antes do tremor:
com um mover de dentes anuncio aquele vento perigoso que te escalda rosto seco, que te invade olho toda cava. prevejo aquele terremoto que te treme o ponto cego, treme e inunda a área surda. pra te salvar, deita aqui que te perturbo, que dou um golpe de pernas, um gole de bebida ardente e te deixo manso. pescaria nos lençóis: tua carne anzol, minha boca de peixe faminto e inconsequente; tua cara isca, meu olho fome. me pede um amor calmo que te cubro de café amargo, beijos em plena plataforma, promessas difíceis, traições sem nome, noites de coluna rente ao chão. me pede uma calma quente que palpito como uma enxaqueca diante do sol ao meio-dia, que explodo junto ao êxtase das horas curvas, que fico calma feito a louça na pia cheia. manhã tarde e noite pensando quando esse chão vai desabar, quando que vem o descanso da ira, a negação da fuga. te convenço a ficar te apresentando a anatomia da casa, o prazer do tédio, a embriaguez do medo.
tremor:
chega súbito. mas mansas são tua dores. desaba o corpo firme, escorre. o prazer pela dificuldade: tabuada do oito, saber não ser, preferir gozo ao nome, preferir o riso à honra, esquemas geométricos, idiomas mortos. teu ofício é trair os símbolos, as associações infalíveis, a linguagem e seus sentidos obscuros. com teu corpo quebras os sentidos insondáveis, rompes com as verticalidades, fundas um solo de terra úmida sobre cada metafísica. não te salvo porque tua salvação seria se perder. não te guardo, que teu berço é tudo que oscila. o olho do furacão, a pálpebra cansada ou jubilosa, a língua úmida sabotando as regras do idioma. olho pro teu rosto em pleno espanto, tudo em ti desaba e teu sorriso resta.
sábado, 15 de março de 2014
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
- Tua pele é sombra, poça d’água no escuro. Pressinto teu cabelo emaranhado. Que cultivas entre os fios? Sementes, filtros de amor, ossos de reis assassinados, uma pirâmide com a Esfinge dentro? Quais perguntas enroladas nesses nós? Com tua testa sustentas a noite, o riso dos homens tontos, a alegria de todo deslize. Rasga o dia com teus dentes. Guardas uma onça dentro da tua boca tensa, anunciam insurreições os teus quadris. No peito, um milhão de pernas correndo com a alegria da revolta. Se coloco o ouvido rente a ti, escuto o farfalhar de asas, o mar revolto, o rugir da terra, um grito de pavor. Agitam minhas pernas pensar nas tuas afundando a terra escura. Queima a minha boca pensar na tua garganta aberta para o dia ainda tão sem fim.
- Eu conheço o chão, o corpo das esquinas. Eu tateio as lajotas, investigo os buracos mais prosaicos, me ponho estático diante de um degrau. Sou um dos teus profetas? Um desses homens que pernoitam sob os tuneis cumprindo desígnios divinos, esses tão miraculosos que só poderiam ser realizados por um homem puro: um sem casa, sem família, sem o alfabeto grudado na pele. Um homem desses que conseguem ler os mandamentos no pelo de um cão sarnento e são vigiados pelo eterno dogma dos céus tediosos. Toco teu braço e teus ossos recuam, tua pele oscila um pouco acima, como se estivesse desgrudada do esqueleto. Vagueias? Conjuras? Que guardas no vão entre a pele e o osso?
- O olho do homem que me criou. Suas mãos ásperas de lobo manso. Seus dentes alvíssimos arranhados de bicarbonato. Sua pele espessa. Junto desse, contabilizo os dois olhos que tenho na cara e assim enxergo o mundo. Do pai herdei um olho no avesso da pele, da mãe os ossos que se escondem. A pele que avança é mesmo minha, um tipo de dança que inventei, é assim: fecho os olhos no quarto escuro ou no meio de uma avenida louca, coloco as mãos em forma de prece bem rígidas rente ao rosto. Dentro da boca, a língua dança. Todo o resto denuncia um corpo penitente, até meio santo. Tipo desses que meditam enquanto o querosene aguarda o fósforo riscar. Mas minha invenção é a língua bailarina. Avança e recua em direção ao céu da boca, as gengivas, ao escuro da garganta. Quando danço, minha pele alteia, ganha uma vida toda dela. Meus ossos repousam dentro de um corpo que não cessa de nascer.
- É aqui, cheguei. Estou em casa. Obrigada pela companhia.
- Calma, não larga ainda do meu braço. Eu te guiei com os olhos, agora me leva um pouco pela escuridão. Vou fechar as pálpebras e você me diz alguma coisa da cegueira enquanto me leva até a porta tua casa. Um dois três e já
- Fôlego nenhum bastava. Quando eu era criança, sempre queria ir mais além do corpo. Os músculos ardiam, mas as pernas tinham sede de correria, de pontapés. A visão já esmaecia e eu conhecia o mundo feito um boi nervoso, desses que soltam para correr na multidão. O corpo da única mulher que olhei sabe como era? Comprido, espesso, negro, brilhante, violento. Tinha umas cicatrizes no quadril. A prima que se despia nos banhos de cachoeira, que deixava frestas milagrosas nas portas dos banheiros, a prima que cruzava as pernas lentamente. Quando ceguei era já tinha um filho e esperava outro. Eu me embolando para dentro e ela colocando uns corpos no mundo fora. Cegar foi assim, minha filha, o mundo de relance, o corpo de uma mulher linda e depois só a notícia dos nascimentos e das mortes. Vê só, cegar não foi muito diferente de viver. A minha casa é aqui.
domingo, 2 de fevereiro de 2014
Senhora das vagas, ondula meus cabelos com a tua língua quente.
Me abraça com teus mil dedos de lâmina, dedos de peixe prateado que corta o escuro veloz. Senhora do meu assombro, dos naufrágios em silêncio, me toma pelos olhos, faz do meu peito um reino teu. Planta fundo em minha carne o aguilhão da correnteza. Implica um quinhão de força impiedosa nos meus atos mansos. Minha pele na tua, espelho d’água, me ensina no abraço a tarefa do que afunda e sustém. E no teu corpo crespo deixa que eu aprenda o equilíbrio. Navegar com a coragem insana dos que se sustentam no mover daquilo que não podem controlar. Senhora do mar, salga minha pele. O sal faz arder ferida aberta: essa é a tua benção, tua caridade. Senhora de todos os berços, vive em minha pele, sussurrando em meus ouvidos, para que eu não esqueça fácil, que onde o tesouro reluz é onde o ar acaba, e que no terreno movediço é onde o corpo aprende a se botar de pé.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
Sobre a ferida, o sol.
Passou o feriado e eu fiquei pensando no São Sebastião.
Os santos e o inferno sempre
foram boas desculpas para os artistas mostrarem o êxtase da carne e o maléfico maravilhoso. Sebastião me
parece uma dessas figuras que personificam o gozo, além de ser um corpo idealmente belo, parecido com os homens criados pelo estatuário grego. Como se Adônis fosse
retomado pela cultura cristã, mas com um álibi que possibilita a exaltação da
sua beleza sobre-humana: a ferida. Estava lendo Espelho da
Tauromaquia do Michel Leiris e encontrei por lá essa descrição do belo:
“(...) beleza alguma seria
possível sem a intervenção de algo acidental (o infortúnio ou a contingência)
que arranque o belo de sua estagnação glacial, com o Um sem vida faz-se
Múltiplo concreto ao preço de uma degradação. (...) a beleza não se constituirá
pelo mero contato de elementos opostos, mas por seu antagonismo mesmo, pela
maneira ativa com que um irrompe no outro, deixando aí sua marca, como ferida e
depredação. Não será belo senão aquilo que sugere a existência de uma ordem
ideal, supraterrestre, harmoniosa, lógica, mas que ao mesmo tempo possui – como
tara de um pecado original – a gota de veneno, a ponta de incoerência, o grão
de areia que perturba o sistema. Ou então, inversamente, será bela toda borra,
todo veneno que uma ínfima gota ideal venha iluminar.”
Interessante pensar que São
Sebastião sincretiza com o orixá das matas Oxóssi na nossa Umbanda. Se Sebastião
é a caça, Oxóssi é caçador. O artista, como o que lida com as potências dessa beleza venenosa, é aquele que fisga por ter sido, antes ele, fisgado. Também ele empunha a flecha e tem, a um só
tempo, seu o dorso transpassado. É picada e mata.
Essa figura que personaliza o
belo masculino remete também a Apolo, o deus das formas, das medidas e do sol. Sobretudo nesses dias de janeiro, é difícil pensar que o sol possa ser entendido como isso que garante a ordem. As criaturas dos trópicos vivem sob o signo da cintilância, tem os olhos maculados pelo brilho e a
pele fustigada pelo sol.
Nos trópicos, Apolo se revela
dionisíaco. Sebastião se revela Oxóssi. O ideal - alhures intangível - nos tange com
raio e flecha, porque transborda de si mesmo, excede.
Aqui são os deuses que nos oferecem a sua
outra face. E a beleza é uma musa envenenada pela luz.
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
infância à tarde
(fotografia: Maurizio Cattelan e Pierpaolo Ferrari)
é antigo em meu inferno o pavor dos paraísos
arranhava a garganta no olho do dia. lavava os azulejos com a voz. me sustentava sobre coisas frágeis, fazia malabarismo no fogão. o medo era alguma coisa que se movia entre meus dedos. mariposas, astronautas, mapas ilegíveis, cartas amarelas. o calor me acariciava entre as coxas. no sofá estudava distensões, orgasmos, cambalhotas. notava as feições do acaso como a de um tigre numa jaula. sonhava que cometia crimes e escondia as evidências dentro da barriga. sonhava com aviões, pontes e cadeiras com os pés altos. nunca cabia dentro o que eu queria ocultar do mundo fora. ria nervosa sozinha diante do espelho. repetia um nome em voz alta demoradas vezes como uma oração. praticava apneia entre os lençóis. passava tardes pesquisando mistérios, mascando chiclete, brincando de sustentar copos de vidro na boca sem usar as mãos. revestia pernas e braços de hematomas, esbarrava nas quinas e chorava com a intensidade de quem nasce. achava que podia ser a Eleanor da Aquitânia, fazia do meu rosto um nicho, um altar. depois me dissolvia nas horas quentes. tomava leite condensado direto da lata. queria fechar todas as portas, todas as frestas, queria descer ladeiras íngremes, sentir a barriga gelar. o abraço que machucava o corpo todo, o beijo nos olhos para tirar o cisco. os dias sem familiaridade com tempo. literatura na piscina que não dava pé. tremores na sombra. o formigamento na nuca. inventava que odiava praia. me vestia feito uma ninfa com acne, transformava um lençol velho numa roupa cerimonial. tentava aprender a dirigir num condomínio fechado. pendurava folhas de revistas pelo quarto. inventava meu corpo, a direção dos cabelos, a cadência do passo. o paladar bruto, o tato procurando peles impensadas, os olhos faiscando mais que o sol.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
As questões colocadas pelos filmes de Lars Von Trier, desde Breaking the Waves, apontam para uma discussão em torno das potências do feminino. Assistindo a Nymphomaniac me dei conta de que, se as personagens maternas de seus filmes são normalmente "mães más", é porque ele quer desviar radicalmente da relação feminino = maternidade e colocar o feminino no lugar da alteridade absoluta, um pouco como quis Levinas, Kierkegaard e Lacan em seus projetos teóricos. A narrativa de Nymphomaniac me fez pensar na tradição literária das auto-biografias dos santos. O modo como Joe fala de sua vida tem alguma relação com o 'Confissões' de Agostinho e 'Livro da Vida' de Teresa. O conceito de pecado surge em sua narrativa - para logo ser colocado a prova. Flüsser em, A História do Diabo, lembra bem o quanto os santos tem relação com a luxúria:
As lendas medievais descrevem a vida dos santos . O que nos impressiona nessas lendas é a luxúria violenta dos santos. Fugiam eles da luxúria para lugares ermos, mas a luxúria estava em seu encalço. As visões desses santos superam de muito as pornografias mais audaciosas da atualidade. As pinturas de Breughel dão uma pálida ideia da sua virulência impressionante. Eram as almas dos santos palcos de luta violenta entre luxúria e inibição, entre o diabo e Deus. Para o cristianismo medieval era a "carne" o próprio diabo, e "mulher" era o nome da carne.
Lars Von Trier também afirma a mulher como o nome da carne. Só que a carne não se funde, desliza. Como na brincadeira das duas meninas no banheiro molhado, a carne passeia entre outros corpos, desliza pelo corredor do trem, tangencia o mundo - entre bons e maus encontros. Dois corpos não viram uma só carne como quer a bíblia, mas uma só carne pode se fazer múltipla. O filme mostra a inconsistência do conceito de ninfomania, isso que seria a patologização da sexualidade feminina, colocando, entretanto, os impasses do desejo à prova de qualquer solução evidente. Não à toa o filme termina com Joe fazendo sexo com o homem que amava (depois de ter ouvido de sua amiga que o amor era o segredo para o sexo bom) e revelando: eu não sinto nada.
Existe algo na insatisfação feminina que aponta para os domínios de outra patologia: a histeria. Muitos acusam Lars Von Trier de misoginia mas, ao meu ver, ele eleva a insatisfação das mulheres à força motriz de uma existência que se indaga profundamente acerca de si própria. Nem filho, nem sexo, sequer o amor: nada é completude, porque o absoluto não tem consistência. A histeria, como a prática da insatisfação, aqui é uma forma de resistência contra as soluções pré-estabelecidas.
As histéricas ajudaram Freud a conceber o método psicanalítico porque, segundo a leitura de Lacan, histérica é aquela que não cessa de se indagar sobre a existência da relação sexual. A histérica inscreve em sua própria carne uma questão que é de toda a humanidade. Por ser a que lança a questão, é também ela que pode se aproximar de uma resposta: a relação sexual - o absoluto, a completude, a fusão - não existe. Nesse sentido, é ela que sustenta no corpo a ética do desejo: não ceder do seu desejo nada mais é que não ceder da sua incompletude, da sua possibilidade de se satisfazer apenas momentaneamente - segundo Lars Von Trier: apenas em polifonia - sem se fundir com o absoluto. É esse o risco que ao qual a "ninfomaníaca" se lança.
domingo, 5 de janeiro de 2014
(fotografia: Laura Makabresku)
- onde estás?
- acima ou abaixo de onde aceno. estou longe, colado aos pés da mesa, sob tuas coxas, entre os lençóis. vês?
- vejo, mas não creio. mancha que és. sopro. toca meus ossos para que eu saiba. vejo que oscilas, que tua carne treme. queria fincar teus dois pés no chão. queria que teu corpo fosse uma torre antiga, dessas que sobrevivem a passagem do tempo, os bárbaros, os raios, a espuma.
- estar contigo não é de pedra. é sal sobre a madeira. metal oferecido ao humor do céu. ferrugem. luz pouca onde se encena o teatro das sombras leves. é vago e cai.
- a mim bastaria que fosse um eixo. centro do meu corpo, norte da minha razão. queria teu corpo pleno, duro feito a terra, com a constância de um aço.
- te toco pelo risco. o centro da terra, feito um coração, também ele nunca para, explode, escorre, junta e arrebenta. queima, varre. estar junto nunca é bastar, é arte de exceder e de faltar.
- sonho com altitudes. uma luz plena que, súbito, falta. dança dos astros. mergulhos. toda hora esses mistérios verticais. esses eclipses. me vês e não ocupo o centro?
- não é que não o ocupes. é que centro mesmo não há. mas sobram bordas, pele e margem. o corpo é todo periférico, como o tocar. frequento-te litoralmente, me apresento às tuas beiras, luz amena que se estende.
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