quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Sobre a ferida, o sol.



Passou o feriado e  eu fiquei pensando no São Sebastião.

Os santos e o inferno sempre foram boas desculpas para os artistas mostrarem o êxtase da carne e o maléfico maravilhoso. Sebastião me parece uma dessas figuras que  personificam o gozo, além de ser um corpo idealmente belo, parecido com os homens criados pelo estatuário grego. Como se Adônis fosse retomado pela cultura cristã, mas com um álibi que possibilita a exaltação da sua beleza sobre-humana: a ferida. Estava lendo Espelho da Tauromaquia do Michel Leiris e encontrei por lá essa descrição do belo:

“(...) beleza alguma seria possível sem a intervenção de algo acidental (o infortúnio ou a contingência) que arranque o belo de sua estagnação glacial, com o Um sem vida faz-se Múltiplo concreto ao preço de uma degradação. (...) a beleza não se constituirá pelo mero contato de elementos opostos, mas por seu antagonismo mesmo, pela maneira ativa com que um irrompe no outro, deixando aí sua marca, como ferida e depredação. Não será belo senão aquilo que sugere a existência de uma ordem ideal, supraterrestre, harmoniosa, lógica, mas que ao mesmo tempo possui – como tara de um pecado original – a gota de veneno, a ponta de incoerência, o grão de areia que perturba o sistema. Ou então, inversamente, será bela toda borra, todo veneno que uma ínfima gota ideal venha iluminar.”  

Interessante pensar que São Sebastião sincretiza com o orixá das matas Oxóssi na nossa Umbanda. Se Sebastião é a caça, Oxóssi é caçador. O artista, como o que lida com as potências dessa beleza venenosa, é aquele que fisga por ter sido, antes ele, fisgado. Também ele empunha a flecha e tem, a um só tempo, seu o dorso transpassado. É picada e mata.

Essa figura que personaliza o belo masculino remete também a Apolo, o deus das formas, das medidas e do sol. Sobretudo nesses dias de janeiro, é difícil pensar que o sol possa ser entendido como isso que garante a ordem. As criaturas dos trópicos vivem sob o signo da cintilância, tem os olhos maculados pelo brilho e a pele fustigada pelo sol.

Nos trópicos, Apolo se revela dionisíaco. Sebastião se revela Oxóssi. O ideal - alhures intangível -  nos tange com raio e flecha,  porque transborda de si mesmo, excede. 

Aqui são os deuses que nos oferecem a sua outra face. E a beleza é uma musa envenenada pela luz.


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