É que o dia passa a seco, nenhuma
dormência, nenhum esquecimento. O dia pesado e rígido diante do espelho,
revestindo todas as paredes, fazendo peso invisível no chão. Difícil eleger o
que é alegria nesse emaranhado de claridade e espera. Estranho recorrer a
esses velhos nomes, sem desejo de
encontro, apenas pelo prazer da fantasia colada em cada um, apenas o prazer de
dizê-los, a língua estalando no céu da
boca, se debatendo contra os dentes. São ainda mais estranhas essas
investigações: quanto pesava, havia algo nascendo dentro, como estava por fora,
como lhe chamavam, valia quanto. Observa-se todos os aspectos, quantidades
presentes no eixo x e no outro, mas sobretudo o indizível, acima de tudo a
mudez. Acima de tudo a mudez porque era ali que nos encontrávamos: a muda
sedução enquanto você ia ao banheiro e eu ficava esperando na sala ao lado,
você dormindo um colchão acima do meu, as boca preenchidas talvez se querendo
durante o jantar. Ainda mais quando eu estava sem nenhuma notícia sua e infinitamente
mais quando sequer nos conhecíamos. É que você pensa que é tão esperta, me
disse que quando criança leu o dicionário inteiro, A a Z, daqueles bem grandões. Você decorou
todas as capitais do mundo e os principais rios de cada continente. Aquele dia
você estava tão alegre dizendo Volga Danúbio Douro Ural Dniepre Kama Don
Péchora Dniestre Reno. E eu decorando cada parte do teu rosto, a testa larga,
os olhos rasgados lembrança de alguma selva ou savana, a boca tortinha para a
esquerda, o nariz apontando para cima. A boca tortinha perturbando toda a noite
e talvez o mundo inteiro. Dvina Setentrional e Ocidental Elba Donetz Vistula
Weser. Teus cabelos cor de palha queimada, teu cheiro de verão desafiando o alto inverno. Sena Ardila Loire. Tua voz. O Tejo. E o calmo sentido das coisas era
muito parecido com a incontrolável confusão daquela hora feita de pele, medo, luminosidade, geografia, correnteza.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
segunda-feira, 21 de julho de 2014
Contratempo
(Laura Lucia Sanz)
Gosto de lembrar da noite em que mandamos missivas ao falso cego. Bebida abrindo trincheira no corpo e aquela ternura fora de hora, os lábios que tinham a forma de um coração desenhado por uma criança. Gosto de nunca mais poder viver aquela noite repleta de pequenas ânsias. Porque nada mais humano que querer um pouco. Os grandes desejos são como milagres, são clara raridade incalculada. O mais humano são nossos pés cobertos dessa manta quente e amanhã nem sinal. Os nossos cabelos trançados e logo mais nem sei. Mais humano o meu corpo enrugando, as juntas se quebrando. O milagre é essa ferida que fecha, marchando contra o tempo, promovendo um nascimento fora de hora. Milagre era tua pele parecer tão a minha e eu nem saber teu nome. Mas eu falava sobre aquela noite, o gosto dos copos usados, teu jeito tão impreciso de mostrar que queria mesmo era estar lá. O céu que desabava e as pequenas demolições entre cada um de nós. Ana revirava os olhos, Julio já nem se movia. Mas havia uma alegria embriagada, um erro todo libertador que era o nosso encontro. Retidão já nenhuma, apenas os braços delgados de Aline, a voz barítona de Márcio e entre nós dois esse tropeço constante que sustenta a graça da mais ordenada dança.
quarta-feira, 2 de julho de 2014
O diabo no caminho
Diabólico
é o caminho, isso não deixa negar a aproximação feita na cultura brasileira
entre o orixá africano Exu e o diabo judaico-cristão. O nosso Exu reina sobre as
encruzilhadas, a sobreposição de caminhos. Exu, em certo sentido, é uma das
faces do devir. Um dos nomes para o diabo é Gira
Mundo: o senhor dos caminhares, das estradas, dos moveres. Capaz de abrir
portas e ligar os caminhos, Exu é sempre dúbio, adorado e temido. É um elemento
dialético, nem bom nem mau, mas que pode
assustar e espantar, assim como aquilo que se pode encontrar quando se caminha.
Diabólica
é também a multiplicidade, as bordas. O Diabo, neste sentido, está sempre
contra o unitário, inimigo de todo centro. Michel Maffesoli em A Parte do Diabo (2004) localiza a sabedoria demoníaca contra a violência
totalitária de qualquer universalismo sendo uma sabedoria do corpo e da vida que
incorpora até mesmo o que há de mais selvagem na existência. O autor afirma que
o pensamento dicotômico e maniqueísta que assombra toda a racionalidade
ocidental o tem uma origem divina. O diabo como
multiplicidade seria o reconhecimento das misturas, dos enlaces entre luz e
sombra. O pensamento maniqueísta teria dado origem também à perversa associação
entre mesmo e bem contra outro e mau. Nesse sentido, o encontro com
qualquer alteridade radical se dá como encontro com o obscuro, com a face maldosa
do ser. O agir diabólico seria perceber no outro, no incógnito da terra, uma
outra coisa que não o puro mau. A
cultura europeia colocou durante séculos tudo de incompreensível, de excessivo,
de ambíguo, de irredutível ao sentido sob o signo do mau. A terra incógnita era
lugar do fantástico, do ilimitado e do heterogêneo, mas o que se descobria outro logo passava a habitar a anônima e
infame periferia do Idêntico. A sedutora terra incógnita é morada Outro e é,
portanto, local de medo e de desejo, de repulsa e de atração.
Diabólico
é o bordejante. É o sem identidade substancial, que pode existir de muitas
formas e, mais do que isso, o que quer desmoronar aquilo que só existe de um
modo, que sabota tudo que é idêntico a si.
Ettore Finazzi-Agrò ressalta que, não por acaso, muitas crônicas de conquista
da América contêm uma reprovação religiosa acerca das culturas politeístas: a multiplicidade seria, em si, uma
manifestação de Satã. Para o pensamento eurocêntrico, tudo que se esquiva de uma
individuação encontra logo a sua definição demoníaca. Exemplo extremado do outro demoníaco é alteridade-devoradora
dos indígenas: o canibalismo. Hans Staden foi um jovem aventureiro alemão do
século XVI que, após uma série se naufrágios e motins, encontrou-se com índios
antropófagos em São Vicente, atual litoral de São Paulo. Staden foi aprisionado
e, por pouco, não acaba devorado pelos seus sequestradores. Ao retornar à
Europa, o viajante relatou sua experiência em um livro que teve sua primeira
edição em 1557.
A antropofagia
assustou o europeu a ponto de este identificar o indígena com o diabo sem
nenhum esforço. Essa relação está marcada nas gravuras feitas por Theodor de
Bry a partir dos relatos de Staden. Muitas imagens do novo mundo podem ser
comparadas aos infernos de Hieronymus Bosch e de outros pintores medievais onde
devorações, entrelaçamento de corpos, festa, horror e orgias recorrem. Na
pintura Inferno, que um autor
português não identificado pintou no século XVI, reúnem-se corpos sendo
aviltados por demônios similares aos dos bestiários mediáveis. Porém, diante de
uma caldeira onde fervem homens – possivelmente falsos religiosos, devido o corte
de cabelo franciscano – está o diabo representado como um índio brasileiro
tendo como coroa um cocar de penas. A tangência mais evidente entre inferno e a
América são as prática antropofágicas: o inferno é sempre local para devorar ou
ser devorado. Mesmo no Grande Sertão:
Veredas há essa relação. O personagem Riobaldo fala: Quem tem mais dose de demo dentro de si é índio, qualquer raça de
bugre (ROSA, 2001, p.38).
Dentre
as inúmeras leituras acerca da antropofagia, interessa aqui pensar na operação
desistência de si implicada na incorporação do outro. Muito se pensa na
ingestão do inimigo sacro pelo desejo de aumento das forças, mas é interessante
pensar que as forças do antropófago não podem ser a reafirmação do mesmo, já
que a força pela incorporação do outro implica,
de algum modo, em desistir da consistência de si. Finazzi-Agrò (1991) afirma
ainda que a relação com a alteridade é o resultado de uma queda ou de um recuo
- é, em suma, a renúncia à coerência e à univocidade do que é Idêntico. Para
chegar ao Outro seria indispensável uma forma de desistência: desistir como um de-existir, um posicionar-se de outro modo na existência. Envolveria a criação
de porosidade na fronteira que separa o próprio do impróprio, o mesmo do outro;
e, só colocando-se nessa condição de permeabilidade, desistir poderia ser resistir. Fazendo conviver identidade e diferença se
poderia produzir uma espécie de ultrapassagem na qual a borda que divide o
lugar do conhecido do mesmo e a terra incógnita do outro se faz local de encontros profícuos. Nesse sentido, ter mais dose de demo em si pode ser pensado como: ter mais dose do
outro em si.
Da minha dissertação, Travessias praticadas: a viagem como ensaio, que pode ser lida aqui.
sexta-feira, 27 de junho de 2014
Notas sobre Nymphomaniac - parte II
Na segunda
parte do filme Nymphomanic, Joe inicia sua narrativa se dizendo sexualmente insensível e recorre a uma
experiência da infância para falar de sua primeira relação com o gozo. Em uma expedição às montanhas, tem uma experiência de flutuação
na qual recebe a visão de duas mulheres: Messalina e a Grande Prostituta da
Babilônia. Junto desta visão tem um orgasmo espontâneo.
Há algo de místico nesta
experiência de gozo, algo que
transborda a anatomia e a linguagem. Lacan diria que há em Joe, como alguém que se posiciona no lado feminino, a
possibilidade de um gozo não-fálico, de um gozo Outro. Convém lembrar que,
para Lacan, o falo não é nada que se possa localizar no corpo, mas algo que nos inscreve no simbólico. Assim, dizer que há um gozo Outro
– não-fálico – é admitir a possibilidade de uma realização pulsional que não se
organiza no sentido, que escapa à medida simbólica. Fui à
Bíblia ler sobre a Grande Prostituta da Babilônia, encontrei esta descrição:
E a mulher estava vestida de púrpura e de
escarlata, e adornada com ouro, e pedras preciosas e pérolas; e tinha na sua
mão um cálice de ouro cheio das abominações e da imundícia da sua fornicação. E
na sua testa estava escrito o nome: Mistério, a grande babilônia, a mãe das
prostituições e abominações da terra. (Apocalipse 17, 4-5)
Da Grande Prostitua, portanto,
sabe-se que tem relação com o sexo, com a imundice e que em sua testa há um
significante: o do mistério. Assim como Messalina, trata-se de uma mulher
mítica que encarna a potência infame.
Como as mulheres de sua visão, Joe também se vê como uma criatura absolutamente
infame. Lacan,
em seu projeto teórico, dignifica essa infâmia como aquilo que faz enigma à
lógica fálica, à lógica da castração, já que ao feminino haveria a possibilidade
de operar não-totalmente nesta lógica. .
Dessa primeira cena do filme
passo imediatamente para a última: Joe dá um tiro em Siegfried. O simpático e
assexuado senhor, que durante todo o filme detém o saber e concede sentido às narrativas de Joe, sucumbe a um desmedido
desejo e tenta fazer sexo com ela, sendo que Joe não concede e atira nele. O fato de
Siegfried se dizer assexuado, um homem das letras, regido pela lógica é como se
ele dissesse: sou um sujeito erguido pelo
pensamento e não-clivado pelo sexo, não barrado pelo desejo. Acontece de Lars
Von Trier nos sugerir que o sentido nunca pode dar conta da existência.
Em suas sessões com K., Joe goza roçando-se em um livro. Essa imagem me parece fundamental: ali, onde não há “palavra de
segurança”, existe a possibilidade de gozar. Ou seja, não reside na experiência
do saber a possibilidade de ultrapassar a si próprio, de se surpreender com o
mais íntimo. É no inseguro que se goza, é na desmesura e não no sentido, é no corpo e não na palavra,.
Já que o sentido não dá conta da existência, a
traição insurge como a marca desse real que implode a linguagem. No filme, a traição recorre nas relações
travadas pelos personagens de muitos modos. Me parece, entretanto, que a traição se dá
não como a falência de cada um dos encontros, mas como a própria verdade do
desejo: a verdade do desejo é trair o sentido.
"Ninfomania" é
uma patologização que tem relação com o excesso: na cultura, o feminino sempre
está no lugar do excesso, é aquilo que excede em faltar. Mas o que é mais
infame e o que provoca todo tipo de angústia é que a mulher não é quantificável. Fico pensando que muito da obsessão em se
fazer concursos de miss, ou eleições de musas, tem a ver com um desejo em
quantificar o feminino. Tentam medir quem é mais mulher para apaziguar essa
potência infernal do feminino de nunca estar onde promete, mas a medição se apresenta falha a cada vez
que se renova a escolha ( A mulher, enfim, não era essa, nem aquela, nem a outra, talvez
seja a próxima). Não ser quantificável –
escapar da hegemonia do simbólico – é o
que aponta à possibilidade desse gozo Outro, mas também o que provoca essa
estreita e aviltante relação com a infâmia.
Nymphomanic não é um filme didático, não
aponta saídas para os impasses da sexualidade, mas mostra que é próprio do
desejo não garantir nada (ainda sustente tudo). Creio que Lars Von Trier exalta a mulher como
essa quem pode apontar para a cultura
falocêntrica (obcecada por sentido) que o que nos é mais próprio – desejar –
nos é mais estranho e que nos cabe a difícil tarefa de nos responsabilizarmos
pela alteridade que nos habita. Ainda que não seja um filme com uma moral, Lars
Von Trier, ao fim, mata o senhor falastrão assexuado, o “inocente”, nos dando a ver que caber na medida
da própria razão não é, e nunca será, o destino dos falantes.
quarta-feira, 4 de junho de 2014
vida forma
“Os fogos dos astros e a aurora boreal estremecem no que é, apesar de tudo, a noite negra.” Marguerite Yourcenar
Afirmativa sem reservas: amar sem
exceção. Era noite e andávamos, eu tropeçava nos teus pés, caíamos com a
barriga rente ao chão. E de tudo sobrava um riso, uma espécie de loucura. Depois
eram teus dedos que me abraçavam, eu dançava com as tuas mãos. Uma lenta e
corrompida valsa com teu indicador, um tango triste com o anelar e um samba sem
reparos com o dedo menor. Teus olhos me acompanhavam mudos enquanto eu dizia da
minha paixão: que toda existência fosse uma dignidade. Então tu seguravas meu braço, com feroz
delicadeza, desenhava um invisível traço no meu peito e dizia: a vida, minha
pobre criança, é muita coisa, mas é principalmente forma. Então eu revirava os
olhos, tomava mais um gole, calava, depois repetia sem parar frases difíceis,
como a gente vai embora daqui, eu posso dormir onde você mora, que ônibus passa
lá, por que é que os céus não desabam, o que é mais importante reter dessa
noite, será que dá pra nadar até aquela ilha, como a gente volta para casa,
qual o limite do pensamento. O mar era assombrado de mitos e lavamos nossos
corpos com navegações, tormentas, espantos, sereias ardilosas e pequenos peixes
prateados. Te disse que eu queria ser um
caleidoscópio, um lago. Isso te fortalece ou te fragiliza? Perguntavas depois de morrer de
rir. E dedilhavas meus pés: passavas as
mãos por cada osso, subias para as canela e depois pulavas direto para as
têmporas. Teus ossos são firmes, parecem raízes, parece a estrutura de um
templo, um emaranhado de galhos. Falavas. A vida não tem sentido, a essência
não perfura, fica rente. E, se não tem sentido, só pode ter forma, semblante,
direção. Viver é desenhar o tempo. Eu era tomada de alegria lampejante de uma
morna compreensão. Me erguia de súbito, dançava de um jeito leve e torto,
beijava tua boca com ternura e depois rangia meus dentes nos teus. Entendi que o limite do pensamento só poderia ser
esse: amar a humanidade inteira, sem exceções. Mesmo aquele que me mata. Mesmo
aquele que fere. O amor pela diferença radical era o limite. Não repetir o
gesto que aniquila era o desafio mais apaixonado do meu corpo. Ser apenas
aquilo que diz sim: afirmar a vida forma.
Era muito tarde e tínhamos medo de tanta sombria luz. Porque nada
daquilo tinha parentesco com a eternidade. Falei que o efêmero doía. Você disse
que a eternidade era o outro nome do instante. Que se eu fechasse os olhos ia
entender que o mais importante era nascer e morrer com a mesma fúria, o mesmo
choro alucinado, a mesma aceitação. O que é aquilo que tu mais amas, perguntei.
Poder recomeçar. Frustrar a encarnação.
Mover-se junto dos movimentos do céu. Ter
sede pela ausência de todo nome. Êxtase telúrico. Mas tu
és a própria terra, eu pegava nos teus ombros.
Para te habitar é preciso estar disposta a morrer em ti. É preciso
confiar em tua imprevisível ordem. De
repente, amanheceu, e a luz era uma fera. Teu som me embalava pela casa. Já quase não te
via. Pra onde vamos? Te perguntei enquanto seguia com alegria e
tropeço na direção oposta ao medo.
sexta-feira, 16 de maio de 2014
faca cega
havia gargalhadas, tilintares, um bocejo
havia Lucio despedindo-se dos entes
ia para longe, nunca mais se soube dele
a pele morena de Lucio contra aquela faca cega
era de morrer de amor
mas havia um corpo exposto sobre a mesa
e milhares de olhos nadando sobre ele
havia a marca de um molar
rente ao meu pescoço
eu já não entendia o que era sono
e o que era aquele efeito de subitamente se ver de fora
era eu de pé, aquela mulher loira, o contador
e, como se não soubéssemos que iria amanhecer
violentamente,
nos apalpávamos com uma alegria furiosa
quem propôs a roleta russa não fui eu
foi alguém com os pulsos mais delgados
naquela hora eu tive tanto medo que achei que ia quebrar em dois
mas não foi pior que aquela noite de verão
não foi pior que desmoronar em pleno ataque
que perder o equilíbrio rente àqueles olhos
que tremer e apertar o gatilho contra o peito errado
aquela hora não foi pior
que queimar a língua
que perder o sono numa madrugada pesada de tanto silêncio
que estar viva numa madrugada toda feita de silêncio
não foi pior
porque logo houve algo como uma dança
uma mão que agarrou meus braços
um vermelho tingindo os meus pés
a hora de partir
havia a lembrança de uma ternura extrema
de um sufoco tão total
havia eu escapando na hora exata
fugindo pelos corredores
descendo por um elevador
ganhando um texto pronto em plena madrugada
um crime sem culpados em plena madrugada
eu imaginando se Lucio teria se arrepiado
com a minha pele
antes de partir
em plena madrugada
agora havia apenas meu peito ofegante
o pulso aberto
a sensação que quase morte
é coisa de carne viva
havia Lucio despedindo-se dos entes
ia para longe, nunca mais se soube dele
a pele morena de Lucio contra aquela faca cega
era de morrer de amor
mas havia um corpo exposto sobre a mesa
e milhares de olhos nadando sobre ele
havia a marca de um molar
rente ao meu pescoço
eu já não entendia o que era sono
e o que era aquele efeito de subitamente se ver de fora
era eu de pé, aquela mulher loira, o contador
e, como se não soubéssemos que iria amanhecer
violentamente,
nos apalpávamos com uma alegria furiosa
quem propôs a roleta russa não fui eu
foi alguém com os pulsos mais delgados
naquela hora eu tive tanto medo que achei que ia quebrar em dois
mas não foi pior que aquela noite de verão
não foi pior que desmoronar em pleno ataque
que perder o equilíbrio rente àqueles olhos
que tremer e apertar o gatilho contra o peito errado
aquela hora não foi pior
que queimar a língua
que perder o sono numa madrugada pesada de tanto silêncio
que estar viva numa madrugada toda feita de silêncio
não foi pior
porque logo houve algo como uma dança
uma mão que agarrou meus braços
um vermelho tingindo os meus pés
a hora de partir
havia a lembrança de uma ternura extrema
de um sufoco tão total
havia eu escapando na hora exata
fugindo pelos corredores
descendo por um elevador
ganhando um texto pronto em plena madrugada
um crime sem culpados em plena madrugada
eu imaginando se Lucio teria se arrepiado
com a minha pele
antes de partir
em plena madrugada
agora havia apenas meu peito ofegante
o pulso aberto
a sensação que quase morte
é coisa de carne viva
segunda-feira, 12 de maio de 2014
A dança ou A anatomia dos Anjos
para Holbein Menezes
Há uma outra versão que diz que quando ele chega ao
céu os anjos dançam. Incontáveis querubins andróginos o saúdam com um baile de
samba de gafieira. Entre zig-zags, malandragens, inversões, travadas, abraços e
enroscos, os anjos riem. Ele fica de canto, só olhando, os pequenos pés
afundando as nuvens fofas. De vez em quando um querubim tropeça e é a maior
troça. Aos anjos só é permitido fazer festa quando uma alma alegre é acolhida.
Suas grandes asas atrapalham um pouco a movimentação, mas também criam uma
impensada forma de erotismo. As penas roçam os olhos angelicais, acariciam seus
braços, por vezes se prendem por um instante entre suas pernas. Quando dançam,
os anjos elaboram seu complicadíssimo sexo. Feito de purezas dilatadas e
perversas conjunturas de cócegas e ânsias. Quando acontece esse baile é possível que na
terra chova, ou que ventanias exageradas varram as ruas e os campos nus. O
tremor dos anjos bailarinos afeta a terra sobremaneira, por isso é sabido no céu que alegria é a força mais
perigosa que há.
A anatomia dos anjos é uma coisa interessante. Uma
espécie de maquinaria, um labirinto de carne e voo. Quando ele chegou ao baile, se impressionou primeiro foi com aqueles corpos. Diferente do que se pensa, os
anjos não são menos carnais que os humanos. São apenas corpos densos que o
Misterioso dotou com longas asas. Pura humanidade alada. Não são perfeitamente
belos e santos, talvez um pouco pálidos e entediados, isso sim. Uma anja que já
tinha cansado de dança chegou perto dele e lhe deu boas-vindas:
- O céu dança sua vida. Esteja em casa.
Olhou bem para a anja e viu que parecia uma mulher
do norte, uma cabocla, mistura de negra com índia, de lábios grossos, cabelo
escuro e olhos puxadinhos. Suas asas não eram perfeitamente brancas, tendiam
mais para um ocre sutil. Outros anjos tinham as asas cor de chumbo; essas, em
sua opinião, as mais garbosas. A
anja-cabocla lhe olhava com certo interesse amedrontado, um ar de dissimulação.
Quando conseguiu falar, perguntou:
- Mas o que é isso, afinal?
- Esse é o céu em festa. Sempre que sobe até nós
uma alma verdadeiramente alegre, temos permissão do Misterioso para dançarmos e
ouvirmos músicas populares. Lá pelo quinto dia, também poderemos beber vinho.
Sim, porque a festa dura vinte dias e vinte noites terrestres. O Misterioso
fica meio contrariado, porque diz que o vinho bebido assim para a festa, e não
na sagrada comunhão, é homenagem aos deuses antigos, é Bacanal, entende? Mas
trato é trato. Nós sustentamos as arquiteturas celestes, vigiamos o obscuro e a
claridade do humano, levamos mensagens para o mundo inferior, passamos dias
meditando diante de claridades, assistimos ao balé do Espírito que insiste em
tremular sobre as águas por um velho hábito. Em troca de tudo, podemos fazer
festas quando uma alma verdadeiramente alegre vem até nós. É a Lei.
Ele estava estarrecido. Um pouco com aquela
história toda, com aqueles tratos, com o fato de ser ele a alma alegre. Mas, sobretudo,
porque a anja-cabocla era uma perdição. Como podia uma anja ser assim tão
sensual? Os lábios carnudos, o sotaque do norte, um hálito de cajá. Havia
muitas coisas que, aquela altura, desejava saber, uma delas era se lhe seria
permitido flertar com aquela anja, ou mesmo chegar a toca-la. Ali, era preciso
reaprender tudo, até a arte do cortejar.
- Escuta, como é o teu nome ?
- É Lidiane.
- Ô Lidiane, não tá parecendo que essa festa é para
mim não. Eu não estou entendendo nada, será que alguém pode me explicar alguma
coisa ?
- Você sabe dançar ?
Não sabia. Mas notou que ali, sobre as nuvens, seus
pés adquiriam uma sabedoria própria. A gafieira foi substituída por um Fox Trot, percebeu que conseguia dar
incríveis giros, viradas e twists. Dançou por muitas horas, parando apenas
quando passava um avião muito perto da nuvem onde estava. Os anjos estavam
acostumados, mas ele levava um enorme susto cada vez que isso acontecia. Quando
anoiteceu, começaram a dançar um forró arrasta-pé e os ânimos se exaltaram.
Sentiu que era hora de buscar alguma explicação. Notou que um anjo bastante andrógino observava tudo de
canto. Magro, negro, alto, cabelos cheios, começando a virar um black
power e traços bastante delicados,
deixando em dúvida o gênero da criatura em questão. Decidiu puxar assunto.
- Oi, você
também não dança forró?
- Na verdade
danço muito bem, eu queria mesmo era falar com você.
Tinha a voz aguda e aveludada, mas ainda poderia
apostar que era um rapaz. Sua pele era belíssima e reluzia sob a noite
estrelada. Tinha olhos que cintilavam, como quem olha para algo perigoso. Sua
asas eram alvas, usava uma camiseta preta de algodão e calças justas também
pretas. Seus sapatos pareciam pantufas, só que mais modernas. O anjo continuou:
- Eu vi você dançando. É de fato uma alma alegre.
Apenas os alegres conseguem dançar em meio à incompreensão.
- Mas eu não gosto de não entender. Você pode me
explicar como é o céu? Por que eu estou aqui e como será minha estadia?
- Olhe, aos anjos é vedada a possibilidade de dizer
verdades. Segundo as Misteriosas Leis, dizer verdades é um dos pecados
capitais, nos arremessaria direto ao
submundo, para que ardêssemos, corpo e asa, na caldeira dos Contadores de Verdade.
- Mas então, terei que ficar aqui sem nada saber?
- O Misterioso, porém, tem misericórdia. Deixa que
nos comuniquemos com o que há de mais puro no ser: o corpo.
Por essa ele não esperava. Não parecia do caráter
de Deus considerar o corpo superior às verdades metafísicas, aquilo o
surpreendia verdadeiramente. Mas ainda não entendia como faria para obter
qualquer informação. Estava cansado, com fome, queria um pouco de privacidade
e, além de tudo, começava a sentir os sinais de uma enxaqueca terrível.
- Mas, então, como você se comunica pelo corpo?
- Você pode tocar em mim, cada parte do meu corpo,
e do seu também, tem um pensamento. Está nos Secretos Escritos que o ser humano
se engana muito acreditando ser a cabeça o centro da razão. A razão é elétrica,
sanguínea, corre na pele. Basta que você toque na parte do meu corpo que quiser
que verá o que meu corpo pensa e sabe.
Aquilo mais parecia roteiro de pornochanchada. Um
argumento metafísico, até sublime, mas que só pode funcionar com algum tipo de
sacanagem. Sentia que aqueles anjos estavam tirando uma com a cara dele. Mas o
anjo estendeu sua bela mão e, sem pensar muito, ele o tocou. Foi como se seu corpo fosse tragado para
dentro de uma esfera luminosa. Primeiro só conseguia enxergar a luz, aos poucos
sua visão foi voltando ao normal. Quando pode olhar, viu que estava em outra
nuvem, esta isolada e silenciosa. Olhava para baixo e, estranhamente, podia ver
tanto à distância, como de perto, dependendo apenas do seu desejo de ver. De
repente, soube.
Entendeu a fragilidade dos mistérios além-vida. Como se levasse
um choque, ele recebeu um lampejo revelador: os anjos são aquilo que querem ser.
Em verdade, os anjos eram apenas homens e mulheres que acreditavam, em vida,
que quando morressem virariam anjos. O Mistério, de fato, era a fé. Dependia da
criatividade de cada mente fervorosa o seu destino na Eternidade. Mas “fé”
ainda não era a palavra certa, mais do que crer, era preciso desejar. Os anjos
eram aqueles que desejavam sê-lo. Então
a Lei secreta que rege o universo era o desejo. Daí uma certa androginia na
maioria dos corpos angelicais, fruto desse desejo bruto que transborda o gênero
como é entendido na Terra. Os Anjos, acima de tudo, eram os que desejavam para muito
além do corpo. Queriam ser meio macho, meio fêmea. Queriam o dom impensado do
vôo. Queriam a carne em brasa toda suspensa em penas. Queriam ser a própria
medida do impossível.
Com outro choque, soube então porque não lhe coube
esse destino: nunca em vida havia desejado ser anjo após a morte, bem pelo
contrário, se sentia muito mais tentado a dar uma olhada no que se passada no
submundo, nas obscuras e fervorosas câmeras do Outro. Então, com a sensação de um súbito arremesso,
viu-se em uma nuvem muito alta, de onde já não podia saber mais nada da Terra.
Soube que estava muito perto do limite onde se pode chegar sem se queimar no
Sol. Soube que estava só. Ali, o esclarecimento que havia obtido lhe parecia
uma triste notícia. Se os homens viviam, após a morte, aquilo que em vida
desejavam viver, por que é que ele estava ali naquele céu banal repleto de
clichês? Nunquinha que em vida tinha desejado isso para si. Então, como se um
soco no estômago lhe tirasse o fôlego, veio-lhe a resposta: o texto.
Era de conhecimento do Misterioso, esse grande
amante das letras, que ele havia deixado por escrito um longa descrição de como
seria sua experiência no Além. Havia descrito, em um belo texto, longos
acontecimentos em um céu como aquele: feito de nuvens, anjos e a notícia de um
Deus ausente. Seus anjos eram burocratas falastrões que, por ora, apenas
dançavam. Estava tudo planejado para que, em seguida, tivesse a oportunidade de
viver o céu assim como ele havia desejado, a ponto de tê-lo criado por escrito.
Sentiu então o fervor da raiva subindo-lhe pelo corpo: eles não haviam
entendido nada!
Acontece que seu desejo não era pelo céu, mas pelo
texto! Seu texto, por sua vez, não era confissão de um desejo escuso, nem
atestado de nenhuma fé. O sentido do texto se fazia na escritura e só texto
poderia revelar o seu próprio mistério, quem o escreve pouco sabe sobre ele. O
escritor só sabe de uma coisa: do irresistível chamado da escrita. Seus temas,
seus argumentos, suas aporias nada mais são que vias por onde percorrer para frequentar o
texto. Esse sim, seu verdadeiro interesse.
Quando voltou à nuvem, o anjo estava com os olhos
arregalados pois havia compreendido que o Misterioso – pasmem – tinha cometido
um engano. Não era aquele, pois, o destino-desejo daquele homem. O anjo silenciosamente recolheu sua mão e pediu
que ele o seguisse. Andaram na direção de uma pequena torre de pedras que, até
então, não havia notado. Dentro dela, havia uma escada em formato caracol, que
descia rumo a uma escuridão indevassável. O anjo disse:
- É preciso corrigir um engano. Seu destino é
outro. Esse você encontrará quando descer por essas escadas.
Ele sentiu um novo
ânimo lhe afetar o corpo, mas também um certo medo. O que encontraria
ali? O anjo continuou:
- Aqui é o paraíso dos escritores: a biblioteca.
Nunca soube como é de fato, pois não é o meu. Olha, a verdade é que todos vamos
ao paraíso depois da vida. Não importa se o sujeito deseja o inferno e vai para
lá, pois em verdade aquele inferno é a sua delícia, seu ardor. Houve um erro,
digamos, de interpretação de texto. O
Misterioso, através dos meus olhos, deu-se conta disso agora quando você
acessou os Mistérios. Seu desejo não era o céu como escreveu, mas o próprio
escrever. E é por isso que você vai ser transferido. Mas saiba que você
conseguiu aquilo que talvez todos os escritores desejam: você confundiu a ordem
perfeita do Mistério. Agora descerá em direção aos Mistérios da Biblioteca. Boa
viagem.
Enquanto ia descendo as estreitas escadarias,
sentiu um fervor de orgulho animando o peito: conseguira, trapaceara o próprio
Deus. Sempre tinha tido admiração por João Grilo, esse astuto enganador, e
agora havia superado mesmo a mais brilhante de suas façanhas. E não sabia bem
como, só sabia que tinha sido assim. Antes de mergulhar no obscuro e encontrar
seu definitivo e correto Paraíso, pode ouvir a Misteriosa Gargalhada. Deus ria
de seu próprio engano. Quanto a ele, estava orgulhoso e animado, mas lamentara
uma única coisa: não poder mais dançar com Lidiane. Ô Anja deliciosa!
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