sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013



Diálogo com Georges Bataille*


Eu: Sobre o papel, me curvo: tracejando o papel e as horas, ocupando as formas e os instantes. O que irrompe são imagens que dançam. Figuram e desvanecem, vivem. Mão e forma se  impulsionam mutuamente: feito  a sístole e a diástole que sustentam um corpo.

Ele: (...) a obscenidade escondida no fundo de nosso coração. (p.126)

Eu: São desenhos obscenos?  Não pela natureza do que figuram, mas pela intensidade com a qual dão ver algo que não é localizável no visível, provendo existência do que antes não estava em cena. O esforço da mão criar o que não controla  é obsceno, porque  dispendioso e  excessivo. Mas, se a intenção é  imoderada, o gesto é simples: disposição de tinta preta sobre um fundo branco. A estratégia é  criar contornos e depois texturas que se integrem  buscando o efeito de volume, de carnalidade,

Ele: A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência. (P.86)

Eu: Sim, são desenhos do excesso. A única lei que os regula é a lei dos nascimentos inesperados, essa vocação primeira da vida. 

Ele: (...) a vida é armadilha feita ao equilíbrio, (...) toda ela significa uma situação instável, desequilibrada, para onde nos conduz. É um movimento tumultuoso que se encaminha constantemente para a explosão. Mas,  se a explosão contínua não consegue esgotá-la, ela só prossegue sob uma condição: que entre os seres que ela gerou, aqueles cuja força de explosão está esgotada, cedam o lugar a novos seres, entre no círculo com uma força nova. (p. 56)

Eu: As formas que proponho são afirmativas do surgimento e da desaparição, são desenhos que incluem a dissolução. São fabulações em torno da permanência e do desvanecimento, já que apresentam equilíbrios provisórios, apetites apenas brevemente satisfeitos.

Ele: Entre um ser e outro, há um abismo, uma descontinuidade.  (...) Mas não posso evocar este abismo que nos separa sem ter logo o sentimento de uma mentira. Este abismo é profundo, e não vejo como suprimi-lo. Somente podemos, em comum, sentir a sua vertigem. Ele nos pode fascinar. Este abismo, num sentido, é a morte, e a morte é vertiginosa, fascinante. ( p.12)

Eu: Há uma vertigem dos aniquilamentos. Será por isso que desenho? Porque tudo fenece e desaba me entrego à pulsão de formar. Criar existências quando tudo está fadado a inexistir é um salto no inseguro. São desenhos que jogam com as forças da vida e da morte: esqueletos e crianças  interagem. Revelam a intensidade das formas com vocação para o informe, do estável que se abre ao aviso de todos os abalos.

Ele: O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. (p. 18)

Eu: Apesar de serem meticulosamente construídas, acredito que sejam desenhos que lidam com a dissolução. Não apenas pelas texturas se misturam e se ultrapassam,  mas pela própria natureza das composições. As figuras concebidas são intuitivas, surgem de sonhos, pesadelos, de significantes que irrompem. Crianças que jogam, esqueletos, vísceras, animais, musculaturas, camuflagens, regiões negras, cabelo, insetos, asas e corpos povoam nichos, interessa-me essa aglomeração sobre o esvaziamento. Busco trabalhar a relação entre o excesso e o vazio, o pleno em suas duas faces.

Ele: A continuidade é dada na superação dos limites. (p. 112) Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação. (...) Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado (...). ( p. 16)

Eu: Tratam-se de formas contínuas que se suprimem, de fato. Se há um léxico que as amarra, não é o das significações, mas o das formas, o das superfícies. São peles, ossos, penas, texturas que se confundem, porque guardam em si a vocação dos entrelaçamentos. São traços que tangem a qualidade dos corpos de se prenderem, de se seduzirem. Não são narrativas, mas lampejos – como um daqueles sonhos que nos devoram pela noite e na manhã seguinte não se consegue narra-lo. Os títulos sugerem situações, mas não explicam em qual casualidade se dão. São como pistas de segredos, a parte visível de uma intimidade, inatingível pela interpretação, não por ser abissal, mas antes por ser plena superfície. São afirmações em torno do silêncio, gestos prolixos que margeiam o inapreensível.

Ele: Em princípio, a experiência erótica nos conduz ao silêncio. (p. 235)

Eu: Há sim uma potência erótica que os atravessa, já que foi a partir do significante do erotismo que foram elaborados. São eróticos porque tratam da dissolução da forma, de contornos abalados, de peles que se habitam. São eróticos porque insinuam algo a respeito do qual não podem responder, porque dão a ver o que não está lá. São eróticos porque escondem.

Ele(...) a essência do erotismo é a mácula. (p. 136)

Eu: São formas que maculam a noção de centro, de estrutura. Guardam em si um equilíbrio secreto, onde tudo parece sem eixo, há uma ordem que os conserva.  Pretendem ser uma espécie de liturgia dos corpos. A celebração da capacidade orgânica para a aderência e a aniquilação. 

Ele: Com efeito, se bem que a atividade erótica seja inicialmente uma exuberância da vida, o objeto dessa procura psicológica, independente, como eu o disse, da preocupação de reprodução da vida, não é estranho à morte. (p. 11)

Eu: Esses corpos nascem do meu. Do pleno engajamento entre minha mão e o vazio, esse campo repleto do possível.  Para falar destes desenhos e da potência erótica que os atravessa, sinto que tremulo, que hesito. Bordejo uma espécie de indizível, tateio um segredo que não ouso desvendar.

Ele: (...) sentimos tudo o que é a poesia. Ela nos funda, mas não sabemos falar dela. (p.23)

Eu: Emudeço diante dessa fatura à qual me sinto compelida. Quando desenho, esqueço quem sou. Sou o próprio desenho em nascimento.

Ele: O ser, com frequência, parece dado ao homem fora dos movimentos da paixão. E eu direi mesmo que nunca devemos imaginá-lo fora desses movimentos. (p. 12)

Eu: Aproxima-se de uma experiência mística, de uma interação com o mistério, com o que não se pode nomear.

Ele: Todo erotismo é sagrado. (p. 15)

Eu: Se os desenhos tem sua face erótica, será que o próprio gesto de desenhar pode ser erótico de algum modo ?

Ele: A ação decisiva é o desnudamento. ( p. 17)

Eu: Desnudar-me seria despir de artifícios, ater-me a alguma espécie de essência?

Ele: Mas a transgressão difere da “volta à natureza”: ela suspende o interdito sem suprimi-lo. (p. 33)

Eu: O erotismo presente no ato de desenhar não tem a ver com a exposição de uma verdade, de um interior obliterado. Pelo contrário, tem a ver com a criação de uma natureza, com o manejo do artificial tomado  como essência. É o engajamento pleno no que não se conheço. Dispo-me, ao desenhar, quando coloco meu corpo todo atento e disponível ao que nem eu mesma sei que é, ao imprevisível da minha criação. É um gesto de amor.

Ele: O ser amado para o amante é a transparência do mundo. (...) É o ser pleno, ilimitado, que não limita mais a descontinuidade pessoal. É, em síntese, a continuidade do ser percebida como uma libertação a partir do ser do amante. Há uma absurda, uma enorme desordem nessa aparência, mas, através do absurdo, da desordem, do sofrimento, uma verdade de milagre. Nada, no fundo, é ilusório na verdade do amor: o ser amado equivale para o amante, para o amante só, sem dúvida, pouco importa, à verdade do ser. O acaso quer que, através dele,  a complexidade do mundo tendo desaparecido, o amante perceba o fundo do ser, a simplicidade do ser. (p.20)

Eu: Você sempre fala dessas experiências do excesso, do inesperado que se apresenta pleno, como a experiência do milagre. Que limite é preciso atravessar para alcançar essa face irrefreável da existência?

Ele: A experiência interior do homem é dada no instante em que, rompendo a crisálida, ele tem consciência de se rasgar a si mesmo e não a resistência colocada de fora. (p. 36)

Eu: A mim mesma, portanto, preciso rasgar para encontrar esse território desmedido das possibilidades. Uma espécie de auto-imolação imposta à todo aquele que cria.

Ele: É geralmente próprio do sacrifício harmonizar a vida e a morte, dar à morte o jorro da vida, à vida o peso, a vertigem e a abertura da morte. É a vida misturada à morte, mas, no sacrifício, a morte é ao mesmo tempo signo da vida, abertura ao ilimitado. (p.85)

Eu: O ilimitado da morte pode ser experimentado em vida?

Ele: (...) no reino da continuidade inflamada pelo amor. (p.111)

Eu: O amor como um investimento no incerto, uma aposta naquilo que não garante nada. O amor como o dispêndio de si no que não se pode nomear.  

Ele: Não encontramos felicidade verdadeira senão no gasto inútil, como se uma ferida se abrisse em nós: queremos sempre estar seguros da inutilidade, às vezes, do caráter ruinoso de nosso gasto. Queremos nos sentir bem distantes de tudo, onde o aumento dos recursos é a regra. “Bem distantes” diz muito pouco. Queremos um mundo subvertido, queremos o mundo pelo avesso. A verdade do erotismo é a traição. (p.161)

Eu: O erotismo como a traição das economias? Das verdades asseguradoras? Nesse sentido, o gesto artístico tem sempre um núcleo erótico. De onde vem essa fagulha desviante?

Ele: O ser também é o excesso do ser, acesso ao impossível. (p.163)

Eu: No mais íntimo, o mais estranho. O fundamental é também a desmedida. Acho que essas impressões estão presentes na fatura dos meus desenhos. São excessos essenciais. Retratos do ser em desmesura, em relação com as impossibilidades. Como você faz para tratar do ser nessa face obscura, que toda hora sinto prestes a perder, que me escorre pelos dedos sem que eu possa apreender?                                               

Ele: Sinto-me livre para fracassar. (p. 237)

Eu: O fracasso é também uma potência. O desvio dita a norma. A infâmia pode ser a grande virtude.

Ele: (...) Felix culpa! – a bem aventurada culpa! – o que nos resgata é ao mesmo tempo o que não deveria ter acontecido (...) cujo próprio excesso nos resgata. (p. 243)

Eu: Trata-se, portanto, dessa alquimia: a culpa que resgata, a morte cuja potência se revela em vida, o desmedido que tem forma, a forma fechada que se deixa atravessar. Essa é a potência erótica que apreendo: o apetite dos corpos, a potência das aberturas, o desejo pelos ápices e pelos mergulhos.

Ele: Se alguém me perguntasse o que nós somos, eu lhe responderia: que somos essa abertura a todo possível, essa espera que nenhuma satisfação material acalmará e que o  jogo da linguagem não saberia iludir! Estamos à procura de um ponto culminante. (p. 253)

Eu: Não sei bem se entendi tudo o que você falou, mas foi bom conversar. Falar me deu a medida do só posso contornar. 

Ele: De minha parte - parece-me que, ao falar, prestei uma espécie de homenagem – bastante pesada – ao silêncio. (p.245)

* Todas as citações d’Ele são de Georges Bataille, presentes no livro O Erotismo, tradução de Antonio Carlos Viana, Porto Alegre: L&PM, 1987. As páginas de onde foram extraídas estão ao lado de cada citação.


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