A dança ou A anatomia dos Anjos
para Holbein Menezes
Há uma outra versão que diz que quando ele chega ao
céu os anjos dançam. Incontáveis querubins andróginos o saúdam com um baile de
samba de gafieira. Entre zig-zags, malandragens, inversões, travadas, abraços e
enroscos, os anjos riem. Ele fica de canto, só olhando, os pequenos pés
afundando as nuvens fofas. De vez em quando um querubim tropeça e é a maior
troça. Aos anjos só é permitido fazer festa quando uma alma alegre é acolhida.
Suas grandes asas atrapalham um pouco a movimentação, mas também criam uma
impensada forma de erotismo. As penas roçam os olhos angelicais, acariciam seus
braços, por vezes se prendem por um instante entre suas pernas. Quando dançam,
os anjos elaboram seu complicadíssimo sexo. Feito de purezas dilatadas e
perversas conjunturas de cócegas e ânsias. Quando acontece esse baile é possível que na
terra chova, ou que ventanias exageradas varram as ruas e os campos nus. O
tremor dos anjos bailarinos afeta a terra sobremaneira, por isso é sabido no céu que alegria é a força mais
perigosa que há.
A anatomia dos anjos é uma coisa interessante. Uma
espécie de maquinaria, um labirinto de carne e voo. Quando ele chegou ao baile, se impressionou primeiro foi com aqueles corpos. Diferente do que se pensa, os
anjos não são menos carnais que os humanos. São apenas corpos densos que o
Misterioso dotou com longas asas. Pura humanidade alada. Não são perfeitamente
belos e santos, talvez um pouco pálidos e entediados, isso sim. Uma anja que já
tinha cansado de dança chegou perto dele e lhe deu boas-vindas:
- O céu dança sua vida. Esteja em casa.
Olhou bem para a anja e viu que parecia uma mulher
do norte, uma cabocla, mistura de negra com índia, de lábios grossos, cabelo
escuro e olhos puxadinhos. Suas asas não eram perfeitamente brancas, tendiam
mais para um ocre sutil. Outros anjos tinham as asas cor de chumbo; essas, em
sua opinião, as mais garbosas. A
anja-cabocla lhe olhava com certo interesse amedrontado, um ar de dissimulação.
Quando conseguiu falar, perguntou:
- Mas o que é isso, afinal?
- Esse é o céu em festa. Sempre que sobe até nós
uma alma verdadeiramente alegre, temos permissão do Misterioso para dançarmos e
ouvirmos músicas populares. Lá pelo quinto dia, também poderemos beber vinho.
Sim, porque a festa dura vinte dias e vinte noites terrestres. O Misterioso
fica meio contrariado, porque diz que o vinho bebido assim para a festa, e não
na sagrada comunhão, é homenagem aos deuses antigos, é Bacanal, entende? Mas
trato é trato. Nós sustentamos as arquiteturas celestes, vigiamos o obscuro e a
claridade do humano, levamos mensagens para o mundo inferior, passamos dias
meditando diante de claridades, assistimos ao balé do Espírito que insiste em
tremular sobre as águas por um velho hábito. Em troca de tudo, podemos fazer
festas quando uma alma verdadeiramente alegre vem até nós. É a Lei.
Ele estava estarrecido. Um pouco com aquela
história toda, com aqueles tratos, com o fato de ser ele a alma alegre. Mas, sobretudo,
porque a anja-cabocla era uma perdição. Como podia uma anja ser assim tão
sensual? Os lábios carnudos, o sotaque do norte, um hálito de cajá. Havia
muitas coisas que, aquela altura, desejava saber, uma delas era se lhe seria
permitido flertar com aquela anja, ou mesmo chegar a toca-la. Ali, era preciso
reaprender tudo, até a arte do cortejar.
- Escuta, como é o teu nome ?
- É Lidiane.
- Ô Lidiane, não tá parecendo que essa festa é para
mim não. Eu não estou entendendo nada, será que alguém pode me explicar alguma
coisa ?
- Você sabe dançar ?
Não sabia. Mas notou que ali, sobre as nuvens, seus
pés adquiriam uma sabedoria própria. A gafieira foi substituída por um Fox Trot, percebeu que conseguia dar
incríveis giros, viradas e twists. Dançou por muitas horas, parando apenas
quando passava um avião muito perto da nuvem onde estava. Os anjos estavam
acostumados, mas ele levava um enorme susto cada vez que isso acontecia. Quando
anoiteceu, começaram a dançar um forró arrasta-pé e os ânimos se exaltaram.
Sentiu que era hora de buscar alguma explicação. Notou que um anjo bastante andrógino observava tudo de
canto. Magro, negro, alto, cabelos cheios, começando a virar um black
power e traços bastante delicados,
deixando em dúvida o gênero da criatura em questão. Decidiu puxar assunto.
- Oi, você
também não dança forró?
- Na verdade
danço muito bem, eu queria mesmo era falar com você.
Tinha a voz aguda e aveludada, mas ainda poderia
apostar que era um rapaz. Sua pele era belíssima e reluzia sob a noite
estrelada. Tinha olhos que cintilavam, como quem olha para algo perigoso. Sua
asas eram alvas, usava uma camiseta preta de algodão e calças justas também
pretas. Seus sapatos pareciam pantufas, só que mais modernas. O anjo continuou:
- Eu vi você dançando. É de fato uma alma alegre.
Apenas os alegres conseguem dançar em meio à incompreensão.
- Mas eu não gosto de não entender. Você pode me
explicar como é o céu? Por que eu estou aqui e como será minha estadia?
- Olhe, aos anjos é vedada a possibilidade de dizer
verdades. Segundo as Misteriosas Leis, dizer verdades é um dos pecados
capitais, nos arremessaria direto ao
submundo, para que ardêssemos, corpo e asa, na caldeira dos Contadores de Verdade.
- Mas então, terei que ficar aqui sem nada saber?
- O Misterioso, porém, tem misericórdia. Deixa que
nos comuniquemos com o que há de mais puro no ser: o corpo.
Por essa ele não esperava. Não parecia do caráter
de Deus considerar o corpo superior às verdades metafísicas, aquilo o
surpreendia verdadeiramente. Mas ainda não entendia como faria para obter
qualquer informação. Estava cansado, com fome, queria um pouco de privacidade
e, além de tudo, começava a sentir os sinais de uma enxaqueca terrível.
- Mas, então, como você se comunica pelo corpo?
- Você pode tocar em mim, cada parte do meu corpo,
e do seu também, tem um pensamento. Está nos Secretos Escritos que o ser humano
se engana muito acreditando ser a cabeça o centro da razão. A razão é elétrica,
sanguínea, corre na pele. Basta que você toque na parte do meu corpo que quiser
que verá o que meu corpo pensa e sabe.
Aquilo mais parecia roteiro de pornochanchada. Um
argumento metafísico, até sublime, mas que só pode funcionar com algum tipo de
sacanagem. Sentia que aqueles anjos estavam tirando uma com a cara dele. Mas o
anjo estendeu sua bela mão e, sem pensar muito, ele o tocou. Foi como se seu corpo fosse tragado para
dentro de uma esfera luminosa. Primeiro só conseguia enxergar a luz, aos poucos
sua visão foi voltando ao normal. Quando pode olhar, viu que estava em outra
nuvem, esta isolada e silenciosa. Olhava para baixo e, estranhamente, podia ver
tanto à distância, como de perto, dependendo apenas do seu desejo de ver. De
repente, soube.
Entendeu a fragilidade dos mistérios além-vida. Como se levasse
um choque, ele recebeu um lampejo revelador: os anjos são aquilo que querem ser.
Em verdade, os anjos eram apenas homens e mulheres que acreditavam, em vida,
que quando morressem virariam anjos. O Mistério, de fato, era a fé. Dependia da
criatividade de cada mente fervorosa o seu destino na Eternidade. Mas “fé”
ainda não era a palavra certa, mais do que crer, era preciso desejar. Os anjos
eram aqueles que desejavam sê-lo. Então
a Lei secreta que rege o universo era o desejo. Daí uma certa androginia na
maioria dos corpos angelicais, fruto desse desejo bruto que transborda o gênero
como é entendido na Terra. Os Anjos, acima de tudo, eram os que desejavam para muito
além do corpo. Queriam ser meio macho, meio fêmea. Queriam o dom impensado do
vôo. Queriam a carne em brasa toda suspensa em penas. Queriam ser a própria
medida do impossível.
Com outro choque, soube então porque não lhe coube
esse destino: nunca em vida havia desejado ser anjo após a morte, bem pelo
contrário, se sentia muito mais tentado a dar uma olhada no que se passada no
submundo, nas obscuras e fervorosas câmeras do Outro. Então, com a sensação de um súbito arremesso,
viu-se em uma nuvem muito alta, de onde já não podia saber mais nada da Terra.
Soube que estava muito perto do limite onde se pode chegar sem se queimar no
Sol. Soube que estava só. Ali, o esclarecimento que havia obtido lhe parecia
uma triste notícia. Se os homens viviam, após a morte, aquilo que em vida
desejavam viver, por que é que ele estava ali naquele céu banal repleto de
clichês? Nunquinha que em vida tinha desejado isso para si. Então, como se um
soco no estômago lhe tirasse o fôlego, veio-lhe a resposta: o texto.
Era de conhecimento do Misterioso, esse grande
amante das letras, que ele havia deixado por escrito um longa descrição de como
seria sua experiência no Além. Havia descrito, em um belo texto, longos
acontecimentos em um céu como aquele: feito de nuvens, anjos e a notícia de um
Deus ausente. Seus anjos eram burocratas falastrões que, por ora, apenas
dançavam. Estava tudo planejado para que, em seguida, tivesse a oportunidade de
viver o céu assim como ele havia desejado, a ponto de tê-lo criado por escrito.
Sentiu então o fervor da raiva subindo-lhe pelo corpo: eles não haviam
entendido nada!
Acontece que seu desejo não era pelo céu, mas pelo
texto! Seu texto, por sua vez, não era confissão de um desejo escuso, nem
atestado de nenhuma fé. O sentido do texto se fazia na escritura e só texto
poderia revelar o seu próprio mistério, quem o escreve pouco sabe sobre ele. O
escritor só sabe de uma coisa: do irresistível chamado da escrita. Seus temas,
seus argumentos, suas aporias nada mais são que vias por onde percorrer para frequentar o
texto. Esse sim, seu verdadeiro interesse.
Quando voltou à nuvem, o anjo estava com os olhos
arregalados pois havia compreendido que o Misterioso – pasmem – tinha cometido
um engano. Não era aquele, pois, o destino-desejo daquele homem. O anjo silenciosamente recolheu sua mão e pediu
que ele o seguisse. Andaram na direção de uma pequena torre de pedras que, até
então, não havia notado. Dentro dela, havia uma escada em formato caracol, que
descia rumo a uma escuridão indevassável. O anjo disse:
- É preciso corrigir um engano. Seu destino é
outro. Esse você encontrará quando descer por essas escadas.
Ele sentiu um novo
ânimo lhe afetar o corpo, mas também um certo medo. O que encontraria
ali? O anjo continuou:
- Aqui é o paraíso dos escritores: a biblioteca.
Nunca soube como é de fato, pois não é o meu. Olha, a verdade é que todos vamos
ao paraíso depois da vida. Não importa se o sujeito deseja o inferno e vai para
lá, pois em verdade aquele inferno é a sua delícia, seu ardor. Houve um erro,
digamos, de interpretação de texto. O
Misterioso, através dos meus olhos, deu-se conta disso agora quando você
acessou os Mistérios. Seu desejo não era o céu como escreveu, mas o próprio
escrever. E é por isso que você vai ser transferido. Mas saiba que você
conseguiu aquilo que talvez todos os escritores desejam: você confundiu a ordem
perfeita do Mistério. Agora descerá em direção aos Mistérios da Biblioteca. Boa
viagem.
Enquanto ia descendo as estreitas escadarias,
sentiu um fervor de orgulho animando o peito: conseguira, trapaceara o próprio
Deus. Sempre tinha tido admiração por João Grilo, esse astuto enganador, e
agora havia superado mesmo a mais brilhante de suas façanhas. E não sabia bem
como, só sabia que tinha sido assim. Antes de mergulhar no obscuro e encontrar
seu definitivo e correto Paraíso, pode ouvir a Misteriosa Gargalhada. Deus ria
de seu próprio engano. Quanto a ele, estava orgulhoso e animado, mas lamentara
uma única coisa: não poder mais dançar com Lidiane. Ô Anja deliciosa!