segunda-feira, 15 de setembro de 2014



Não era pelos olhos que lembravam um mar antigo, cheio da promessa de vida misteriosa estalando na pele prateada dos bichos insones. Também não era pelas pernas fina e longas, corpo de adaga oriental, cheia de sensual assimetria e os sons estranhos de uma estepe esquecida ecoando em seus recuos. Tampouco pela língua que rangia contra os dentes finos, proferindo as palavras mais simples do léxico, pegando os objetos pelas pernas, voz com textura de chão. 

Era sim pelo vento frio que carcomia seu rosto avermelhado em junho, pelos caracóis que matou suavemente com os dedos dos pés no jardim de infância, pelo amor dolorido ao cão de pelo negro que teve até os dezenove e que um dia fugiu. Era, sobretudo, pela devoção aos trabalhos noturnos: catar o lixo, sonhar, manchar o branco imaculado das toalhas com o preto dos olhos. Pelo manejo dos restos diurnos com elegância desvairada, o passo em linha torta, a cadência dos membros cansados. Era pela silenciosa compreensão da vida, pela aceitação corajosa de tudo que não podia tocar, pelo corpo simples e sem grandes cosméticas, porque lhe convinha as orelhas nuas, a boca crua, os cabelos suavemente impróprios. 

Era importante  que soubesse que nunca foi pelo seu rosto de angulações raras, pelos seus dedos finos, pelos panos orientais que lhe cobriam peito e ventre. Que sempre foi pelo tesouro que enxergava em cada erro, pelas ingênuas esculturas que fazia com caixas de feira abandonadas, pelas noites que passava com o coração explodindo no peito, pela alegria sem sentido, por sua imensa afinidade com a terra, pelo seu jeito de dançar sem jeito, porque sempre foi onde ela esquecia de ser que eu podia vê-la, onde ela suavizava os contornos e afrouxava a afirmação de que estava lá é que se fazia rara. Onde mostrava que era pura falha leve podia-se ver que reluzia.   

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