segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Tempo de bala



Um escuro que escapa pelos dedos. Dentro de mim, esse rumor, inquietude pelas frestas, o ar suspenso em frágeis fundações. Leio o livro de Hildegarda, um apócrifo que só eu conheço e tenho em mãos. Ela fala sobre o amor dos homens, sobre o abraço à terra e essa náusea que nos acompanha diante do obscuro de nós mesmos. Faz sete dias que me vejo sozinha em casa. Mateus saiu e não mandou recado qualquer. Não sinto desespero ou revolta, mas experimento uma sensação de vazio que desconhecia. Mateus já foi o nome dos meus dias e o preenchimento dos sulcos de cada manhã. Agora o céu é branco, o chão da casa acumula fina camada de pó, as portas se debatem junto a mim. Tomo banhos demorados, deixo a pele enrugar, experimento os calores e os gelados de cada superfície com meu corpo nu. Estendida sobre a mesa de jantar, olhando o teto como quem se deixaria tragar por uma noite iluminada. Faz sete dias que a casa parece ter uma vida própria, toda vez que busco organizá-la algum caos se revela em formação. Tempestades domésticas se anunciam, qualquer gaveta é o olho do furacão. Por vezes vou até a rua e fico dando voltas em torno do prédio. A calma é sentir o chão sob os pés, a dor é não haver ninguém que possa compreender minha deriva circular. Estou sozinha e isso me enlouquece e me enche de desconhecido ânimo.  Meu corpo se estende e encolhe sem que eu queira, tem vida própria. Caminha com as pernas mínimas, repousa com imensos braços e um peito denso, repleto de palpitações. E meus olhos se estreitam diante da luz, enquanto minha boca dilata de sede e de tanto silêncio retido. No tempo de Mateus, meu corpo era moldado para ser o avesso do dele e nos encaixávamos durante o dia todo. Mateus em silêncio e eu solta numa maré de palavras, depois Mateus de pé e eu ao rés do chão. Ele quieto e eu eufórica, ele cuidando da terra e eu trocando a lâmpada, ele querendo a salvação e eu me perdendo a cada instante. Todos nossos contraditórios eram os passos de uma dança. Meu pé na direção das pernas dele e ele dando um passo atrás. Agora Mateus está longe do meu conhecimento e eu mais próxima que nunca da minha própria atenção. O próximo passo é aprender a inventá-lo só.   

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