segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014




- Tua pele é sombra, poça d’água no escuro. Pressinto teu cabelo emaranhado. Que cultivas entre os fios? Sementes, filtros de amor, ossos de reis assassinados, uma pirâmide com a Esfinge dentro? Quais perguntas enroladas nesses nós? Com tua testa sustentas a noite, o riso dos homens tontos, a alegria de todo deslize. Rasga o dia com teus dentes. Guardas uma onça dentro da tua boca tensa, anunciam insurreições os teus quadris. No peito, um milhão de pernas correndo com a alegria da revolta. Se coloco o ouvido rente a ti, escuto o farfalhar de asas, o mar revolto, o rugir da terra, um grito de pavor. Agitam minhas pernas pensar nas tuas afundando a terra escura. Queima a minha boca pensar na tua garganta aberta para o dia ainda tão sem fim. 

- Cultivo a rigidez de uma mulher diante do atirador de facas. Ando rija entre os porteiros de Copacabana, os entregadores de panfletos, as meninas lindas de vestidos leves. O medo do assédio, o medo da água na boca, dissimulada seriedade. Reajo alucinada aos homens que catam coisas do chão, vejo sobre eles o manto dos profetas, dos santos, dos espertos. Preciso me cuidar para não acabar como eles, só eu e a rua plena, que tremor.

- Eu conheço o chão, o corpo das esquinas. Eu tateio as lajotas, investigo os buracos mais prosaicos, me ponho estático diante de um degrau. Sou um dos teus profetas? Um desses homens que pernoitam sob os tuneis cumprindo desígnios divinos, esses tão miraculosos que só poderiam ser realizados por um homem puro: um sem casa, sem família, sem o alfabeto grudado na pele. Um homem desses que conseguem ler os mandamentos no pelo de um cão sarnento e são vigiados pelo eterno dogma dos céus tediosos. Toco teu braço e teus ossos recuam, tua pele oscila um pouco acima, como se estivesse desgrudada do esqueleto. Vagueias? Conjuras? Que guardas no vão entre a pele e o osso?

- O olho do homem que me criou. Suas mãos ásperas de lobo manso. Seus dentes alvíssimos arranhados de bicarbonato. Sua pele espessa. Junto desse, contabilizo os dois olhos que tenho na cara e assim enxergo o mundo. Do pai herdei um olho no avesso da pele, da mãe os ossos que se escondem. A pele que avança é mesmo minha, um tipo de dança que inventei, é assim: fecho os olhos no quarto escuro ou no meio de uma avenida louca, coloco as mãos em forma de prece bem rígidas rente ao rosto. Dentro da boca, a língua dança. Todo o resto denuncia um corpo penitente, até meio santo. Tipo desses que meditam enquanto o querosene aguarda o fósforo riscar. Mas minha invenção é a língua bailarina. Avança e recua em direção ao céu da boca, as gengivas, ao escuro da garganta. Quando danço, minha pele alteia, ganha uma vida toda dela. Meus ossos repousam dentro de um corpo que não cessa de nascer.

- É aqui, cheguei. Estou em casa. Obrigada pela companhia.

- Calma, não larga ainda do meu braço. Eu te guiei com os olhos, agora me leva um pouco pela escuridão. Vou fechar as pálpebras e você me diz alguma coisa da cegueira enquanto me leva até a porta tua casa. Um dois três e já

- Fôlego nenhum bastava. Quando eu era criança, sempre queria ir mais além do corpo. Os músculos ardiam, mas as pernas tinham sede de correria, de pontapés. A visão já esmaecia e eu conhecia o mundo feito um boi nervoso, desses que soltam para correr na multidão. O corpo da única mulher que olhei sabe como era? Comprido, espesso, negro, brilhante, violento. Tinha umas cicatrizes no quadril. A prima que se despia nos banhos de cachoeira, que deixava frestas milagrosas nas portas dos banheiros, a prima que cruzava as pernas lentamente. Quando ceguei era já tinha um filho e esperava outro. Eu me embolando para dentro e ela colocando uns corpos no mundo fora. Cegar foi assim, minha filha, o mundo de relance, o corpo de uma mulher linda e depois só a notícia dos nascimentos e das mortes. Vê só, cegar não foi muito diferente de viver. A minha casa é aqui.  

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