quarta-feira, 4 de junho de 2014

vida forma


“Os fogos dos astros e a aurora boreal estremecem no que é, apesar de tudo, a noite negra.”  Marguerite Yourcenar


Afirmativa sem reservas: amar sem exceção. Era noite e andávamos, eu tropeçava nos teus pés, caíamos com a barriga rente ao chão. E de tudo sobrava um riso, uma espécie de loucura. Depois eram teus dedos que me abraçavam, eu dançava com as tuas mãos. Uma lenta e corrompida valsa com teu indicador, um tango triste com o anelar e um samba sem reparos com o dedo menor. Teus olhos me acompanhavam mudos enquanto eu dizia da minha paixão: que toda existência fosse uma dignidade.  Então tu seguravas meu braço, com feroz delicadeza, desenhava um invisível traço no meu peito e dizia: a vida, minha pobre criança, é muita coisa, mas é principalmente forma. Então eu revirava os olhos, tomava mais um gole, calava, depois repetia sem parar frases difíceis, como a gente vai embora daqui, eu posso dormir onde você mora, que ônibus passa lá, por que é que os céus não desabam, o que é mais importante reter dessa noite, será que dá pra nadar até aquela ilha, como a gente volta para casa, qual o limite do pensamento. O  mar era assombrado de mitos e lavamos nossos corpos com navegações, tormentas, espantos, sereias ardilosas e pequenos peixes prateados.  Te disse que eu queria ser um caleidoscópio, um lago. Isso te fortalece ou  te fragiliza? Perguntavas depois de morrer de rir.  E dedilhavas meus pés: passavas as mãos por cada osso, subias para as canela e depois pulavas direto para as têmporas. Teus ossos são firmes, parecem raízes, parece a estrutura de um templo, um emaranhado de galhos. Falavas. A vida não tem sentido, a essência não perfura, fica rente. E, se não tem sentido, só pode ter forma, semblante, direção.  Viver é desenhar o tempo.  Eu era tomada de alegria lampejante de uma morna compreensão. Me erguia de súbito, dançava de um jeito leve e torto, beijava tua boca com ternura e depois rangia meus dentes nos teus. Entendi que o limite do pensamento só poderia ser esse: amar a humanidade inteira, sem exceções. Mesmo aquele que me mata. Mesmo aquele que fere. O amor pela diferença radical era o limite. Não repetir o gesto que aniquila era o desafio mais apaixonado do meu corpo. Ser apenas aquilo que diz sim: afirmar a vida forma.  Era muito tarde e tínhamos medo de tanta sombria luz. Porque nada daquilo tinha parentesco com a eternidade. Falei que o efêmero doía. Você disse que a eternidade era o outro nome do instante. Que se eu fechasse os olhos ia entender que o mais importante era nascer e morrer com a mesma fúria, o mesmo choro alucinado, a mesma aceitação. O que é aquilo que tu mais amas, perguntei.  Poder recomeçar. Frustrar a encarnação. Mover-se junto dos movimentos do céu.  Ter sede pela ausência de todo nome. Êxtase telúrico.  Mas  tu és a própria terra, eu pegava nos teus ombros.  Para te habitar é preciso estar disposta a morrer em ti. É preciso confiar em tua imprevisível ordem.  De repente, amanheceu, e a luz era uma fera.  Teu som me embalava pela casa. Já quase não te via.  Pra onde vamos?  Te perguntei enquanto seguia com alegria e tropeço na direção oposta ao medo. 

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