“Os fogos dos astros e a aurora boreal estremecem no que é, apesar de tudo, a noite negra.” Marguerite Yourcenar
Afirmativa sem reservas: amar sem
exceção. Era noite e andávamos, eu tropeçava nos teus pés, caíamos com a
barriga rente ao chão. E de tudo sobrava um riso, uma espécie de loucura. Depois
eram teus dedos que me abraçavam, eu dançava com as tuas mãos. Uma lenta e
corrompida valsa com teu indicador, um tango triste com o anelar e um samba sem
reparos com o dedo menor. Teus olhos me acompanhavam mudos enquanto eu dizia da
minha paixão: que toda existência fosse uma dignidade. Então tu seguravas meu braço, com feroz
delicadeza, desenhava um invisível traço no meu peito e dizia: a vida, minha
pobre criança, é muita coisa, mas é principalmente forma. Então eu revirava os
olhos, tomava mais um gole, calava, depois repetia sem parar frases difíceis,
como a gente vai embora daqui, eu posso dormir onde você mora, que ônibus passa
lá, por que é que os céus não desabam, o que é mais importante reter dessa
noite, será que dá pra nadar até aquela ilha, como a gente volta para casa,
qual o limite do pensamento. O mar era assombrado de mitos e lavamos nossos
corpos com navegações, tormentas, espantos, sereias ardilosas e pequenos peixes
prateados. Te disse que eu queria ser um
caleidoscópio, um lago. Isso te fortalece ou te fragiliza? Perguntavas depois de morrer de
rir. E dedilhavas meus pés: passavas as
mãos por cada osso, subias para as canela e depois pulavas direto para as
têmporas. Teus ossos são firmes, parecem raízes, parece a estrutura de um
templo, um emaranhado de galhos. Falavas. A vida não tem sentido, a essência
não perfura, fica rente. E, se não tem sentido, só pode ter forma, semblante,
direção. Viver é desenhar o tempo. Eu era tomada de alegria lampejante de uma
morna compreensão. Me erguia de súbito, dançava de um jeito leve e torto,
beijava tua boca com ternura e depois rangia meus dentes nos teus. Entendi que o limite do pensamento só poderia ser
esse: amar a humanidade inteira, sem exceções. Mesmo aquele que me mata. Mesmo
aquele que fere. O amor pela diferença radical era o limite. Não repetir o
gesto que aniquila era o desafio mais apaixonado do meu corpo. Ser apenas
aquilo que diz sim: afirmar a vida forma.
Era muito tarde e tínhamos medo de tanta sombria luz. Porque nada
daquilo tinha parentesco com a eternidade. Falei que o efêmero doía. Você disse
que a eternidade era o outro nome do instante. Que se eu fechasse os olhos ia
entender que o mais importante era nascer e morrer com a mesma fúria, o mesmo
choro alucinado, a mesma aceitação. O que é aquilo que tu mais amas, perguntei.
Poder recomeçar. Frustrar a encarnação.
Mover-se junto dos movimentos do céu. Ter
sede pela ausência de todo nome. Êxtase telúrico. Mas tu
és a própria terra, eu pegava nos teus ombros.
Para te habitar é preciso estar disposta a morrer em ti. É preciso
confiar em tua imprevisível ordem. De
repente, amanheceu, e a luz era uma fera. Teu som me embalava pela casa. Já quase não te
via. Pra onde vamos? Te perguntei enquanto seguia com alegria e
tropeço na direção oposta ao medo.
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