quarta-feira, 2 de julho de 2014

O diabo no caminho



Diabólico é o caminho, isso não deixa negar a aproximação feita na cultura brasileira entre o orixá africano Exu e o diabo judaico-cristão. O nosso Exu reina sobre as encruzilhadas, a sobreposição de caminhos. Exu, em certo sentido, é uma das faces do devir. Um dos nomes para o diabo é Gira Mundo: o senhor dos caminhares, das estradas, dos moveres. Capaz de abrir portas e ligar os caminhos, Exu é sempre dúbio, adorado e temido. É um elemento dialético, nem bom nem mau,  mas que pode assustar e espantar, assim como aquilo que se pode encontrar quando se caminha.                                     

  Diabólica é também a multiplicidade, as bordas. O Diabo, neste sentido, está sempre contra o unitário, inimigo de todo centro. Michel Maffesoli em A Parte do Diabo (2004) localiza a sabedoria demoníaca contra a violência totalitária de qualquer universalismo sendo uma sabedoria do corpo e da vida que incorpora até mesmo o que há de mais selvagem na existência. O autor afirma que o pensamento dicotômico e maniqueísta que assombra toda a racionalidade ocidental o tem uma origem divina.        O diabo como multiplicidade seria o reconhecimento das misturas, dos enlaces entre luz e sombra. O pensamento maniqueísta teria dado origem também à perversa associação entre mesmo e bem contra outro e mau. Nesse sentido, o encontro com qualquer alteridade radical se dá como encontro com o obscuro, com a face maldosa do ser. O agir diabólico seria perceber no outro, no incógnito da terra, uma outra coisa que não o puro mau. A cultura europeia colocou durante séculos tudo de incompreensível, de excessivo, de ambíguo, de irredutível ao sentido sob o signo do mau. A terra incógnita era lugar do fantástico, do ilimitado e do heterogêneo, mas o que se descobria outro logo passava a habitar a anônima e infame periferia do Idêntico. A sedutora terra incógnita é morada Outro e é, portanto, local de medo e de desejo, de repulsa e de atração.                                                                                                                    

Diabólico é o bordejante. É o sem identidade substancial, que pode existir de muitas formas e, mais do que isso, o que quer desmoronar aquilo que só existe de um modo, que sabota tudo que é idêntico a si.  Ettore Finazzi-Agrò ressalta que, não por acaso, muitas crônicas de conquista da América contêm uma reprovação religiosa acerca das culturas politeístas:  a multiplicidade seria, em si, uma manifestação de Satã. Para o pensamento eurocêntrico, tudo que se esquiva de uma individuação encontra logo a sua definição demoníaca. Exemplo extremado do outro demoníaco é alteridade-devoradora dos indígenas: o canibalismo. Hans Staden foi um jovem aventureiro alemão do século XVI que, após uma série se naufrágios e motins, encontrou-se com índios antropófagos em São Vicente, atual litoral de São Paulo. Staden foi aprisionado e, por pouco, não acaba devorado pelos seus sequestradores. Ao retornar à Europa, o viajante relatou sua experiência em um livro que teve sua primeira edição em 1557.    

  A antropofagia assustou o europeu a ponto de este identificar o indígena com o diabo sem nenhum esforço. Essa relação está marcada nas gravuras feitas por Theodor de Bry a partir dos relatos de Staden. Muitas imagens do novo mundo podem ser comparadas aos infernos de Hieronymus Bosch e de outros pintores medievais onde devorações, entrelaçamento de corpos, festa, horror e orgias recorrem. Na pintura Inferno, que um autor português não identificado pintou no século XVI, reúnem-se corpos sendo aviltados por demônios similares aos dos bestiários mediáveis. Porém, diante de uma caldeira onde fervem homens – possivelmente falsos religiosos, devido o corte de cabelo franciscano – está o diabo representado como um índio brasileiro tendo como coroa um cocar de penas. A tangência mais evidente entre inferno e a América são as prática antropofágicas: o inferno é sempre local para devorar ou ser devorado. Mesmo no Grande Sertão: Veredas há essa relação. O personagem Riobaldo fala: Quem tem mais dose de demo dentro de si é índio, qualquer raça de bugre (ROSA, 2001, p.38).                                                                            
Dentre as inúmeras leituras acerca da antropofagia, interessa aqui pensar na operação desistência de si implicada na incorporação do outro. Muito se pensa na ingestão do inimigo sacro pelo desejo de aumento das forças, mas é interessante pensar que as forças do antropófago não podem ser a reafirmação do mesmo, já que a força pela incorporação do outro  implica, de algum modo, em desistir da consistência de si. Finazzi-Agrò (1991) afirma ainda que a relação com a alteridade é o resultado de uma queda ou de um recuo - é, em suma, a renúncia à coerência e à univocidade do que é Idêntico. Para chegar ao Outro seria indispensável uma forma de desistência: desistir como um de-existir, um posicionar-se  de outro modo na existência. Envolveria a criação de porosidade na fronteira que separa o próprio do impróprio, o mesmo do outro; e, só colocando-se nessa condição de permeabilidade, desistir poderia ser resistir.  Fazendo conviver identidade e diferença se poderia produzir uma espécie de ultrapassagem na qual a borda que divide o lugar do conhecido do mesmo e a  terra incógnita do outro se faz local de encontros profícuos.  Nesse sentido, ter mais dose de demo em si pode ser pensado como: ter mais dose do outro em si.

Da minha dissertação, Travessias praticadas: a viagem como ensaio, que pode ser lida aqui

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