quarta-feira, 9 de setembro de 2015

31




Às dez horas da manhã um homem atravessa a rua. Sente uma dor profunda e gasta ao olhar para um prédio, mas desvia da entrada com firmeza. Enquanto isso um guerreiro  Sateré-Mawé já está há nove minutos com uma mão dentro da luva cheia de formigas tucandeiras: se permanecer um minuto mais, conseguirá passar no teste. Na hora mais quieta da madrugada, uma mulher encara  uma folha de papel em branco e encosta o grafite do lápis no canto esquerdo superior. Ela ainda não tem ideia do que vai escrever. O mesmo homem que mais cedo atravessou a rua agora fuma um cigarro olhando para a Nossa Senhora de Copacabana e se sente estranhamente forte. O guerreiro conseguiu permanecer dez minutos com a mão dentro da luva e agora arde em febre, mas sorri.  A mulher começou a escrever uma história estranha sobre uma menina que encantava serpentes e se deixava picar. O veneno, mortal para todos, nela operava como um remédio fortalecedor. O homem termina seu cigarro e decide que é hora de trocar a fechadura da entrada, liga para um chaveiro como quem telefona para um amor recém chegado. O guerreiro arde em febre, mas bebe caiçuma e olha vagarosamente o corpo da mulher que ama e com quem agora poderá se casar. A escritora descobre que vai ter um filho e abandona a história da encantadora de serpentes, mas não para de sonhar com ela. O guerreiro Mawé sai para caçar e faz uma pausa num igarapé. Há uma onça que o aguarda do outro lado, ainda não se sabe quem triunfará. O homem anda na rua e durante duas horas inteiras não pensa naquilo que mais  dói. O mundo segue reluzente e impiedoso, é possível não haja nenhum sentido que determine o que vai permanecer  e o que se arruinará. Mas pode ser que haja uma força, mágica e insurgente, que nunca pare de aproximar o que finda daquilo que ainda agora acaba de nascer. 

terça-feira, 8 de setembro de 2015

30


Proponho-me a escrever e tornar público um texto por dia durante trinta e um dias. A vida passa a transladar em torno dessa insensata operação. Escrever é fazer ecoar nas regiões côncavas de mim toda voz que não a minha. Estar tão atenta à oquidão dói feito uma dor de ouvido, transformação de um anatômico vazio em impiedosa atenção. E escrever nunca teve a ver com remediar a dor, tem a ver com sentir o peito arder em brasa e não dizer uma palavra sobre isso. Tem a ver com sentir o peito arder em brasa e dar espaço para a voz da arma que fere. Quando escrevo só tenho uma hipótese: a de que o coração de tudo que há é um vazio prenhe de transformação. É preciso me deixar arrebatar pelo que é feroz e ainda assim saber que estou fingindo. É preciso tornar radicalmente indistintos o inventar e o estancar. Entrelaço escritura e vida e, agora ao fim, percebo que não se trata nem de abandonar o vivido em prol da escrita e nem de transformar o texto em reflexo de experiência qualquer. A escrita opera na vida e, portanto, expande a si própria enquanto alarga o vivível. Escrever é engolir espadas. Se a escrita chega a roçar o fundo do corpo não é porque de lá advém, é antes porque se pode transformar um corpo estranho naquilo que há de mais próprio. Roço o que é mortal e me salvo à custa de saber abrir espaço para a inconsistência. Escrever, é preciso fazê-lo com o respiro entre os ossos, com o oco da garganta, com o instante entre uma batida de coração e a outra. Escrevo porque nada coincide inteiramente consigo próprio e pode-se reinventar o mundo  bordejando essa fenda com o nome pulsante do desejo, ou de seu rutilante par, a diferença.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

29



Madrugada na cidade grande. Eu atravesso a rua e você pede licença para chegar até o corredor do avião. Eu atravesso uma via na contramão enquanto você contempla a cidade a 3000 pés. Noite alta na cidade quente, e o calor vence silenciosamente as ventanias esporádicas e então se restabelece como atmosfera. Eu estou no meio de uma multidão que tenta se esquecer cada qual de uma promessa, você dorme em altitude de cruzeiro. Eu me esquivo de uma armadilha enquanto você passa a cem por hora pelo aterro. Desconheço a identidade de quem te espera no sofá, você também não faz ideia dos destinos que prescrevo ao taxista. No une, nesse instante, a indiferença à chuva enquanto todos correm pulando poças, errando a mira, tapando o alto da cabeça com algum volume. Eu jogo baralho num quarto de hotel, você encara o Edifício Noite através da janela em uma edícula.  Me equilibro em um pé só dentro de um banheiro tentando tirar a meia-calça, talvez passe pela sua cabeça a ideia das minhas pernas nuas atravessando o temporal na noite quente, você agora talvez tente voltar para casa ou busque por alguma coisa crucial. Os contornos esmaecem nessa hora em que noite e dia se confundem e o alaranjado solar mancha o azul profundo, o momento da virada é  inexato mas inconfundível. Quando o dia irrompe, estamos distantes, com apetites diversos, mas com a mesma sensação de havermos desperdiçado algo precioso. Eu encontro alegria na experiência do dispêndio. Quanto a isso , sobre você, eu já não sei. 

domingo, 6 de setembro de 2015

28



Matéria frágil rente às ventanias, às chuvas abrasadoras, à margem dos sumidouros. Ao sul preparam os abrigos e algumas barricadas. Aqui, no centro, testemunho uma separação, dois corpos que se sustentavam mutuamente já não se entendem mais. Um homem encanta uma serpente com sua flauta, os corpos se acusam e se traem, eu hipnotizo minhas próprias pernas emitindo um mantra que mistura o som do seu nome, algo que remeta ao enigmático futuro e a notícia da incompatibilidade que há entre o medo e o amor. A matéria frágil somos todos nós andando de um lado para outro atrás de algum rompante, algum alívio, alguma inevitável inspiração. A ameaça são as quedas, os embates, o que emerge e o que se infiltra, os entendimentos sempre sucedidos por dura incompreensão. Ao norte os feitiços já foram conjurados, filtros de amor e bonecos de vudu, agulha certeira bem no lado esquerdo do meu peito, explosão no céu agora. E então essa vontade de sair correndo em disparada derrubando obstáculos e reerguendo os vencidos. Vontade de consultar oráculos para confirmar que esse espaço em branco no centro  da minha linha da vida não significa nada além de um profundo amor pela indefinição. Talvez você já esteja muito longe, talvez pense que nada vai se alterar. Mas existe aquele instante imprevisível quando tudo muda sem remédio, aquele instante sagrado ao qual me lanço na hora precisa e derradeira que tem o nome de agora.    

sábado, 5 de setembro de 2015

27




De vez em quando você desaparece bem na minha frente. Ainda bem que ainda hoje limpei o vidro das janelas e a essa hora encaro farol lá longe que ilumina a silhueta praia e depois a superfície rugosa do mar. Sinto sua falta, caminho. Vou até o mar molhar os pés a despeito do inverno rigoroso. Se você estivesse aqui, colocaria seu braço sobre os meus ombros ou andaria um passo atrás de mim encontrando e perdendo constelações no céu.  Mas eu sou da rua, você sabe, a rua é meu farol. Toco seu cabelo em outra cabeça, beijo seus ombros em uma cama onde nunca dormi. Mas ainda estou a poucos passos de casa, me guio por algum conjunto de estrelas que você inventou e nomeou e também pela luz intermitente que passa lambendo o meu o rosto agora. Nessa hora certa, Vênus sai de sua órbita retrógrada e volta ao seu trajeto habitual como se nada houvesse. Outra estrela ou planeta sai rodopiando de uma forma inconsequente por esse mesmo céu. Esqueci os sapatos, os deixei rentes ao seu canto preferido da sala. Alegria imensa, a sala cheia de flores, um som estridente e antigo na vitrola, você lendo um livro que te explicava a vida das plantas e dos minerais. Ou um livro de crime, seu cenho franzido, a coluna descolada da espalda.  Chego ao cais e a noite treme. Uma mulher vestida de tigre briga com um faquir. Há quem solte uma gargalhada sem fim. Consciência extrema de estar só bem no centro de um abraço. Sensação de estar rigorosamente desperta bem no centro da noite. Não me abandonam meus guias, estável banalidade e inexplicável magia. 



sexta-feira, 4 de setembro de 2015

26




Por enquanto têm o passado para supor as dimensões e o formato do que os atingirá. Há um corpo que se debate enquanto sonha, outro que vem correndo de longe e para no instante errado querendo tomar fôlego. Há corpos que se banham, outros saem para caçar ou porque sentem o chamado, os que são dados como desaparecidos, os que se aninham junto ao fogo. Ninguém conversa sobre o ataque, mas  há  quem não pare de lapidar as pedras até estejam com formato e  fio de lança. Conforme se aproxima a investida, as festas se tornam mais rigorosas. Os que se amam experimentam delícias incalculáveis. Os que gostam de beber e comer se fartam e se embriagam como nunca. Há os que fazem viagens para dimensões sequer nomináveis. As crianças brincam de erguer e destruir reinos feitos de pedras. Caçam peixes no raso, colecionam cascos de moluscos e caracóis. O melhor caçador chora sem cessar. Os idosos experimentam beberagens e dançam até amanhecer. Os que leem a sorte se mantêm tranquilos, continuam trabalhando na roça, concertando telhados, capinando o mato. No momento do assalto, há os que se lançarão inadvertidamente sobre o perigo, os que recuarão até o ponto de onde jamais conseguirão retornar e os que se manterão de pé até o último segundo, sem convicção na vitória e nem na derrota, encarando o perigo sem certezas, ou seja, lutando.   

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

25



Os dias de colheita superam em muito os dias de plantio, as incursões verticais são regulares, mas percebo que conquisto, pouco a pouco, a extensão dos solos. Encaro os quatro pontos cardeais do elevador, faço a volta completa, avanço extensamente enquanto simulo resignação. Você se empenha em tirar proveito dos colapsos, está sempre atento ao que acumula e precisa escoar. Diz que a vida se sustenta na economia dos excessos, que queria aproveitar a promoção. Conquistamos muitos metros a pé, eu sempre atenta à silenciosa ginástica com a qual alargo meus passos, à distensão dos deslocamentos à altura do chão. Dois salgados e um refresco, suas pernas coladas às minhas por baixo da mesa. Ouvimos eclodir a revolução na Cinelândia, suas mãos investigam meus joelhos enquanto eu catalogo pedras, não conforme a tipologia dos minérios e as eras geológicas, mas em relação ao quanto se deslocaram ou se mantiveram paradas. Você questiona a procedência da comida, tudo parece muito perigoso, avançamos. É verdade que ainda não nos conhecemos, mas nos une a urgência de uma cumplicidade. Mantemos as armas abaixadas, mas sempre à mão. Você propõe a invasão da Biblioteca Nacional, diz que devemos queimar todas as páginas que propõem a ideia de origem, que toda crença no começos é culpada. Eu acredito na força dos espaços, desejo o alargamento das praças e das planícies, a demolição das fachadas, a destruição dos anteparos. Mas suas mãos conspiratórias, prontas para destruírem documentos e macularem obras raras,  estão agora joelho acima e falamos da memória dos dias amplos, a liberdade de avançar sem rota, os resgates. Não nos conhecemos, mas, enquanto nos tateamos cegamente, os efeitos rompem seus pactos com as causas, os muros caem, se faz evidente a arbitrariedade das catalogações. A revolução irrompe sem heróis,  não nos conhecemos e nos investigamos sem crença. Toda a fé no que acontece sem anuncio nem premissa. 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

24


construo um parapeito  
arrasto móveis centenários
crio uma disposição  que o feng shui diria trágica
sal atrás das portas
arruda, pimenta, comigo ninguém pode 
entro no vagão por um triz 
escapo de acidentes, beiro os desastres
sou toda bondade, cedo alegremente meu lugar 
mas ninguém sabe o que planejo
do demorado trabalho que resultará
num estado de lucidez
alheio à diplomacia, ao bom senso
ninguém sabe quantos já fiz cair na armadilha
e menos ainda que todos estão sempre loucos para cair 
nisso consiste o feitiço
cuidar para que haja a grande possibilidade da perda
nada resiste a se abandonar
hoje é dia útil, sorrio para estranhos
ignoro grosserias 
dou mais um  passo na direção do que evoco
tão imaginária quanto fatal, é natural a comunhão
com a terra que estremece, o céu que oscila
as nuvens que se abrem
regidos pelo descontrole que nos une agora
conforme a mesma contingência 
que  traçou meu destino e de novo o desmente    

terça-feira, 1 de setembro de 2015

23




Coração, me dá um tempo. Não bastasse esse cachorro que não para de latir, devem ter ido viajar e esqueceram o bicho na área de serviço. Pera aí que eu volto já. Só vou ali na Atlântica tomar um ar. Fiquei de pagar o homem da feira, aproveito e trago um frango assado pro almoço. Mas vem você aí com essa desconfiança, essa atenção ao inexistente. Não me chateia não que  meu dente tá doendo e eu to morta de medo. E se for canal? Acho que vou na igreja, sessão do descarrego, pra ver se me curo de uma vez. Tá rindo do que? Acha que eu não tenho a minha camaradagem com Deus? Vai vendo, meu querido, Deus me dá a maior força. Depois eu vejo o que a gente faz com esse rombo no sofá, esse desencontro, esse apego desesperado à matéria rala que nos mantém. E qual que é o problema? Eu só gosto é de dar essa voltas assim sozinha, colocar os pensamentos em ordem, alimentar os bichos, deixar os pombos da pracinha bem gorduchos. Depois eu aproveito dou um alô pras meninas lá no clube. Não tem nada de má influência não, meu filho, tudo que eu faço de errado é porque  vem um demônio me tentar, ou então é porque eu quis mesmo. As meninas do clube são ótimas, você vai ver. A gente gosta é de comer fritura, passar óleo bronzeador e tirar cochilo em cima da boia. Caramba, agora que eu lembrei do sonho que eu tive hoje, escuta só.  A gente morava num casarão, vinha aquela sua ex-namorada e fazia uma faxina daquelas. Eu achava estranho, mas nem reclamava não. Aí você saía pra pescar, vara na mão, cesta e um chapeuzinho. Era um dia lindo, eu botava um vestido levinho e ficava dançando pela casa com cheiro de pinho sol. Aí de repente eu tinha essa ideia que era quebrar todas as  louças na cabeceira da cama, colocar seus livros da banheira e encher de espuma. Eu pegava todos os seus livros de literatura russa e toma de sabão. No sonho isso era a maior piada, eu tinha certeza que você ia morrer de rir quando voltasse. No fim, eu escancarava as janelas e soltava o teu canário belga que saía voando todo alegrinho. Agora eu vou ali, não demoro nada, mas também não precisa me esperar.