quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Limpeza





Sou uma mulher dissolvida pelo ardor da minha bílis e pela água sanitária. É limpando a casa que me dou conta como é bonita a coragem para investigar o obscuro. Arredo sofás, invado frestas, vasculho antigas gavetas. O resultado é bom, mas o processo doi. Nada mais aviltante que encontrar uma barata ressacada atrás da geladeira, ou um emaranhado de estranhas teias no fundo de um móvel.  Ao menos,  o ralo, que é o coração da casa,  está limpo. Manter a alma em estado puro é mantê-la bruta, por isso o obstinado trabalho na casa, as faxinas. É uma ternura que recorre, uma insuspeita inquietude. É como um exorcismo. Já que nunca tive a honra de ser exorcizada no altar de Deus, o que seria uma glória, e contento-me com discretos aleluias inclinados na direção de Afonso, para quem cubro meu cabelo com mantilhas e a quem endereço meus suspiros durante o Magnificat.  Na casa de Deus celebro a silenciosa sedução, na minha casa solto os demônios ajoelhada sobre um chão ensaboado. Fico imaginando uma madame perversa me fazendo ameaças: limpe esse tapete de banheiro a ponto de poder dormir com ele em sua própria cama. Tenho calafrios. Não posso com coisa suja na cama. Menos homens, esses eu recebo bem. Estremeço com a fome do mendigo endereçada ao meu corpo, mas isso é segredo.  Assim como quando deixo a cozinha toda imunda só para ter um indizível júbilo em limpa-la. É a comunhão com as partes baixas da existência, comer do pão místico da imundice, digerir o indigesto. Peço aos céus apenas que eu não fique metida demais, com ares de santa, só por ter encontrado essa via para a salvação. Mulher com jeito de santa é um saco, eu gosto de ter um ar meio tapado, como quem estivesse sempre um pouco sem ar, ofegando. Chegando em casa, quando não tem ninguém, me permito respirar mais fundo, franzir o cenho, ler alguma metafísica.  Meu plano para conquistar Afonso é que um dia ele venha aqui em casa e veja como sou caprichosa, como transformo qualquer craca pesada em cristal reluzente. Quando ele elogiar meu capricho, eu me declaro: sabe, Afonso, a alma de um homem é  um canto escuro. Vês como sei lidar com o pó e a gordura? Pois não sabes o que posso fazer de ti. Eu sou uma mulher humilde, tapada, mas tenho cuidados que sobram. Será que não queres desfrutar do meu asseio e ser uma só carne, na direção da eternidade, em mim? Eu aposto que ele topa, quem não?   

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