segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Femme fatale


Eu sou aquele que não te salvou 
Sou  teu choro preso na goela
A minha infância em terra ensolarada
uma noite úmida
teu coração que dispara agora

Eu sou esse  êxtase doméstico
[teu rosto se vira rapidamente para lâmpada fluorescente enquanto pintas as unhas dos pés]
E você, esperta como uma órfã, anda pelas ruas adivinhando o meu olho  
Sempre essa certeza de que quando eu te visse você estaria despreparada
Você ficava tentando se despreparar

Cozinhava um frango com mostarda
chorava no sofá amarelo
escondia quadros atrás de móveis
Era genial, de súbito
Bruta e chata ao fim do dia.
Sentia-se desprezada pelo porteiro
Trocava olhares com a caixa do mercado
Comentava sobre a parricida
que agora vai casar

Mas nada disso era ainda eu,
que te esqueci durante aquela semana inteira,
que não voltei apesar de ter dito que era bom.
Eu que te fascinei porque te lembrava:
um mar não exótico, como o de Ipanema,
um encontro ferozmente curto,
 um porre imenso com um passeio de táxi depois,
uma cachoeira que nunca se achou,
o livro que você escreve há anos mesmo sabendo que nem escreve assim tão bem.

Eu sou esse corpo que observaste dormir, meio rosto,
metade afundada num travesseiro escuro,
metade iluminada.


Eu sou esse teu rosto insone que não entende nada e sorri. 

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