sexta-feira, 8 de agosto de 2014

É que o dia passa a seco, nenhuma dormência, nenhum esquecimento. O dia pesado e rígido diante do espelho, revestindo todas as paredes, fazendo peso invisível no chão. Difícil eleger o que é alegria nesse emaranhado de claridade e espera. Estranho recorrer a esses velhos nomes, sem  desejo de encontro, apenas pelo prazer da fantasia colada em cada um, apenas o prazer de dizê-los,  a língua estalando no céu da boca, se debatendo contra os dentes. São ainda mais estranhas essas investigações: quanto pesava, havia algo nascendo dentro, como estava por fora, como lhe chamavam,  valia quanto.  Observa-se todos os aspectos, quantidades presentes no eixo x e no outro, mas sobretudo o indizível, acima de tudo a mudez. Acima de tudo a mudez porque era ali que nos encontrávamos: a muda sedução enquanto você ia ao banheiro e eu ficava esperando na sala ao lado, você dormindo um colchão acima do meu, as boca preenchidas talvez se querendo durante o jantar. Ainda mais quando eu estava sem nenhuma notícia sua e infinitamente mais quando sequer nos conhecíamos. É que você pensa que é tão esperta, me disse que quando criança leu o dicionário inteiro,  A a Z, daqueles bem grandões. Você decorou todas as capitais do mundo e os principais rios de cada continente. Aquele dia você estava tão alegre  dizendo  Volga Danúbio Douro Ural Dniepre Kama Don Péchora Dniestre Reno. E eu decorando cada parte do teu rosto, a testa larga, os olhos rasgados lembrança de alguma selva ou savana, a boca tortinha para a esquerda, o nariz apontando para cima. A boca tortinha perturbando toda a noite e talvez o mundo inteiro. Dvina Setentrional e Ocidental Elba Donetz Vistula Weser. Teus cabelos cor de palha queimada, teu cheiro de verão desafiando o alto inverno. Sena Ardila Loire. Tua voz. O Tejo. E o calmo sentido das coisas era muito parecido com a incontrolável confusão daquela hora feita de pele,  medo, luminosidade, geografia, correnteza. 

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Contratempo





(Laura Lucia Sanz)

Gosto de lembrar da noite em que mandamos missivas ao falso cego. Bebida  abrindo trincheira no corpo e aquela ternura fora de hora, os lábios que tinham a forma de um coração desenhado por uma criança. Gosto de nunca mais poder viver aquela noite repleta de pequenas ânsias. Porque nada mais humano que querer um pouco. Os grandes desejos são como milagres, são clara raridade incalculada. O mais humano são nossos pés  cobertos dessa manta quente e amanhã nem sinal. Os nossos cabelos trançados e logo mais nem sei. Mais humano o meu corpo enrugando, as juntas se quebrando. O milagre é essa ferida que fecha, marchando contra o tempo, promovendo um nascimento fora de hora. Milagre era tua pele parecer tão a minha e eu nem saber teu nome. Mas eu falava sobre aquela noite, o gosto dos copos usados, teu jeito tão impreciso de mostrar que queria mesmo era estar lá. O céu que desabava e as pequenas demolições entre cada um de nós. Ana revirava os olhos, Julio já nem se movia. Mas havia uma alegria embriagada, um erro todo libertador que era o nosso encontro. Retidão já nenhuma, apenas os braços delgados de Aline, a voz barítona de Márcio e entre nós dois  esse tropeço constante que sustenta a graça da  mais ordenada dança.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

O diabo no caminho



Diabólico é o caminho, isso não deixa negar a aproximação feita na cultura brasileira entre o orixá africano Exu e o diabo judaico-cristão. O nosso Exu reina sobre as encruzilhadas, a sobreposição de caminhos. Exu, em certo sentido, é uma das faces do devir. Um dos nomes para o diabo é Gira Mundo: o senhor dos caminhares, das estradas, dos moveres. Capaz de abrir portas e ligar os caminhos, Exu é sempre dúbio, adorado e temido. É um elemento dialético, nem bom nem mau,  mas que pode assustar e espantar, assim como aquilo que se pode encontrar quando se caminha.                                     

  Diabólica é também a multiplicidade, as bordas. O Diabo, neste sentido, está sempre contra o unitário, inimigo de todo centro. Michel Maffesoli em A Parte do Diabo (2004) localiza a sabedoria demoníaca contra a violência totalitária de qualquer universalismo sendo uma sabedoria do corpo e da vida que incorpora até mesmo o que há de mais selvagem na existência. O autor afirma que o pensamento dicotômico e maniqueísta que assombra toda a racionalidade ocidental o tem uma origem divina.        O diabo como multiplicidade seria o reconhecimento das misturas, dos enlaces entre luz e sombra. O pensamento maniqueísta teria dado origem também à perversa associação entre mesmo e bem contra outro e mau. Nesse sentido, o encontro com qualquer alteridade radical se dá como encontro com o obscuro, com a face maldosa do ser. O agir diabólico seria perceber no outro, no incógnito da terra, uma outra coisa que não o puro mau. A cultura europeia colocou durante séculos tudo de incompreensível, de excessivo, de ambíguo, de irredutível ao sentido sob o signo do mau. A terra incógnita era lugar do fantástico, do ilimitado e do heterogêneo, mas o que se descobria outro logo passava a habitar a anônima e infame periferia do Idêntico. A sedutora terra incógnita é morada Outro e é, portanto, local de medo e de desejo, de repulsa e de atração.                                                                                                                    

Diabólico é o bordejante. É o sem identidade substancial, que pode existir de muitas formas e, mais do que isso, o que quer desmoronar aquilo que só existe de um modo, que sabota tudo que é idêntico a si.  Ettore Finazzi-Agrò ressalta que, não por acaso, muitas crônicas de conquista da América contêm uma reprovação religiosa acerca das culturas politeístas:  a multiplicidade seria, em si, uma manifestação de Satã. Para o pensamento eurocêntrico, tudo que se esquiva de uma individuação encontra logo a sua definição demoníaca. Exemplo extremado do outro demoníaco é alteridade-devoradora dos indígenas: o canibalismo. Hans Staden foi um jovem aventureiro alemão do século XVI que, após uma série se naufrágios e motins, encontrou-se com índios antropófagos em São Vicente, atual litoral de São Paulo. Staden foi aprisionado e, por pouco, não acaba devorado pelos seus sequestradores. Ao retornar à Europa, o viajante relatou sua experiência em um livro que teve sua primeira edição em 1557.    

  A antropofagia assustou o europeu a ponto de este identificar o indígena com o diabo sem nenhum esforço. Essa relação está marcada nas gravuras feitas por Theodor de Bry a partir dos relatos de Staden. Muitas imagens do novo mundo podem ser comparadas aos infernos de Hieronymus Bosch e de outros pintores medievais onde devorações, entrelaçamento de corpos, festa, horror e orgias recorrem. Na pintura Inferno, que um autor português não identificado pintou no século XVI, reúnem-se corpos sendo aviltados por demônios similares aos dos bestiários mediáveis. Porém, diante de uma caldeira onde fervem homens – possivelmente falsos religiosos, devido o corte de cabelo franciscano – está o diabo representado como um índio brasileiro tendo como coroa um cocar de penas. A tangência mais evidente entre inferno e a América são as prática antropofágicas: o inferno é sempre local para devorar ou ser devorado. Mesmo no Grande Sertão: Veredas há essa relação. O personagem Riobaldo fala: Quem tem mais dose de demo dentro de si é índio, qualquer raça de bugre (ROSA, 2001, p.38).                                                                            
Dentre as inúmeras leituras acerca da antropofagia, interessa aqui pensar na operação desistência de si implicada na incorporação do outro. Muito se pensa na ingestão do inimigo sacro pelo desejo de aumento das forças, mas é interessante pensar que as forças do antropófago não podem ser a reafirmação do mesmo, já que a força pela incorporação do outro  implica, de algum modo, em desistir da consistência de si. Finazzi-Agrò (1991) afirma ainda que a relação com a alteridade é o resultado de uma queda ou de um recuo - é, em suma, a renúncia à coerência e à univocidade do que é Idêntico. Para chegar ao Outro seria indispensável uma forma de desistência: desistir como um de-existir, um posicionar-se  de outro modo na existência. Envolveria a criação de porosidade na fronteira que separa o próprio do impróprio, o mesmo do outro; e, só colocando-se nessa condição de permeabilidade, desistir poderia ser resistir.  Fazendo conviver identidade e diferença se poderia produzir uma espécie de ultrapassagem na qual a borda que divide o lugar do conhecido do mesmo e a  terra incógnita do outro se faz local de encontros profícuos.  Nesse sentido, ter mais dose de demo em si pode ser pensado como: ter mais dose do outro em si.

Da minha dissertação, Travessias praticadas: a viagem como ensaio, que pode ser lida aqui

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Notas sobre Nymphomaniac - parte II

Na segunda parte do filme Nymphomanic, Joe inicia sua narrativa se dizendo sexualmente insensível e recorre a uma experiência da infância para falar de sua primeira relação com o gozo. Em uma expedição às montanhas, tem uma experiência de flutuação na qual recebe a visão de duas mulheres: Messalina e a Grande Prostituta da Babilônia. Junto desta visão tem um orgasmo espontâneo.


Há algo de místico nesta experiência de gozo,  algo que transborda a anatomia e a linguagem. Lacan diria que há em Joe, como alguém que se posiciona no lado feminino, a possibilidade de um gozo não-fálico, de um gozo Outro. Convém lembrar que, para Lacan, o falo não é nada que se possa localizar no corpo, mas algo que nos inscreve no simbólico. Assim, dizer que há um gozo Outro – não-fálico – é admitir a possibilidade de uma realização pulsional que não se organiza no sentido, que escapa à medida simbólica. Fui à Bíblia ler sobre a Grande Prostituta da Babilônia, encontrei esta descrição:

E a mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada com ouro, e pedras preciosas e pérolas; e tinha na sua mão um cálice de ouro cheio das abominações e da imundícia da sua fornicação. E na sua testa estava escrito o nome: Mistério, a grande babilônia, a mãe das prostituições e abominações da terra. (Apocalipse 17, 4-5)

Da Grande Prostitua, portanto, sabe-se que tem relação com o sexo, com a imundice e que em sua testa há um significante: o do mistério. Assim como Messalina, trata-se de uma mulher mítica que encarna a potência infame. Como as mulheres de sua visão, Joe também se vê como uma criatura absolutamente infame.  Lacan, em seu projeto teórico, dignifica essa infâmia como aquilo que faz enigma à lógica fálica, à lógica da castração, já que ao feminino haveria a possibilidade de operar não-totalmente nesta lógica. .

Dessa primeira cena do filme passo imediatamente para a última: Joe dá um tiro em Siegfried. O simpático e assexuado senhor, que durante todo o filme detém o saber e concede sentido  às narrativas de Joe, sucumbe a um desmedido desejo e tenta fazer sexo com ela, sendo que Joe não concede e atira nele. O fato de Siegfried se dizer assexuado, um homem das letras, regido pela lógica é como se ele dissesse: sou  um sujeito erguido pelo pensamento e não-clivado pelo sexo, não barrado pelo desejo. Acontece de Lars Von Trier nos sugerir que o sentido nunca pode dar conta da existência.




Em suas sessões com K., Joe goza roçando-se em um livro. Essa imagem me parece fundamental: ali, onde não há “palavra de segurança”, existe a possibilidade de gozar. Ou seja, não reside na experiência do saber a possibilidade de ultrapassar a si próprio, de se surpreender com o mais íntimo. É no inseguro que se goza, é  na desmesura e não no sentido, é no corpo e não na palavra,.  


 Já que o sentido não dá conta da existência, a traição insurge como a marca desse real que implode a linguagem.  No filme, a traição recorre nas relações travadas pelos personagens de muitos modos. Me parece, entretanto, que a traição se dá não como a falência de cada um dos encontros, mas como a própria verdade do desejo: a verdade do desejo é trair o sentido. 

"Ninfomania" é uma patologização que tem relação com o excesso: na cultura, o feminino sempre está no lugar do excesso, é aquilo que excede em faltar. Mas o que é mais infame e o que provoca todo tipo de angústia  é que  a mulher não é quantificável.  Fico pensando que muito da obsessão em se fazer concursos de miss, ou eleições de musas, tem a ver com um desejo em quantificar o feminino. Tentam medir quem é mais mulher para apaziguar essa potência infernal do feminino de nunca estar onde promete, mas a medição se apresenta falha a cada vez que se renova a escolha ( A mulher, enfim, não era essa, nem aquela, nem a outra, talvez seja a próxima).  Não ser quantificável – escapar da hegemonia  do simbólico – é o que aponta à possibilidade desse gozo Outro, mas também o que provoca essa estreita e aviltante relação com a infâmia.  

Nymphomanic não é um filme didático, não aponta saídas para os impasses da sexualidade, mas mostra que é próprio do desejo não garantir nada (ainda sustente tudo). Creio que Lars Von Trier exalta a mulher como essa quem pode apontar para a cultura falocêntrica (obcecada por sentido) que o que nos é mais próprio – desejar – nos é mais estranho e que nos cabe a difícil tarefa de nos responsabilizarmos pela alteridade que nos habita. Ainda que não seja um filme com uma moral, Lars Von Trier, ao fim, mata o senhor falastrão assexuado,  o “inocente”, nos dando a ver que caber na medida da própria razão não é, e nunca será, o destino dos falantes. 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

vida forma


“Os fogos dos astros e a aurora boreal estremecem no que é, apesar de tudo, a noite negra.”  Marguerite Yourcenar


Afirmativa sem reservas: amar sem exceção. Era noite e andávamos, eu tropeçava nos teus pés, caíamos com a barriga rente ao chão. E de tudo sobrava um riso, uma espécie de loucura. Depois eram teus dedos que me abraçavam, eu dançava com as tuas mãos. Uma lenta e corrompida valsa com teu indicador, um tango triste com o anelar e um samba sem reparos com o dedo menor. Teus olhos me acompanhavam mudos enquanto eu dizia da minha paixão: que toda existência fosse uma dignidade.  Então tu seguravas meu braço, com feroz delicadeza, desenhava um invisível traço no meu peito e dizia: a vida, minha pobre criança, é muita coisa, mas é principalmente forma. Então eu revirava os olhos, tomava mais um gole, calava, depois repetia sem parar frases difíceis, como a gente vai embora daqui, eu posso dormir onde você mora, que ônibus passa lá, por que é que os céus não desabam, o que é mais importante reter dessa noite, será que dá pra nadar até aquela ilha, como a gente volta para casa, qual o limite do pensamento. O  mar era assombrado de mitos e lavamos nossos corpos com navegações, tormentas, espantos, sereias ardilosas e pequenos peixes prateados.  Te disse que eu queria ser um caleidoscópio, um lago. Isso te fortalece ou  te fragiliza? Perguntavas depois de morrer de rir.  E dedilhavas meus pés: passavas as mãos por cada osso, subias para as canela e depois pulavas direto para as têmporas. Teus ossos são firmes, parecem raízes, parece a estrutura de um templo, um emaranhado de galhos. Falavas. A vida não tem sentido, a essência não perfura, fica rente. E, se não tem sentido, só pode ter forma, semblante, direção.  Viver é desenhar o tempo.  Eu era tomada de alegria lampejante de uma morna compreensão. Me erguia de súbito, dançava de um jeito leve e torto, beijava tua boca com ternura e depois rangia meus dentes nos teus. Entendi que o limite do pensamento só poderia ser esse: amar a humanidade inteira, sem exceções. Mesmo aquele que me mata. Mesmo aquele que fere. O amor pela diferença radical era o limite. Não repetir o gesto que aniquila era o desafio mais apaixonado do meu corpo. Ser apenas aquilo que diz sim: afirmar a vida forma.  Era muito tarde e tínhamos medo de tanta sombria luz. Porque nada daquilo tinha parentesco com a eternidade. Falei que o efêmero doía. Você disse que a eternidade era o outro nome do instante. Que se eu fechasse os olhos ia entender que o mais importante era nascer e morrer com a mesma fúria, o mesmo choro alucinado, a mesma aceitação. O que é aquilo que tu mais amas, perguntei.  Poder recomeçar. Frustrar a encarnação. Mover-se junto dos movimentos do céu.  Ter sede pela ausência de todo nome. Êxtase telúrico.  Mas  tu és a própria terra, eu pegava nos teus ombros.  Para te habitar é preciso estar disposta a morrer em ti. É preciso confiar em tua imprevisível ordem.  De repente, amanheceu, e a luz era uma fera.  Teu som me embalava pela casa. Já quase não te via.  Pra onde vamos?  Te perguntei enquanto seguia com alegria e tropeço na direção oposta ao medo. 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

faca cega

havia gargalhadas, tilintares, um bocejo
havia Lucio despedindo-se dos entes
ia para longe, nunca mais se soube dele
a pele morena de Lucio contra aquela faca cega
era de morrer de amor
mas havia um corpo exposto sobre a mesa
e milhares de olhos nadando sobre ele
havia a marca de um molar
rente ao meu pescoço
eu já não entendia o que era sono
e o que era aquele efeito de subitamente se ver de fora
era eu de pé, aquela mulher loira, o contador
e, como se não soubéssemos que iria amanhecer
violentamente,
nos apalpávamos com uma alegria furiosa
quem propôs a roleta russa não fui eu
foi alguém com os pulsos mais delgados
naquela hora eu tive tanto medo que achei que ia quebrar em dois
mas não foi pior que aquela noite de verão
não foi pior que desmoronar em pleno ataque
que perder o equilíbrio rente àqueles olhos
que tremer e apertar o gatilho contra o peito errado
aquela hora não foi pior
que queimar a língua
que perder o sono numa madrugada pesada de tanto silêncio
que estar viva numa madrugada  toda feita de silêncio
não foi pior
porque logo houve algo como uma dança
uma mão que agarrou meus braços
um vermelho tingindo os meus pés
a hora de partir
havia a lembrança de uma ternura extrema
de um sufoco tão total
havia eu escapando na hora exata
fugindo pelos corredores
descendo por um elevador
ganhando um texto pronto em plena madrugada
um crime sem culpados em plena madrugada
eu imaginando se Lucio teria se arrepiado
com a minha pele
antes de partir
em plena madrugada
agora havia apenas meu peito ofegante
o pulso aberto
a sensação que quase morte
é coisa de carne viva

segunda-feira, 12 de maio de 2014



A dança ou A anatomia dos Anjos

para Holbein Menezes

Há uma outra versão que diz que quando ele chega ao céu os anjos dançam. Incontáveis querubins andróginos o saúdam com um baile de samba de gafieira. Entre zig-zags, malandragens, inversões, travadas, abraços e enroscos, os anjos riem. Ele fica de canto, só olhando, os pequenos pés afundando as nuvens fofas. De vez em quando um querubim tropeça e é a maior troça. Aos anjos só é permitido fazer festa quando uma alma alegre é acolhida. Suas grandes asas atrapalham um pouco a movimentação, mas também criam uma impensada forma de erotismo. As penas roçam os olhos angelicais, acariciam seus braços, por vezes se prendem por um instante entre suas pernas. Quando dançam, os anjos elaboram seu complicadíssimo sexo. Feito de purezas dilatadas e perversas conjunturas de cócegas e ânsias.  Quando acontece esse baile é possível que na terra chova, ou que ventanias exageradas varram as ruas e os campos nus. O tremor dos anjos bailarinos afeta a terra sobremaneira, por isso  é sabido no céu que alegria é a força mais perigosa que há.                                 
A anatomia dos anjos é uma coisa interessante. Uma espécie de maquinaria, um labirinto de carne e voo. Quando ele chegou ao baile, se impressionou primeiro foi com aqueles corpos. Diferente do que se pensa, os anjos não são menos carnais que os humanos. São apenas corpos densos que o Misterioso dotou com longas asas. Pura humanidade alada. Não são perfeitamente belos e santos, talvez um pouco pálidos e entediados, isso sim. Uma anja que já tinha cansado de dança chegou perto dele e lhe deu boas-vindas:

- O céu dança sua vida. Esteja em casa.

Olhou bem para a anja e viu que parecia uma mulher do norte, uma cabocla, mistura de negra com índia, de lábios grossos, cabelo escuro e olhos puxadinhos. Suas asas não eram perfeitamente brancas, tendiam mais para um ocre sutil. Outros anjos tinham as asas cor de chumbo; essas, em sua opinião, as mais garbosas. A anja-cabocla lhe olhava com certo interesse amedrontado, um ar de dissimulação. Quando conseguiu falar, perguntou:

- Mas o que é isso, afinal?

- Esse é o céu em festa. Sempre que sobe até nós uma alma verdadeiramente alegre, temos permissão do Misterioso para dançarmos e ouvirmos músicas populares. Lá pelo quinto dia, também poderemos beber vinho. Sim, porque a festa dura vinte dias e vinte noites terrestres. O Misterioso fica meio contrariado, porque diz que o vinho bebido assim para a festa, e não na sagrada comunhão, é homenagem aos deuses antigos, é Bacanal, entende? Mas trato é trato. Nós sustentamos as arquiteturas celestes, vigiamos o obscuro e a claridade do humano, levamos mensagens para o mundo inferior, passamos dias meditando diante de claridades, assistimos ao balé do Espírito que insiste em tremular sobre as águas por um velho hábito. Em troca de tudo, podemos fazer festas quando uma alma verdadeiramente alegre vem até nós. É a Lei.

Ele estava estarrecido. Um pouco com aquela história toda, com aqueles tratos, com o fato de ser ele a alma alegre. Mas, sobretudo, porque a anja-cabocla era uma perdição. Como podia uma anja ser assim tão sensual? Os lábios carnudos, o sotaque do norte, um hálito de cajá. Havia muitas coisas que, aquela altura, desejava saber, uma delas era se lhe seria permitido flertar com aquela anja, ou mesmo chegar a toca-la. Ali, era preciso reaprender tudo, até a arte do cortejar.

- Escuta, como é o teu nome ?

- É Lidiane.

- Ô Lidiane, não tá parecendo que essa festa é para mim não. Eu não estou entendendo nada, será que alguém pode me explicar alguma coisa ?

- Você sabe dançar ?

Não sabia. Mas notou que ali, sobre as nuvens, seus pés adquiriam uma sabedoria própria. A gafieira foi substituída por um  Fox Trot, percebeu que conseguia dar incríveis giros, viradas e twists. Dançou por muitas horas, parando apenas quando passava um avião muito perto da nuvem onde estava. Os anjos estavam acostumados, mas ele levava um enorme susto cada vez que isso acontecia. Quando anoiteceu, começaram a dançar um forró arrasta-pé e os ânimos se exaltaram. Sentiu que era hora de buscar alguma explicação. Notou que  um anjo bastante andrógino observava tudo de canto. Magro, negro, alto, cabelos cheios, começando a virar um black power  e traços bastante delicados, deixando em dúvida o gênero da criatura em questão. Decidiu puxar assunto.

-  Oi, você também não dança forró?

 - Na verdade danço muito bem, eu queria mesmo era falar com você.

Tinha a voz aguda e aveludada, mas ainda poderia apostar que era um rapaz. Sua pele era belíssima e reluzia sob a noite estrelada. Tinha olhos que cintilavam, como quem olha para algo perigoso. Sua asas eram alvas, usava uma camiseta preta de algodão e calças justas também pretas. Seus sapatos pareciam pantufas, só que mais modernas. O anjo continuou:

- Eu vi você dançando. É de fato uma alma alegre. Apenas os alegres conseguem dançar em meio à incompreensão.

- Mas eu não gosto de não entender. Você pode me explicar como é o céu? Por que eu estou aqui e como será minha estadia?

- Olhe, aos anjos é vedada a possibilidade de dizer verdades. Segundo as Misteriosas Leis, dizer verdades é um dos pecados capitais, nos  arremessaria direto ao submundo, para que ardêssemos, corpo e asa, na caldeira dos Contadores de Verdade.

- Mas então, terei que ficar aqui sem nada saber?

- O Misterioso, porém, tem misericórdia. Deixa que nos comuniquemos com o que há de mais puro no ser: o corpo.

Por essa ele não esperava. Não parecia do caráter de Deus considerar o corpo superior às verdades metafísicas, aquilo o surpreendia verdadeiramente. Mas ainda não entendia como faria para obter qualquer informação. Estava cansado, com fome, queria um pouco de privacidade e, além de tudo, começava a sentir os sinais de uma enxaqueca terrível.

- Mas, então, como você se comunica pelo corpo?

- Você pode tocar em mim, cada parte do meu corpo, e do seu também, tem um pensamento. Está nos Secretos Escritos que o ser humano se engana muito acreditando ser a cabeça o centro da razão. A razão é elétrica, sanguínea, corre na pele. Basta que você toque na parte do meu corpo que quiser que verá o que meu corpo pensa e sabe.

Aquilo mais parecia roteiro de pornochanchada. Um argumento metafísico, até sublime, mas que só pode funcionar com algum tipo de sacanagem. Sentia que aqueles anjos estavam tirando uma com a cara dele. Mas o anjo estendeu sua bela mão e, sem pensar muito, ele o tocou.  Foi como se seu corpo fosse tragado para dentro de uma esfera luminosa. Primeiro só conseguia enxergar a luz, aos poucos sua visão foi voltando ao normal. Quando pode olhar, viu que estava em outra nuvem, esta isolada e silenciosa. Olhava para baixo e, estranhamente, podia ver tanto à distância, como de perto, dependendo apenas do seu desejo de ver. De repente, soube. 

Entendeu a fragilidade dos mistérios além-vida. Como se levasse um choque, ele recebeu um lampejo revelador: os anjos são aquilo que querem ser. Em verdade, os anjos eram apenas homens e mulheres que acreditavam, em vida, que quando morressem virariam anjos. O Mistério, de fato, era a fé. Dependia da criatividade de cada mente fervorosa o seu destino na Eternidade. Mas “fé” ainda não era a palavra certa, mais do que crer, era preciso desejar. Os anjos eram aqueles que desejavam sê-lo.  Então a Lei secreta que rege o universo era o desejo. Daí uma certa androginia na maioria dos corpos angelicais, fruto desse desejo bruto que transborda o gênero como é entendido na Terra. Os Anjos, acima de tudo, eram os que desejavam para muito além do corpo. Queriam ser meio macho, meio fêmea. Queriam o dom impensado do vôo. Queriam a carne em brasa toda suspensa em penas. Queriam ser a própria medida do impossível.                                                                                      

Com outro choque, soube então porque não lhe coube esse destino: nunca em vida havia desejado ser anjo após a morte, bem pelo contrário, se sentia muito mais tentado a dar uma olhada no que se passada no submundo, nas obscuras e fervorosas câmeras do Outro.  Então, com a sensação de um súbito arremesso, viu-se em uma nuvem muito alta, de onde já não podia saber mais nada da Terra. Soube que estava muito perto do limite onde se pode chegar sem se queimar no Sol. Soube que estava só. Ali, o esclarecimento que havia obtido lhe parecia uma triste notícia. Se os homens viviam, após a morte, aquilo que em vida desejavam viver, por que é que ele estava ali naquele céu banal repleto de clichês? Nunquinha que em vida tinha desejado isso para si. Então, como se um soco no estômago lhe tirasse o fôlego, veio-lhe a resposta: o texto.              

Era de conhecimento do Misterioso, esse grande amante das letras, que ele havia deixado por escrito um longa descrição de como seria sua experiência no Além. Havia descrito, em um belo texto, longos acontecimentos em um céu como aquele: feito de nuvens, anjos e a notícia de um Deus ausente. Seus anjos eram burocratas falastrões que, por ora, apenas dançavam. Estava tudo planejado para que, em seguida, tivesse a oportunidade de viver o céu assim como ele havia desejado, a ponto de tê-lo criado por escrito. Sentiu então o fervor da raiva subindo-lhe pelo corpo: eles não haviam entendido nada!            

Acontece que seu desejo não era pelo céu, mas pelo texto! Seu texto, por sua vez, não era confissão de um desejo escuso, nem atestado de nenhuma fé. O sentido do texto se fazia na escritura e só texto poderia revelar o seu próprio mistério, quem o escreve pouco sabe sobre ele. O escritor só sabe de uma coisa: do irresistível chamado da escrita. Seus temas, seus argumentos, suas aporias nada mais são que vias  por onde percorrer para frequentar o texto.  Esse sim, seu verdadeiro interesse.                                                                                   

Quando voltou à nuvem, o anjo estava com os olhos arregalados pois havia compreendido que o Misterioso – pasmem – tinha cometido um engano. Não era aquele, pois, o destino-desejo daquele homem.  O anjo silenciosamente recolheu sua mão e pediu que ele o seguisse. Andaram na direção de uma pequena torre de pedras que, até então, não havia notado. Dentro dela, havia uma escada em formato caracol, que descia rumo a uma escuridão indevassável. O anjo disse:

- É preciso corrigir um engano. Seu destino é outro. Esse você encontrará quando descer por essas escadas.

Ele sentiu um novo  ânimo lhe afetar o corpo, mas também um certo medo. O que encontraria ali? O anjo continuou:

- Aqui é o paraíso dos escritores: a biblioteca. Nunca soube como é de fato, pois não é o meu. Olha, a verdade é que todos vamos ao paraíso depois da vida. Não importa se o sujeito deseja o inferno e vai para lá, pois em verdade aquele inferno é a sua delícia, seu ardor. Houve um erro, digamos, de interpretação de texto.  O Misterioso, através dos meus olhos, deu-se conta disso agora quando você acessou os Mistérios. Seu desejo não era o céu como escreveu, mas o próprio escrever. E é por isso que você vai ser transferido. Mas saiba que você conseguiu aquilo que talvez todos os escritores desejam: você confundiu a ordem perfeita do Mistério. Agora descerá em direção aos Mistérios da Biblioteca. Boa viagem.

Enquanto ia descendo as estreitas escadarias, sentiu um fervor de orgulho animando o peito: conseguira, trapaceara o próprio Deus. Sempre tinha tido admiração por João Grilo, esse astuto enganador, e agora havia superado mesmo a mais brilhante de suas façanhas. E não sabia bem como, só sabia que tinha sido assim. Antes de mergulhar no obscuro e encontrar seu definitivo e correto Paraíso, pode ouvir a Misteriosa Gargalhada. Deus ria de seu próprio engano. Quanto a ele, estava orgulhoso e animado, mas lamentara uma única coisa: não poder mais dançar com Lidiane. Ô Anja deliciosa!