terça-feira, 21 de janeiro de 2014

infância à tarde

(fotografia: Maurizio Cattelan e Pierpaolo Ferrari)
é antigo em meu inferno o pavor dos paraísos
arranhava a garganta no olho do dia. lavava os azulejos com a voz. me sustentava sobre coisas frágeis, fazia malabarismo no fogão. o medo era alguma coisa que se movia entre meus dedos. mariposas, astronautas, mapas ilegíveis, cartas amarelas. o calor me acariciava entre as coxas. no sofá estudava distensões, orgasmos, cambalhotas. notava as  feições do acaso como a de um tigre numa jaula. sonhava que cometia crimes  e escondia as evidências dentro da barriga. sonhava com aviões, pontes e cadeiras com os pés altos. nunca cabia dentro o que eu queria ocultar do mundo fora. ria nervosa sozinha diante do espelho. repetia um nome em voz alta demoradas vezes como uma oração. praticava apneia entre os lençóis. passava tardes pesquisando mistérios, mascando chiclete, brincando de sustentar copos de vidro na boca sem usar as mãos. revestia pernas e braços de hematomas, esbarrava nas quinas e chorava com a intensidade de quem nasce. achava que podia ser a Eleanor da Aquitânia, fazia do meu rosto um nicho, um altar. depois me dissolvia nas horas quentes. tomava leite condensado direto da lata. queria fechar todas as portas, todas as frestas, queria descer ladeiras íngremes, sentir a barriga gelar. o abraço que machucava o corpo todo, o beijo nos olhos para tirar o cisco. os dias sem familiaridade com tempo. literatura na piscina que não dava pé. tremores na sombra. o formigamento na nuca. inventava que odiava praia. me vestia feito uma ninfa com acne, transformava um lençol velho numa roupa cerimonial. tentava aprender a dirigir num condomínio fechado. pendurava folhas de revistas pelo quarto. inventava meu corpo, a direção dos cabelos, a cadência do passo. o paladar bruto, o tato procurando peles impensadas, os olhos faiscando mais que o sol.


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