daqueles sonhos que nos devoram pela noite e na manhã seguinte não se consegue narra-lo. Os títulos sugerem situações, mas não explicam em qual casualidade se dão. São como pistas de segredos, a parte visível de uma intimidade, inatingível pela interpretação, não por ser abissal, mas antes por ser plena superfície. São afirmações em torno do silêncio, gestos prolixos que margeiam o inapreensível.

Ele: Em princípio, a experiência erótica nos conduz ao silêncio. (p. 235)

Eu: Há sim uma potência erótica que os atravessa, já que foi a partir do significante do erotismo que foram elaborados. São eróticos porque tratam da dissolução da forma, de contornos abalados, de peles que se habitam. São eróticos porque insinuam algo a respeito do qual não podem responder, porque dão a ver o que não está lá. São eróticos porque escondem.

Ele(...) a essência do erotismo é a mácula. (p. 136)

Eu: São formas que maculam a noção de centro, de estrutura. Guardam em si um equilíbrio secreto, onde tudo parece sem eixo, há uma ordem que os conserva.  Pretendem ser uma espécie de liturgia dos corpos. A celebração da capacidade orgânica para a aderência e a aniquilação. 

Ele: Com efeito, se bem que a atividade erótica seja inicialmente uma exuberância da vida, o objeto dessa procura psicológica, independente, como eu o disse, da preocupação de reprodução da vida, não é estranho à morte. (p. 11)

Eu: Esses corpos nascem do meu. Do pleno engajamento entre minha mão e o vazio, esse campo repleto do possível.  Para falar destes desenhos e da potência erótica que os atravessa, sinto que tremulo, que hesito. Bordejo uma espécie de indizível, tateio um segredo que não ouso desvendar.

Ele: (...) sentimos tudo o que é a poesia. Ela nos funda, mas não sabemos falar dela. (p.23)

Eu: Emudeço diante dessa fatura à qual me sinto compelida. Quando desenho, esqueço quem sou. Sou o próprio desenho em nascimento.

Ele: O ser, com frequência, parece dado ao homem fora dos movimentos da paixão. E eu direi mesmo que nunca devemos imaginá-lo fora desses movimentos. (p. 12)

Eu: Aproxima-se de uma experiência mística, de uma interação com o mistério, com o que não se pode nomear.

Ele: Todo erotismo é sagrado. (p. 15)

Eu: Se os desenhos tem sua face erótica, será que o próprio gesto de desenhar pode ser erótico de algum modo ?

Ele: A ação decisiva é o desnudamento. ( p. 17)

Eu: Desnudar-me seria despir de artifícios, ater-me a alguma espécie de essência?

Ele: Mas a transgressão difere da “volta à natureza”: ela suspende o interdito sem suprimi-lo. (p. 33)

Eu: O erotismo presente no ato de desenhar não tem a ver com a exposição de uma verdade, de um interior obliterado. Pelo contrário, tem a ver com a criação de uma natureza, com o manejo do artificial tomado  como essência. É o engajamento pleno no que não se conheço. Dispo-me, ao desenhar, quando coloco meu corpo todo atento e disponível ao que nem eu mesma sei que é, ao imprevisível da minha criação. É um gesto de amor.

Ele: O ser amado para o amante é a transparência do mundo. (...) É o ser pleno, ilimitado, que não limita mais a descontinuidade pessoal. É, em síntese, a continuidade do ser percebida como uma libertação a partir do ser do amante. Há uma absurda, uma enorme desordem nessa aparência, mas, através do absurdo, da desordem, do sofrimento, uma verdade de milagre. Nada, no fundo, é ilusório na verdade do amor: o ser amado equivale para o amante, para o amante só, sem dúvida, pouco importa, à verdade do ser. O acaso quer que, através dele,  a complexidade do mundo tendo desaparecido, o amante perceba o fundo do ser, a simplicidade do ser. (p.20)

Eu: Você sempre fala dessas experiências do excesso, do inesperado que se apresenta pleno, como a experiência do milagre. Que limite é preciso atravessar para alcançar essa face irrefreável da existência?

Ele: A experiência interior do homem é dada no instante em que, rompendo a crisálida, ele tem consciência de se rasgar a si mesmo e não a resistência colocada de fora. (p. 36)

Eu: A mim mesma, portanto, preciso rasgar para encontrar esse território desmedido das possibilidades. Uma espécie de auto-imolação imposta à todo aquele que cria.

Ele: É geralmente próprio do sacrifício harmonizar a vida e a morte, dar à morte o jorro da vida, à vida o peso, a vertigem e a abertura da morte. É a vida misturada à morte, mas, no sacrifício, a morte é ao mesmo tempo signo da vida, abertura ao ilimitado. (p.85)

Eu: O ilimitado da morte pode ser experimentado em vida?

Ele: (...) no reino da continuidade inflamada pelo amor. (p.111)

Eu: O amor como um investimento no incerto, uma aposta naquilo que não garante nada. O amor como o dispêndio de si no que não se pode nomear.  

Ele: Não encontramos felicidade verdadeira senão no gasto inútil, como se uma ferida se abrisse em nós: queremos sempre estar seguros da inutilidade, às vezes, do caráter ruinoso de nosso gasto. Queremos nos sentir bem distantes de tudo, onde o aumento dos recursos é a regra. “Bem distantes” diz muito pouco. Queremos um mundo subvertido, queremos o mundo pelo avesso. A verdade do erotismo é a traição. (p.161)

Eu: O erotismo como a traição das economias? Das verdades asseguradoras? Nesse sentido, o gesto artístico tem sempre um núcleo erótico. De onde vem essa fagulha desviante?

Ele: O ser também é o excesso do ser, acesso ao impossível. (p.163)

Eu: No mais íntimo, o mais estranho. O fundamental é também a desmedida. Acho que essas impressões estão presentes na fatura dos meus desenhos. São excessos essenciais. Retratos do ser em desmesura, em relação com as impossibilidades. Como você faz para tratar do ser nessa face obscura, que toda hora sinto prestes a perder, que me escorre pelos dedos sem que eu possa apreender?                                               

Ele: Sinto-me livre para fracassar. (p. 237)

Eu: O fracasso é também uma potência. O desvio dita a norma. A infâmia pode ser a grande virtude.

Ele: (...) Felix culpa! – a bem aventurada culpa! – o que nos resgata é ao mesmo tempo o que não deveria ter acontecido (...) cujo próprio excesso nos resgata. (p. 243)

Eu: Trata-se, portanto, dessa alquimia: a culpa que resgata, a morte cuja potência se revela em vida, o desmedido que tem forma, a forma fechada que se deixa atravessar. Essa é a potência erótica que apreendo: o apetite dos corpos, a potência das aberturas, o desejo pelos ápices e pelos mergulhos.

Ele: Se alguém me perguntasse o que nós somos, eu lhe responderia: que somos essa abertura a todo possível, essa espera que nenhuma satisfação material acalmará e que o  jogo da linguagem não saberia iludir! Estamos à procura de um ponto culminante. (p. 253)

Eu: Não sei bem se entendi tudo o que você falou, mas foi bom conversar. Falar me deu a medida do só posso contornar. 

Ele: De minha parte - parece-me que, ao falar, prestei uma espécie de homenagem – bastante pesada – ao silêncio. (p.245)

* Todas as citações d’Ele são de Georges Bataille, presentes no livro O Erotismo, tradução de Antonio Carlos Viana, Porto Alegre: L&PM, 1987. As páginas de onde foram extraídas estão ao lado de cada citação.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013



colaboração para a revista Dasartes n.25. sobre a exposição Tração Animal de Raul Mourão. (clica que aumenta)

sábado, 12 de janeiro de 2013




Lesbos

Crueldade na cozinha!
As batatas assobiam.
Tudo isso é Hollywood, sem janelas,
A luz fluorecente estremece acessa e apagada como uma enxaqueca,
Pequenas tiras de papel para as portas
Cortinas de palco, o frisado da viúva.
E eu, amor, sou uma mentirosa doentia,
E minha criança – olha o rosto dela voltado para o chão,
Pequeno fantoche desatado, pulando até sumir
Porque ela é esquizofrênica,  
Tem a face vermelha e branca, o pânico,
Tu prendeste seus gatos para fora da janela 
Em uma espécie de roda de cimento
Onde eles cagam, vomitam, choram e ela não ouve.
Tu dizes não a suportar,
Essa menina bastarda.
Tu que sopraste teus canos como um radio ruim
Limpa de vozes e de história, estática
O ruído do novo.
Dizes que eu deveria afogar os gatos. Eles fedem!
que eu deveria afogar minha menina.
Ela iria cortar sua garganta no dez se fosse louca no dois.
Os sorrisos do bebê, gordo caracol,
Das pastilhas polidas de linóleo laranja.
Você poderia comê-lo. É um menino.
Dizes que teu marido não é bom o suficiente para ti.
Sua mãe judia guarda seu suave sexo como uma pérola.
Tu tens um filho, eu tenho dois.
Eu deveria sentar em uma pedra na Cornualha e pentear meu cabelo.
Eu deveria usar calças de tigre e deveria me envolver com alguém.
Nós deveríamos nos encontrar em outra vida, deveríamos nos encontrar no ar,
Eu e tu.

Enquanto isso, há cheiro de gordura e de cocô de bebê.
Estou dopada e turva do meu ultimo sonífero.
A poluição de cozinhar, a poluição do inferno
Flutuam nossas cabeças, dois nocivos opostos,
Nossos ossos, nosso cabelo.
Te chamo de Órfã, orfã. Tu estás doente.
O sol te causa uma úlcera, o vento te dá tuberculose
Uma vez fomos bonitas.
Em Nova York, em Hollywood, os homens diziam: “Pronto?
Oh baby, você é rara”
Você agiu, agiu pelo tremor.
O marido impotente sai para um café.
Eu tento mantê-lo dentro,
Um velho para-raios,
Os banhos ácidos, os céus fora de ti.
Ele impele para baixo da colina coberta de plástico,
Fustigado trem. Faíscas azuis.
O transbordamento das faíscas azuis,
Derramando-se feito um quartzo em milhões de pedacinhos.

Ó jóia! Ó valiosa!
Essa noite a lua
Arrastou sua bolsa de sangue, doente
Animal
Acima das luzes do porto.
E quando elas nasceram normais,
Intensas, separadas e brancas.
Na areia, a escala dos brilhos me matava de medo.
Continuávamos colhendo de mãos cheias, amando,
Moldando como se fosse massa de pão, um corpo mulato,
Os grãos de seda.
Um cachorro pegou seu marido cão. Ele passou.

Agora estou silenciosa, ódio
Acima do meu pescoço,
Grosso, grosso.
Eu não falo.
Estou embalando grossas batatas como boas roupas,
Estou embalando os bebês,
Estou embalando os gatos enfermos.
Ó vaso de acidez,
De amor tu estás cheia. Tu sabes a quem odeias.
Ele está abraçando a sua bola e acorrentado por baixo da porta
Isso abre o mar
Quando arrasta, branco e preto,
Vomita, então, de volta.
Todos os dias tu o preenches com estofo de alma, como um jarro.
Tu estás exausta.
Tua voz é o meu brinco,
Agitando e sugando, morcego amante de sangue.
Isso é o que é.
Tu escutas pela porta,
Bruxa triste. “Toda mulher é uma puta.
Eu não consigo dizer.”                                                                                                                          

Vejo tua bela decoração
Fechada em ti como o punho de um bebê
Ou uma anêmona, no mar
Meu bem, essa cleptomaníaca.
Eu ainda estou crua.
Eu digo que posso estar de volta.
Tu sabes para que servem as mentiras.

Nem mesmo no teu paraíso Zen iremos nos encontrar.



Minha tradução livre do poema Lesbos de Sylvia Plath.
Fotografia de Cecília Cavalieri