Os
grandes óculos de grau, sem eles, a nudez. Engraçado me sentir carnal por
estar com o rosto despido, como se estivesse cometendo o maior dos impudores.
Míope e vulgar, poucas combinações são mais providenciais. Tomada dessa estranha
luxúria eu saía correndo, desviando da chuva, demorando um segundo embaixo
das marquises tomando fôlego para outro mergulho na rua-correnteza. Um
vira-lata começou a correr atrás de mim, abanando o rabo molhado. Importava chegar a tempo para vê-lo e o eclipse nos seus olhos. A cada mil anos o sol se escondia atrás dos olhos dele e ele sentia minha falta,
por coincidência, nesse exato dia ele estava a dois quarteirões daqui. Se
cansaria de me esperar e voltaria de táxi para a Ilha do Governador? Não, espera,
deixa eu sentir de novo o toque das tuas mãos, uma sobre a outra, enquanto eu
coloco a minha, clandestina, entre elas. Não vai embora sem soprar teu silêncio
de montanha antiga em mim. Ele dança com a leveza da chuva que me atrasa e
persiste, em cada lugar por onde passou, como a memória de uma cidade em ruínas. Eu era Pompeia coberta de pó e lava depois da sua passagem. Fazia
apenas um mês que eu o conhecia, mas o tempo já se desdobrava confuso, entre
atrasos e aléns. Eu corria, mais feliz que o vira-lata que tinha acabado de me
adotar. Estremecia de frio, de alegria, de saudade e de uma insuflada liberdade. Calma, só mais
cinco minutos e eu já to aí, molhada como o cãozinho que me segue, só que menos
altiva. Todo vira-lata é altivo, porque é rei da sua vadiagem. E eu só sou uma
mulher míope molhada correndo. E nada parecia mais honesto que correr na chuva
atrás dele que eu conhecia como se conhece o escuro, que é sempre o mesmo, e que
compactua com todos os espantos. Ontem li no Livro de Hidelgarda uma menção à
noção aristotélica do ser-em-ato, a enteléquia, ser-sendo, ser-correndo-na-chuva.
Aristotélica, nadadora, vadia e ofegante, assim cheguei até você.
terça-feira, 27 de agosto de 2013
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