Rosto coberto de avesso
Uma névoa quente
Num impulso, cortei minha franja
com uma tesoura de cozinha. Vejo que fica torta e muito curta e me dá vontade
de rir. Lembro-me da transgressão infantil de trancar-me no banheiro com uma tesoura
e cortar livremente meu cabelo sem nenhum
critério, para o susto e apreensão da minha mãe. Uma pequena experiência
libertadora de quem assume o corpo como seu, de quem faz um pequeno uso secreto
e indevido de si. Semanas seguiam com a minha mãe passando gel para tentar
domar a franja feia, usando grampos rentes à minha testa e me lembrando
diariamente do gesto inconsequente. Aos vinte e três anos, sem precisar me
esconder para deixar minha franja curta e torta, com o chuveiro quente ligado
vejo minha imagem ficando cada vez mais embaçada no espelho e passo algum tempo
diante da figura enevoada, encarando camadas do meu rosto antigo-atual se
tornando borrão.
Banheiro de um hotel no Canadá.
Ligo o chuveiro para entrar no banho e vejo, novamente, minha figura
tornando-se mancha. Com a franja já reta e um pouco maior, mas ainda atingida
pela fragilidade assumida pelo meu reflexo, sinto desejo de registrar o
processo do meu corpo se encarando num espelho, primeiro nítido no espelho
frio, depois esfumaçado pela superfície umedecida. Quem fotografa é a minha
mãe, essa que agora me ajuda nesses pequenos manejos incomuns
de mim mesma. Ela se posiciona ao meu lado, desligamos e religamos o
chuveiro quente e ela fotografa. O
resultado são imagens monótonas, que quase não diferem. A passagem do tempo só
é notada por pequenas alterações da minha postura e pelo espelho que, depois de
muitos quadros, se torna completamente embaçado. Um rosto coberto de névoa quente,
enquanto o corpo aguarda, permanece, do lado de cá.
Um rosto coberto de avesso
Passeando pela lojinha de um
museu, encontro um livro de anatomia humana. Não resisto às imagens estranhas,
belas, cortantes. Cresci em torno de livros como esses e mesmo de coisas como
estas, já que – ainda criança – costumava ajudar minha mãe em sessões de
macroscopia que consistiam em transcrever frases ditadas por ela enquanto ela
fatiava órgãos a serem analisados. Ela provavelmente estava apenas querendo me
ensinar o valor e a importância do trabalho. Mas o ato de escrever enquanto
minha mãe manuseava vísceras deve ter me atingido de alguma maneira que não
entendo, pois até hoje me interessa fazer uso dessas imagens de anatomia num
contexto ficcional, inventivo. As imagens que mais me chamam a atenção no livro
são parte de uma sequência de homens que abrem a própria barriga com as mãos
para mostrar o interior. De algum modo, sinto que repito esse gesto. Quando
produzo, sei que quero mostrar algum avesso, alguma entranha. Mas sinto que meu
gesto difere, já que não é a entranha como um fim que me interessa, mas a
invenção que posso fazer dela, a máscara que posso criar com essa matéria. A
minha entranha não é uma verdade, mas uma criação. Esse é meu rosto coberto de
avesso.
Cortes
Releio os textos que produzi nos
primeiros meses de 2012, parte da disciplina de Processos Artísticos
Contemporâneos. A pergunta é: como
torna-los um trabalho visual, uma proposição plástica? Os próprios textos
contêm muitas chaves e pistas para essa elaboração. Volto-me, uma vez mais,
para o papel. Imprimo os textos e separo trechos que me parecem, por alguma
razão, mais indispensáveis que outros.
Num processo lento e difícil, colo – frase a frase- num caderno
vermelho. Poderia escrever a mão, sinto que seria mais fácil e rápido – mas uso
dessa técnica de sequestradores e de admiradores secretos, de criar uma
caligrafia com letras já formadas. Ainda
à maneira de sequestradores e amantes platônicos sinto que há, nesse gesto, uma
emoção que se revela numa tentativa torta de impessoalidade, de anonimato. A
paixão revelada no tremular de uma mão que se implica, mais do nunca, no próprio
gesto com o qual pretendia se anular. Mostrar-me através de uma tentativa de
esconderijo, essa jogada que tantas vezes recorre.
Insisto
São gestos que me desafiam.
Recortar colar recortar colar, não sabia que era tão difícil manusear a cola.
Depois passo madrugadas desenhando pontos e outra cobrindo o branco papel de
tinta preta. Encontro a forma desse trabalho através de procedimentos que me
fazem querer desistir deles próprios, de exaustivos que são. Mas insisto. Quero
descobrir uma paciência que não tenho, quero inventar uma habilidade que não
possuo. Quero ser mais forte que eu.
Astronomias
Injustificável é essa minha
atração por objetos de estudar o cosmos. Vou ao sebo e compro livros de
astronomia em língua estranha. Passeio em planetários. Penso em comprar um
telescópio e aponta-lo ao teto concreto do meu quarto. Existe algo nesse
projeto insano de compreender os astros que me encanta. Um esforço em torno do imensurável.
Uma técnica para não cegar, um modo de encarar espectros de astros, que dizem
que nem estão mais lá. É o rigor diante do infinito que me cativa. São as tentativa sinceras e precárias que me
encantam. Entender a mim mesma, entender o que faço, apontar o astrolábio na
minha direção, parece ser o mesmo indispensável e dispendioso esforço.
Gelo liso
Um pequeno aforismo de Nietzsche
que , pra mim, fala do processo de criar. Criação, esse passeio num terreno de
quedas, onde só se pode estar quem sabe criar o imprevisível do corpo, a dança desvairada
dos afetos.
02.08.2012
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