Lição das águas
Lentamente diante de ti. Para que
suspeites. Minhas feições: ontem abandonadas, hoje cultivadas por ardis, e em
breve despidas de qualquer cuidado. Te mostro quem sou. Dessa vez de dentro
para fora, eu que sou toda fora, que me estendo pelas superfícies e me camuflo
na textura de todos os toques. Olha que não
sustento mais a fala, nem as tramas da memória, nem os nomes próprios, e os
retratos votivos de tantas mulheres a quem dedico minhas preces: te coloco solitário em meu altar. E depois, desfeita
de elevações, me disponho terrena ao teu
conhecimento. Toca-me. Repara que sou densa e que tenho uma finitude em cada
começo. Que tudo que me excede também finda. Me ponho diante do teu olho, que é espelho e lâmina, te dando os meus próprios olhos contra
a claridade, te dando minha cegueira, minha incorreção. E depois noto que teus
olhos já não me refletem e nem me cortam, mas me dissolvem, me deformam. E
brinco, desajeitada, de ter a forma de todas as coisas. Tenho o peso da espuma.
Depois sou maciça feito cobre. Afundo. E me ergo. Anêmona, âncora, baú. Sou
onde cabe qualquer vida. Depois ocupo o espaço de um templo. E diminuo, peixe amedrontado,
conhecendo a morte antes de entender o que é nascer. E reparo que teus olhos me
dão a existência sem um rosto, e eu me dou todas as faces, grito no escuro,
fico sutil rente ao pânico, sou iluminada por uma ternura. Aqui, nesse escuro
onde dou ao teu olho a justa medida do olhar, me faço abundante e informe.
Úmida, lama, tesouro.
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