Sou uma mulher dissolvida pelo
ardor da minha bílis e pela água sanitária. É limpando a casa que me dou conta
como é bonita a coragem para investigar o obscuro. Arredo sofás, invado
frestas, vasculho antigas gavetas. O resultado é bom, mas o processo doi. Nada
mais aviltante que encontrar uma barata ressacada atrás da geladeira, ou um emaranhado
de estranhas teias no fundo de um móvel. Ao menos,
o ralo, que é o coração da casa, está limpo. Manter a alma em estado puro é
mantê-la bruta, por isso o obstinado trabalho na casa, as faxinas. É uma
ternura que recorre, uma insuspeita inquietude. É como um exorcismo. Já que
nunca tive a honra de ser exorcizada no altar de Deus, o que seria uma glória, e
contento-me com discretos aleluias inclinados na direção de Afonso, para quem
cubro meu cabelo com mantilhas e a quem endereço meus suspiros durante o
Magnificat. Na casa de Deus celebro a silenciosa sedução,
na minha casa solto os demônios ajoelhada sobre um chão ensaboado. Fico imaginando
uma madame perversa me fazendo ameaças: limpe esse tapete de banheiro a ponto
de poder dormir com ele em sua própria cama. Tenho calafrios. Não posso com
coisa suja na cama. Menos homens, esses eu recebo bem. Estremeço com a fome do
mendigo endereçada ao meu corpo, mas isso é segredo. Assim como quando deixo a cozinha toda imunda
só para ter um indizível júbilo em limpa-la. É a comunhão com as partes
baixas da existência, comer do pão místico da imundice, digerir o indigesto.
Peço aos céus apenas que eu não fique metida demais, com ares de santa, só por
ter encontrado essa via para a salvação. Mulher com jeito de santa é um saco,
eu gosto de ter um ar meio tapado, como quem estivesse sempre um pouco sem ar,
ofegando. Chegando em casa, quando não tem ninguém, me permito respirar mais
fundo, franzir o cenho, ler alguma metafísica. Meu plano para conquistar Afonso é que um dia
ele venha aqui em casa e veja como sou caprichosa, como transformo qualquer
craca pesada em cristal reluzente. Quando ele elogiar meu capricho, eu me
declaro: sabe, Afonso, a alma de um homem é
um canto escuro. Vês como sei lidar com o pó e a gordura? Pois não sabes
o que posso fazer de ti. Eu sou uma mulher humilde, tapada, mas tenho cuidados
que sobram. Será que não queres desfrutar do meu asseio e ser uma só carne, na
direção da eternidade, em mim? Eu aposto que ele topa, quem não?
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
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