quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Menino onça




para Luiz Nadal


Você reparou na variação das cores que refletem na parede nesse instante? Temos falado tanto sobre isso, sobre o que escorre desde um epicentro grandioso, sobre a possibilidade de haver nuances naquilo que se anunciava plano, sobre o que nunca se conforma, sobre o mistério maior que sustenta  a cada hora o mesmo sol. Nos sentamos lado a lado para observar não o céu das constelações misteriosas, mas o céu cinza ocre e suas variações sem consequências místicas ou pontos de referência para os que navegam. Eu te olho e você é um pássaro tão raro, eu te olho e você é a cidade com suas aglomerações, seus terrenos baldios, suas cenas de crime, eu te olho e você é o ápice de um solstício, eu te olho e você está no quarto ao lado, no México, de volta ao sul, na terça-feira de carnaval, ao meu lado na cama, diante de uma parede onde há agora um arco-íris tão improvável quanto definitivo. Estamos em silêncio de mãos dadas, penso naquela noite no Campeche, nas noites de gargalhadas incontidas e tropeços calculados, em dar volta no mesmo quarteirão vinte e uma vezes só para falar sobre o que jamais definiríamos. Dançamos ao ritmo dos desabamentos, dos meteoros que atingem o solo, das conversas sem centro nem sentido, dos passos daqueles que andam sem temer a travessia. Você é tão bonito que às vezes dói. Andamos e nos tocamos e dançamos como loucos e nos calamos nos perdemos entre esses tantos que também são bonitos que doem e que trazem e levam notícias do furo que habita o centro de tudo, essa ferida luminosa que nos traga e nos acende, pela qual te alcanço agora. Agora silêncio. Mas, escuta, você reparou a gradação sutil das cores? Reparou que isso, como tudo mais, agora é lembrança. Mas persiste isso que nos une que é o próprio inominável, mistério pesado no meio da noite insone, mar gelado e borbulhante onde me lanço, perplexidade às três da tarde de domingo, fôlego que encontro no ápice de um cansaço, silêncio que sabota a contagem implacável do tempo, palavra trêmula, pão, risco incalculável, festa, amor.       

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Autoconhecimento




Piso na cidade úmida em direção à emergência vinte e quatro horas
Piso na trilha de água quente que liga o calçadão de Copacabana a seu incerto mar
Há uma mulher que lê Hans Staden na praça de alimentação.
Há um homem que confunde todos os corações
Há a suspeita de uma doença rara que se abate sobre um corpo indeterminável
Há uma pilha de livros do lado direito de um braço que se estende
na direção do mais impuro amor
É possível que nesse instante dois contrários se anulem
E que o mistério de um desejo nunca enunciado se revele
num gesto percebido pelos mesmos olhos
que agora levo à emergência vinte e quatro horas
Você limpa os vestígios de um dia de praia
A areia condensada em forma de monte bem no meio da sala
Você passa os dedos sobre o livro do navegador que escapou por um triz
E menciona a possibilidade de coincidir uma experiência sobrenatural
com uma confusão lisérgica e
uma certeza lógica
Essa é a mesma possibilidade que me faz permanecer indo
em direção ao mar, à emergência, à praça de alimentação
Investigando maus súbitos
canibais, mares impróprios para banho
como se olhasse a mim  

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Pele de Vênus

A Pele de Vênus é um filme de Polanski baseado no romance de Sacher-Masoch intitulado A Vênus das Peles, clássico a partir do qual foi cunhado o termo masoquismo. É interessante lembrar que o masoquismo de Masoch diz respeito ao desejo de submissão de um homem a uma mulher, indo na contramão do imaginário da pornografia contemporânea na qual, via de regra, a mulher é submetida. 

No filme de Polanski,  Thomas é um diretor de teatro que está fazendo audições para uma adaptação do texto de Masoch e está tendo dificuldade em encontrar a atriz ideal. Vanda é uma atriz que chega atrasada para o teste e, num primeiro momento, desagrada o diretor em tudo. Seja como for, a atriz consegue convencê-lo a testá-la e, como não há mais atores presentes, ele próprio faz o papel de Severin, aquele que em A Vênus das Peles deseja se submeter à Wanda ( notadamente quase homônima à inquietante atriz).

O filme se desenrola de forma que o talento em atuação de Vanda vai se revelando surpreendente a cada momento. Vanda não apenas decorou todas as falas, como tem ideias perspicazes no que diz respeito à iluminação e cenografia, além de se mostrar bastante versada no teatro clássico, citando as Bacantes de Eurípedes com precisão. Aos poucos vamos assistindo Thomas se perturbar com o talento e a presença de Vanda, que de inapropriada passa a sedutora e intrigante. Um dos pontos interessantes do filme é como a leitura da peça vai se misturando com a relação que está sendo forjada entre a atriz e o diretor, mistura que chega a seu ápice no final do filme quando Thomas está totalmente rendido à Vanda realizando todos os estranhos pedidos que ela o faz. 

Entretanto, no meu ponto de vista, a questão do Polanski não é apenas as tangências e as sobreposições entre atuação e realidade e muito menos uma simples crítica ao machismo presente no texto de Masoch. A última cena do filme é reveladora, pois Vanda não se se satisfaz em ver o diretor rendido às suas ordens, ela decide amarrá-lo em um objeto cenográfico em formato de falo e se transforma em uma Bacante, tomada de energia dionisíaca, dança e enloquece diante do homem antes de deixá-lo preso ao imenso falo. Não me parecem também gratuitos os planos de entrada e saída do teatro, nos quais a fachada é bem exibida e exaltada. 

                                      



O teatro é a arena de Dionísio, Deus não apenas da embriaguez, da loucura e do hedonismo, mas também da multiplicidade e dos semblantes. Se consultarmos a obra de Eurípides citada por Vanda, leremos uma história na qual Dionísio quer matar o rei Penteu por este não acreditar em sua origem divina e por não permitir que seu culto fosse prestado. Para realizar sua vingança, o Deus precisa contar com as mulheres - as Bacantes - e também com a curiosidade de Penteu acerca das práticas dessas mênades. Enquanto as Bacantes estão  no monte Citéron realizando feitos especialmente incríveis, como colocar serpentes em seus cabelos para reverenciar o Deus, amamentar gazelas e lobos selvagens e fazer vinho, leite e água brotar do solo, Dionísio, travestido de pastor estrangeiro, aconselha  Penteu a vestir-se  como uma mulher e ir ao Citéron. O rei chega próximo às Bacantes e sobe em uma árvore para poder testemunhar os seus feitos e então Dionísio grita às suas devotas, apontando-lhes o homem no topo da árvore. Em êxtase, as Bacantes arrancam Penteu da árvore e rasgam seu corpo em pedaços.

Polanski sabe que a encenação tem relação com as forças dionisíacas e que tais forças nada tem a ver com as essências ou com a crença absoluta na consistência fálica. O papel da dominadora falicizada, que obedece a um contrato que firma posições fixas, não interessa à Vanda, uma mulher que prefere a violência das Bacantes: essa que não requer as insígnias fálicas e que dá a ver a própria precariedade do que se acredita absoluto e assegurado. Vanda acredita nos semblantes, no êxtase e na multiplicidade como uma potência mais perigosa do que as coladas ao reforço das posições mestre-serviçal. 





Assim, penso que Polanski não apenas faz uma crítica à inconsistência do pensamento machista como também à noção de que a solução ao machismo seria uma redistribuição pretensamente justa das insígnias fálicas ou uma ontologia do feminino que lhe desse consistência a partir dos significantes de "dominadora" ou "mestre". Polanski parece apostar nessa força não-toda fálica que sabota as crenças totalizantes e celebra o descontrole, a surpresa e a fúria desejante. Não se trata de transformar Vanda em uma "musa sádica" ou exaltá-la por via idealizada qualquer, trata-se justamente de positivar o feminino por sua resistente indefinição e sua afinidade com o jogo dos semblantes. Acredito cada vez mais na sabotagem do feminino ideal (seja qual for o ideal) como uma prática ética que assegura a dignidade da alteridade e acredito que A Pele de Vênus vai nessa direção apostando que a alternativa à violência contra o feminino é uma violência do feminino: essa que se ancora na diferença e tem como inimigo as forças idealizantes.
        



quarta-feira, 9 de setembro de 2015

31




Às dez horas da manhã um homem atravessa a rua. Sente uma dor profunda e gasta ao olhar para um prédio, mas desvia da entrada com firmeza. Enquanto isso um guerreiro  Sateré-Mawé já está há nove minutos com uma mão dentro da luva cheia de formigas tucandeiras: se permanecer um minuto mais, conseguirá passar no teste. Na hora mais quieta da madrugada, uma mulher encara  uma folha de papel em branco e encosta o grafite do lápis no canto esquerdo superior. Ela ainda não tem ideia do que vai escrever. O mesmo homem que mais cedo atravessou a rua agora fuma um cigarro olhando para a Nossa Senhora de Copacabana e se sente estranhamente forte. O guerreiro conseguiu permanecer dez minutos com a mão dentro da luva e agora arde em febre, mas sorri.  A mulher começou a escrever uma história estranha sobre uma menina que encantava serpentes e se deixava picar. O veneno, mortal para todos, nela operava como um remédio fortalecedor. O homem termina seu cigarro e decide que é hora de trocar a fechadura da entrada, liga para um chaveiro como quem telefona para um amor recém chegado. O guerreiro arde em febre, mas bebe caiçuma e olha vagarosamente o corpo da mulher que ama e com quem agora poderá se casar. A escritora descobre que vai ter um filho e abandona a história da encantadora de serpentes, mas não para de sonhar com ela. O guerreiro Mawé sai para caçar e faz uma pausa num igarapé. Há uma onça que o aguarda do outro lado, ainda não se sabe quem triunfará. O homem anda na rua e durante duas horas inteiras não pensa naquilo que mais  dói. O mundo segue reluzente e impiedoso, é possível não haja nenhum sentido que determine o que vai permanecer  e o que se arruinará. Mas pode ser que haja uma força, mágica e insurgente, que nunca pare de aproximar o que finda daquilo que ainda agora acaba de nascer. 

terça-feira, 8 de setembro de 2015

30


Proponho-me a escrever e tornar público um texto por dia durante trinta e um dias. A vida passa a transladar em torno dessa insensata operação. Escrever é fazer ecoar nas regiões côncavas de mim toda voz que não a minha. Estar tão atenta à oquidão dói feito uma dor de ouvido, transformação de um anatômico vazio em impiedosa atenção. E escrever nunca teve a ver com remediar a dor, tem a ver com sentir o peito arder em brasa e não dizer uma palavra sobre isso. Tem a ver com sentir o peito arder em brasa e dar espaço para a voz da arma que fere. Quando escrevo só tenho uma hipótese: a de que o coração de tudo que há é um vazio prenhe de transformação. É preciso me deixar arrebatar pelo que é feroz e ainda assim saber que estou fingindo. É preciso tornar radicalmente indistintos o inventar e o estancar. Entrelaço escritura e vida e, agora ao fim, percebo que não se trata nem de abandonar o vivido em prol da escrita e nem de transformar o texto em reflexo de experiência qualquer. A escrita opera na vida e, portanto, expande a si própria enquanto alarga o vivível. Escrever é engolir espadas. Se a escrita chega a roçar o fundo do corpo não é porque de lá advém, é antes porque se pode transformar um corpo estranho naquilo que há de mais próprio. Roço o que é mortal e me salvo à custa de saber abrir espaço para a inconsistência. Escrever, é preciso fazê-lo com o respiro entre os ossos, com o oco da garganta, com o instante entre uma batida de coração e a outra. Escrevo porque nada coincide inteiramente consigo próprio e pode-se reinventar o mundo  bordejando essa fenda com o nome pulsante do desejo, ou de seu rutilante par, a diferença.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

29



Madrugada na cidade grande. Eu atravesso a rua e você pede licença para chegar até o corredor do avião. Eu atravesso uma via na contramão enquanto você contempla a cidade a 3000 pés. Noite alta na cidade quente, e o calor vence silenciosamente as ventanias esporádicas e então se restabelece como atmosfera. Eu estou no meio de uma multidão que tenta se esquecer cada qual de uma promessa, você dorme em altitude de cruzeiro. Eu me esquivo de uma armadilha enquanto você passa a cem por hora pelo aterro. Desconheço a identidade de quem te espera no sofá, você também não faz ideia dos destinos que prescrevo ao taxista. No une, nesse instante, a indiferença à chuva enquanto todos correm pulando poças, errando a mira, tapando o alto da cabeça com algum volume. Eu jogo baralho num quarto de hotel, você encara o Edifício Noite através da janela em uma edícula.  Me equilibro em um pé só dentro de um banheiro tentando tirar a meia-calça, talvez passe pela sua cabeça a ideia das minhas pernas nuas atravessando o temporal na noite quente, você agora talvez tente voltar para casa ou busque por alguma coisa crucial. Os contornos esmaecem nessa hora em que noite e dia se confundem e o alaranjado solar mancha o azul profundo, o momento da virada é  inexato mas inconfundível. Quando o dia irrompe, estamos distantes, com apetites diversos, mas com a mesma sensação de havermos desperdiçado algo precioso. Eu encontro alegria na experiência do dispêndio. Quanto a isso , sobre você, eu já não sei. 

domingo, 6 de setembro de 2015

28



Matéria frágil rente às ventanias, às chuvas abrasadoras, à margem dos sumidouros. Ao sul preparam os abrigos e algumas barricadas. Aqui, no centro, testemunho uma separação, dois corpos que se sustentavam mutuamente já não se entendem mais. Um homem encanta uma serpente com sua flauta, os corpos se acusam e se traem, eu hipnotizo minhas próprias pernas emitindo um mantra que mistura o som do seu nome, algo que remeta ao enigmático futuro e a notícia da incompatibilidade que há entre o medo e o amor. A matéria frágil somos todos nós andando de um lado para outro atrás de algum rompante, algum alívio, alguma inevitável inspiração. A ameaça são as quedas, os embates, o que emerge e o que se infiltra, os entendimentos sempre sucedidos por dura incompreensão. Ao norte os feitiços já foram conjurados, filtros de amor e bonecos de vudu, agulha certeira bem no lado esquerdo do meu peito, explosão no céu agora. E então essa vontade de sair correndo em disparada derrubando obstáculos e reerguendo os vencidos. Vontade de consultar oráculos para confirmar que esse espaço em branco no centro  da minha linha da vida não significa nada além de um profundo amor pela indefinição. Talvez você já esteja muito longe, talvez pense que nada vai se alterar. Mas existe aquele instante imprevisível quando tudo muda sem remédio, aquele instante sagrado ao qual me lanço na hora precisa e derradeira que tem o nome de agora.