Quando eu tinha 20 anos escrevi esse pequeno romance. Desde então, nunca achei que valesse a pena mostra-lo ao mundo. Hoje parei para revê-lo e tudo fez muito sentido, mesmo o que me pareceu ingênuo. E mais sentido ainda fez reencontrar essa que um dia eu fui. Não tem nada de virtuoso aí, mas muita honestidade juvenil. Para que eu não esqueça nunca mais, para minha mãe, para Simone Weil e Joana D'Arc, para o leitor.
http://pt.scribd.com/doc/117805241/Historia-das-Cinzas-Priscilla-Menezes
domingo, 23 de dezembro de 2012
sábado, 1 de dezembro de 2012
Eu te confronto, as pernas onde
deveria estar a cabeça, o coração batendo forte, formigando feito um pé
cansado. Meu corpo correndo solto pela casa, tua voz galopante me pedindo
quietude, me pedindo ajuda. Dias de sono partilhado: teus cansaços embalando meu sonho, minha fome pedindo teus olhos. Herdei de ti os olhos ansiosos, os
dentes afiados, as mãos cortantes. Tu abrindo os tecidos, as peles,
desvendando existências. Eu manuseando superfícies, roçando meu fôlego contra
folhas, catalogando tatos.
Estamos, eu e tu, sob um sol
pleno e vertical. Em volta, o dia quente, o chão seco de areia extensa.
Sentamos uma de costas para a outra. Nossas respirações dançam, és sombra para
mim. Tu, alívio para minha pele.
Estamos em uma calçada, a casinha
de bonecas que ganhei de ti vai embora rua abaixo como um monumento errante. Dou adeus a algo que não sei o que é. Seguro tua mão. Inspiro longamente e inauguro uma nostalgia, o dia está repleto de promessas. Tu, solidez da minha tontura.
Andamos por corredores extensos,
minha cabeça se ampara em teus quadris, dissolvo, escorro. Teus braços me
mantém inteira. Tu, água calma onde ensaio tormentas.
É porque tenho o dia todo para
mim que abro gavetas, investigo armários. Tardes entre roupas, sendo coisa
entre as coisas. Descobri uma vertigem nas gavetas: um espelho apontando para o
teto, entre as minhas mãos, rente à minha barriga. Ando olhando para o teto
refletido, faço dele um chão fantástico: tropeço, esbarro. Passo o dia
deslizando pelo teto e tu não sabes. Teu corpo ausente, lugar da criação do
meu.
Porque tua voz é o início do
mundo que eu conheço, eu gestaria o som da tua fala, como tu gestaste o que eu
sou. Engendraria um timbre teu, pra ver nascer de mim essa sonoridade primeira.
Nossas vozes entrelaçadas, se estranhando. Tua voz me apresentando ao mundo e o
mundo se despindo em mim: esse, o céu; esse, um sorriso de amor; essa, uma
tristeza silente; esse, o mar; essa, tu.
Como eu te dava as mãos, para te
ver arrumar minhas unhas, cuidar do meu corpo inquieto, do meu cabelo agreste.
Porque teus vigilantes olhos me alertavam quando ia mais fundo que devia - no
mar, pelas ruas, pelos dias nebulosos. E também porque danças sem que ninguém
saiba, teu corpo quieto, de discreta bailarina, é que danço pelo mundo. Porque
de ti herdei o fôlego, a coragem, o grande aprendizado de estar só, a alegria
no ameno, a infinita tarefa de dar à luz todos os dias aquilo que um dia se
gestou.
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
Aos caminhantes:
Desata. Recebe do tempo o sentido
dos nossos passos mansos. Já é tarde e não nos conhecemos. Caminhamos pela
noite, eu sei que prendes teu corpo a um centro. Desprende. Estamos longe de
qualquer destino, o centro é o céu da minha boca perdido sob a notícia de um céu maior. Nada
nos acolhe, nenhuma âncora, nenhuma direção. Toco o teu braço apenas para que adivinhes:
não há motivo para estarmos aqui, o que nos trouxe foi a febre de nossas
pernas. Atravessa meu pensamento uma perigosa intenção: que meu mais antigo
destino seja o meu inesperado ardor. Não
há nada que nos preceda, nenhuma secreta conjunção: essa intricada sorte que
nos enreda é filha de nossos ímpetos ainda há pouco indecorosos. Sentes a
lentidão morna que nos protege, essa comunhão violenta e imprópria com tudo que
tem finitude? Esse é o risco que corremos quando abençoamos nossos pés com uma
desmedida vontade de ir. Magia é coincidir ato com apetite, e em estado de magia
os bons corpos se encontram.
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
lamarckianas é um trabalho no qual homenageio a ideia de que por esforço consegue-se adquirir as características desejadas de um modo tão profundo a torna-las até mesmo transmissíveis. no trabalho, busquei estar em quatro meios diferentes para adquirir suas características.
o canto, e sua vocação para ser meio abertura e meio fechamento.
a solidão dançante das plantas.
a inquietude esquecida de um armário.
o a profundidade rasa de uma banheira.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
sobre flores e eqüinos
rodrigo sérvulo
...
começo a te inventar. seu nome agora é margarida, mas pode ser albertine, tamina, ou pode ter o nome das plantas, frutas ou animais. priscilla não é mais um nome próprio, priscilla é o que margarida inventa para si nos momentos de descuido, desenhando, pegando um ônibus, dançando, chorando, tomando café da manhã, tendo raivas, sorrindo; também - e agora principalmente - no momento do seu medo, quando o coração cria para si pernas e vira um cavalo descontrolado. margarida sabe que priscilla não é uma metáfora e que seu coração torna-se um cavalo descontrolado quando ela não sabe, quando ela apenas sente. e cá para nós, sentir o que seja sem saber nomear pode nos levar à uma certa loucura, que pode ser boa ou não. margarida sente muito intensamente esse palpitar do coração feito cavalo descontrolado e o atribui a priscilla. mas margarida não sabe ainda quem é priscilla e quando for saber, ambas serão outras coisas. mas priscilla sabe que sou eu, mas finge ser outras coisas para fazer o cavalo amansar. priscilla torna-se um campo vasto, cria rajadas de ventos calmos, torna-se uma estrela cadente, vai em busca de palavras novas, vai às memórias boas que habitam sua epiderme, cria uma fuga não-covarde para essas faíscas tristes que habita suas células, que são as células de margarida, e que também são minhas células. você, margarida, ainda não sabe o que fazer com priscilla. eu, que sou priscilla, já estou fazendo de mim uma outra coisa quando me atribuo você a margarida. já somos vários, não temos nome, nem importa tê-lo, porque a solidão tornou-se dualidão, com seus duplos - uma solidão povoada, que dá cambalhotas, que rói caminhos, que se junta às forças da minhas pernas ao caminhar, à cadência da sua voz ao falar, às sinfonias do pensamento, aos sentires nomeados e inomináveis que povoam-me e te povoa, povoando margarida porque priscilla porque eu também. margarida sabe que priscilla é um abraço que parece uma rede, um travesseiro também e não há nada de onírico nisso, margarida mesma sabe que em priscilla tudo é possível. até priscilla ser eu e fingir ser margarida quando finge ser isso: eu. margarida toma priscilla pelo braço, vive com ela não porque foi obrigada, mas porque a criou; eu também, que sou priscilla, habito margarida que às vezes é outra coisa. isso torna meu sentir confuso. sempre acho eu, priscilla, que na hora do banho margarida não sabe lhe dar com a água. ela sempre pensa que a água cai sobre o corpo dela, limpando-a. eu, priscilla, sinto que a água está com o meu corpo, limpando sabe-se lá o que, se limpa. desconfio das coisas que estão sobre, porque às vezes distante. prefiro com: com medo, com cavalos no peito, com alegrias também, com viagens nos bolsos transbordando o cotidiano, com respostas para coisas que ainda não se perguntou. priscilla sabe bem que margarida vive uma vida tão agitada. eu também vivo. todos nós vivemos. tudo está sendo agitado, tudo. inclusive você, priscilla, e você também margarida, que foi inventada por mim. você vai viajar e isso não quer dizer que você não possa ficar parada, no seu cantinho. (eu prefereria te chamar de um nome parecido com o de pássaro). margarida, você quer um cantinho para repousar na priscilla que te habita. dá trabalho está com priscilla, eu sei como é isso. priscilla é uma menina faceira e danada, quer respostas igual as crianças querem as perguntas. margarida, você ainda não sabe, mas você também sou eu. eu que inventei ser priscilla. você, priscilla, sabe que o cavalo em nosso peito, que sobe até o pescoço como um monte de folião batucando uma canção inaudível é uma crise que precisa de um antídodo. margarida quer encontros. eu também quero encontros, por isso forjo-os para não fugir covardemente de priscilla, nem de margarida. invento, primeiro, um monte de coisas, que não são metáforas, repito, são coisas tão reais que nos fazem perder o sono, nos fazem chorar, ter frio ou calor ou fome ou fastio. e também nos deixam aliviados, até com volições para invenções-outras. você, que é margarida, é priscilla sem respostas ainda para suas perguntas. essa é uma invenção turbulenta, mas se você perceber sua calma, seu aninhar-se, seu abraço, sua atenção a todos os movimentos das células, e minha dedicação nisso tudo, verás, margarida, que invento-lhe um novo ser para poder dividir contigo essa priscilla com seus sentires nomináveis ou inomináveis. invento-lhe em seu caderno onde-se-pode-tudo. é uma invenção que se precisa. você podia ser um queijo de manteiga, um chá-mate de limão bem azedo. são 00:55 minutos e daqui há pouco não são mais. preciso levar você, margarida, para ver o ocaso amanhã e assim saberás que o que priscilla sabe do ocaso. iremos falar de várias coisas, iremos confundir as coisas até que elas conquiste um novo tom, uma nova cor, bem clichê mesmo. essa nova cor, margarida, será a cor de priscilla, cor ação que dará novos tons ao seu coração. começo a te inventar e como toda invenção é da ordem do experimento e não do já-dado, já-feito, me pergunto qual é o efeito de tais pedaços entre seus dentes, entre seus cílios. toda invenção é sempre uma tentativa. essa foi uma tentativa de fazê-la perceber que margarida não é nada mais que minha vontade de estar no meio do seu ser tão de vontades ainda não ditas, de participar de seus pedaços, de forma inteira. e de tentar advinhá-la para te fazer uma invenção parecida com um acalanto, uma flor ou um travesseiro que se oferece a sua cabeça com uma franja mal-feita por você. aos poucos, tentarei forjar rédeas e uma carroça para domar esse cavalo e os outros possíveis desse ser tão com muitas veredas. invento-lhe também algo como uma cor de ambár. bárbara, como queiras, mas ambár.
...
terça-feira, 25 de setembro de 2012
- Senhora das Tempestades
Manuel Alegre
Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
trazes o terremoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.
Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
há uma lua do avesso quando chegas
crepúsculos carregados de presságios e o lamento
dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.
Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
nasce uma estrela cadente de chegares
e há um poema escrito em páginas nenhuma
quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.
Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.
Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.
Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhora das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.
Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgica
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.
Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita
alquimia de sons Senhora do vento norte
que trazes a palavra nunca dita
Senhora da minha vida Senhora da minha morte.
Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
Senhora que me dóis em todos os sentidos
como um ritmo só ritmo como um ritmo.
Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
Senhora da circulação que mata e ressuscita
trazes o mar a chuva as procelárias
batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.
Batem os sons os signos os sinais
trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
fica o sentido trágico do rio das vogais
o mágico passar das consoantes.
Senhora nua deitada sobre o branco
com tua rosa dos ventos e teu cruzeiro do sul
nascem faunos com tridentes no teu flanco
Senhora de branco deitada no azul.
Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
teu rosto de sereia à proa de um navio
tudo em ti é partida tudo em ti é distância.
Senhora da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.
Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.
Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
galopas no meu sangue com teu catéter chamado Pégaso
e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.
Tudo em ti é magia e tensão extrema
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
batem as sílabas da noite no coração do poema
Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.
Tudo em ti é milagre Senhora da energia
quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
ao som do nome que só Deus sabe Senhora das tempestades.
sábado, 15 de setembro de 2012
Diálogo
Em
uma biblioteca, estamos um de frente para o outro.[1]
Eu: Eu preciso desviar dessa mulher
que me atravessa. Quem sou, nessa hora pálida, rodeada pelo peso de um tempo antigo, procurando
descrever o instante no momento pleno de
seu nascimento? É que as estratégias para me esvaziar são simples e me matam,
faço um voto de silêncio, um voto de sede, um voto de jejum. Quero fazer surgir
essa sobra: enquanto meu corpo não come, não fala, não bebe, o que pensa pelas
mãos? Passar o dia na experiência de sentir o dia passar. Passar o dia me narrando o próprio dia.[2]
Passar o dia sem saber como passa o dia. Jogar com o tempo, com as
possibilidades do meu corpo e as possibilidades da escrita. Estou nessa
biblioteca faz muito tempo e aqui ficarei por oito horas, o horário de um
expediente de trabalho ou de uma boa noite de sono. Não farei nada além de
olhar e escrever. Não sei como o tempo passa.
Ele: Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma
mudança e uma aceleração do tempo. “Em
meio aos passatempos contínuos e divertimentos vários, as horas, os dias, as
semanas, passavam num lampejo.”[3]
Eu: Vim por um deslumbre simples, as
lombadas dos livros antigos empilhadas, pontos dourados nos letreiros, formando
uma constelação de pequenos sóis sobre um fundo geométrico. A claraboia-rosácea
, de onde pende um lustre pesado e antigo, feito um astrolábio de gigantes. Desejo de tocar as lombadas dos livros
intocáveis, como um amante cuidadoso que
acaricia a amada enquanto sonha em arrancar-lhe um grito de temor. Com esta
dupla paixão, violaria estes livros antigos, já meio devorados por outros
apetites. Quem me acompanha ?
Ele: Os ajudantes . Alguém – não se sabe direito quem – os confiou para nós,
e não é fácil livrar-se deles . Em suma, “não sabemos quem são”; talvez
sejam “enviados” do inimigo (o que
explicaria por que insistem em ficar à espreita e espiar). Mesmo assim,
assemelham-se a anjos, a mensageiros que desconhecem o conteúdo das cartas que
devem entregar, mas cujo sorriso, cujo olhar e cujo modo de caminhar parecem
uma mensagem. Metade gênios celestes, metade demônios. [4]
Eu: Nessa solidão, quando não me
integro a nenhum fluxo de tempo compartilhado, quem são meus ajudantes? As
camadas de um tempo que aqui se inscrevem, a inspiração soprada por um ser
luminoso ou diabólico, que me faz permanecer aqui e escrever. Sinto que estar
aqui é cumprir uma espécie de flagelo. Ideia
instigante, quase perigosa, essa – da escrita como penitência. A escritura é
sempre associada à formação de um espírito crítico, à auto-libertação. E quando
escrever é se testar? É botar tudo à prova, em estado de estremecimento? Escrever com o sangue[5]
até sentir-se sem sangue. Narrar com o desespero de Sherazade, para não morrer.
Já tinha pensado no gesto de Sherazade como o de alguém que cria para se
salvar, mas e se ela narrava para se punir? Já que a morte viria, inevitável,
narrar era adentrar na angustia e prolonga-la.
Ele: O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício.[6]
Eu:
Separada permaneço de tudo que o tempo tem de confortável. A via para estar nesse estado de exceção do corpo e
da narrativa passa por um sacrifício. E eu me penitencio para aprender o que?
A densidade do frio e do tempo, que todos os estados importam, para me apropriar de um método e de um rigor,
para me encontrar no tempo com todos os que escreveram para se machucar ou para
se salvar. Para aprender a estar presente nesse instante iluminado.
Ele:
A
distância - e, ao mesmo tempo, a proximidade – que define
a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em
nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente. [7]
Eu: O tempo presente é o motivo de todo esse
processo. Porque não é escrever sobre algo, mas escrever em algo. Então aqui
vim, por sentir uma silenciosa atração por coisas mortas. E cada livro disposto
nas estantes me parecer um túmulo, pelo qual sinto estranhas ternuras. O que
faço aqui, finjo ?
Ele: Brincando, (...) desprende-se do tempo sagrado e o “esquece” no tempo
humano.[8]
Dentro
do rio, na areia e entre flores. [9]
Eu: Me acompanha essa mulher. Quem
ela ? Há sempre essa que me atravessa ou me precede. Há sempre uma antiguidade,
uma potência arcaica. A Mãe, a História, a Primeira, a que eu deveria ser e
nunca sou.
Ele: Aquilo com que brincam as crianças é a história.
Eu:
Refaço gestos de mulheres que nunca fui. Enceno suas mortes. Mulheres que só
existiram na pintura ou na literatura. Feito criança
deslumbrada, brinco com a história? Brinco de embaralhar minha vida com outras
vidas, e enceno mortes constantes, para evitar a minha própria, já que
persistir numa existência fechada, sem atravessamentos, seria como morrer. Será que todo mundo que escreve sente esse
mesmo cansaço do eu ? Escrever para fugir de si e acabar sempre de volta a uma
escura subjetividade. Há, diferente disso, o desejo de produzir peles, escrever
para a superfície, para o que me roça, me espeta ou me faz cócegas. Escrever e
dedicar a toda pele que não minha.
Ele: O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o
tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra.[10]
Eu: Sinto que, com esse gesto de
colocar meu corpo e minha voz à disposição de narrativas que me precedem, crio distâncias e as encurto ao mesmo tempo.
Morro – junto desses corpos – para sobreviver . Empresto meu rosto, minhas
feições mais íntimas a essa alteridade que me escapa. Olho para essas mulheres
com o rosto nu e o corpo disponível. Serão dessa ordem as narrativas? Uma morte
ao contrário, nascida de um corpo que - a ela - sobreviveu.
Ele: (...) o rosto humano, que não conhece a nudez, porque sempre já está
nu. [11]
Eu: Por isso talvez a potência
das máscaras, dos semblantes. A tragédia colada às têmporas, à boca. O rosto se
protege com sua disponibilidade, sua coragem é estar sempre despido e dissimular
essa camada a menos com a constante invenção de si. O rosto se dispõe ao mundo.
Mas por que esse gesto ficcional, essa necessidade de revestir minhas narrativas
de uma camada de fabulação? Às vezes desconfio que me entrego à escrita por
inabilidade para a vida propriamente dita, a vida dos corpos, a vida das ruas,
a vida de todos os contatos. Mas intuo que a escrita possa ser esse território - como um rosto - em que se proteger não difere de se expor.
Não sei bem qual o sentido desse gesto que enceno. Morrer três vezes, por três
corpos diferentes, me salva do que?
Ele: Tudo o que agora nos aparece envilecido e de pouco valor é a fiança que
deveremos resgatar no último dia, e quem nos guia para a salvação é precisamente o companheiro que se perdeu
pelo caminho. É seu rosto que reconhecemos nos anjo que toca a trombeta ou em
quem, distraído, deixa cair das mãos o livro da vida. A réstia de luz que nasce
em nossos defeitos e nossas pequenas baixezas não era senão a redenção. [12]
Eu: A escrita é uma espécie de
Hades, território infernal. Um rio para se olhar refletido na morte.
Ele: O poeta, que deveria pagar a sua contemporaneidade com a vida, é aquele
que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera, soldar com o seu sangue
o dorso quebrado do tempo.[13]
Eu: Como uma bailarina pesada
demais, que luta contra a natureza, me debato na escritura. Escrever é sempre
lutar contra uma natureza ? Escrever é torcer-se, é morrer de sono e manter os
olhos abertos.
Ele: Fazer da fratura um lugar de um compromisso.[14]
Eu: Compromisso com o
despedaçamento, essa ética do corpo que se cria.
No
caminho para algum outro lugar.
Eu:
Agora estamos a
caminho de Valença, uma pequena cidade do interior. O que busco? Não sei.
Reconheço apenas que me impulsionam essas imagens. Vê que lindas? São
fotografias da década de 70, de quando minha mãe morava lá. Quero chegar em
Valença e sentir o espaço, colocar meu corpo nessa experiência e produzir o que
o contato com o meio me inspirar. O que fazem os homens, quando não tem
utilidade prevista o que fazem?
Ele:
Desperdiçam os seus bens, destroem suas
heranças.[15]
Eu: Engraçado
você falar de herança, porque, se parece que estou indo em busca dessa memória
família para fortalecer esse imaginário herdado, não é disso que se trata. É
muito mais um gesto de fratura: vou até lá macular o memorado na clave do
vivido.
Ele:
Somos todos devorados pela febre da
história e devemos ao menos disso nos dar conta.[16]
Eu: A febre, esse estado em que tudo fica agudo e fraco. Uma fraqueza até potente,
que abre a mente para os desencadeamentos, os delírios. A história nos traga.
Estar aqui, para ficar completamente só nesse lugar que desconheço, é efeito de
ter sido tragada pela história da minha família, da minha origem. Se o impulso
de me perder nessa investida, é ter sido tragada pela história, como fazer
dessa paixão algo potente?
Onde investir o meu olhar?
Ele:
(...) Contemporâneo é aquele que recebe o
escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpela-lo,
algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele.
Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provem
do seu tempo.[17]
Eu: Quero
olhar o escuro e molhar a minha pena nessa tinta. Engraçado não saber com o que
me munir para vir até aqui. De um grande álbum de fotos, algumas imagens me
chamaram mais atenção que outras. Trago comigo a descrição desses locais e
tenho o desejo de encontra-los, para me fotografar em lugares onde minha mãe
também se fotografou há trinta anos atrás. Estranha sensação de não saber bem o
que importa. Vou abruptamente em direção ao trabalho sem saber o que é o
trabalho, então tudo é excesso e nada é excesso, tudo é dispensável e nada é.
Ele:
Também entre as coisas aparecem
ajudantes. Todos conservamos certos objetos inúteis, metade lembrança, metade
talismã. (...) Onde vão acabar tais objetos-ajudantes, testemunhos de um éden
não-confessado ? Porventura não existe para eles um armazém, uma arca em que
sejam recolhidos para a eternidade, como acontece com a genizah em que os
hebreus conservaram os velhos livros ilegíveis, porque mesmo assim poderia
estar escrito o nome de Deus ?[18]
Eu:
Antes você falou da arte como compartimento destinado a recolher estes
significantes instáveis que não pertencem propriamente nem à sincronia nem à
diacronia, nem ao rito, nem ao jogo. O gesto artístico como este que acolhe
resíduos inapreensíveis. De Valença, busco reter mais do que posso, com medo de
perder esse mistério inacessível, talvez inexistente, que vim buscar aqui. A
sensação que me acompanha quando vou embora é a de tristeza. Uma tristeza que
me impulsiona, agora, a criar algo de potente com esses textos, essas imagens e
essas experiências.
Ele: Os ajudantes são nossos desejos
insatisfeitos, aqueles que não confessamos sequer a nós mesmos.[19]
Eu:
Trata-se mais de escrever sobre o irrealizado, o intocado, do que sobre o
vivido.
Ele:
O que o perdido exige não é ser lembrado
ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e,
unicamente por isso, como inesquecível. [20]
Eu:
Estive aqui para lembrar que nunca estive aqui.
Ele:
Isso porque do inesquecível só é possível
a paródia. O lugar do canto está vazio. Ao lado e ao redor atarefam-se os
ajudantes, que preparam o Reino.[21]
[1] Essa biblioteca é o Real Gabinete
Português de Leitura, onde realizei a performance Pedagogia da Escrita – prática nº 1. Sobre qual a me refiro nessa
primeira parte.
[2] Frase da poeta Ana Cristina
Cesar.
[3] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem
da história. Belo Horizonte: Ed.
da UFMG, 2005. p.82
[4] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
p. 31.
[5] De tudo quanto se escreve, agrada-me apenas o que alguém
escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que sangue é
espírito escreveu Nietzsche em A
Gaia Ciência.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
p. 65.
[7] AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. P.65
[8]
AGAMBEN,
Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem
da história. Belo Horizonte: Ed.
da UFMG, 2005. p.85.
[9] Cenários referentes aos das
imagens do trabalho Das Mortes Constantes,
no qual refaço imagens da História da Arte: Ofélia
de Milais, A Morte de Bara de David e
Vênus Verticordia de Rossetti.
[10]
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.61.
[11] AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.78.
[12] AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.35.
[13] AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.60.
[14] AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.71.
[15]
AGAMBEN,
Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem
da história. Belo Horizonte: Ed.
da UFMG, 2005. p.83.
[16]
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.58.
[17]
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.64
[19]
AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.35.
[20]
AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.35.
[21] AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.35.
sexta-feira, 17 de agosto de 2012
Diante da tua face escura
(roteiro para um filme preto e branco)
- O mar ao fundo, um de frente para o outro.
Ele enche a boca dela de conchas do mar, até o limite.
O corpo dela é um pouco transparente, há um sol dentro do seu peito.
Ela entrega um pequeno cavalo-marinho para ele. Quando ele fecha mão, faz um barulho agudo como de uma gaivota.
- Em uma cama
Ela está bem no centro na cama. Às vezes seu corpo vira um aglomerado de plantas, que se espalham até chão.
Ele pega o cavalo-marinho, coloca diante dos olhos dela. Depois ele o mastiga e engole. Muito barulho de gaivotas.
Ele a coloca ajoelhada no chão. Nos braços dela, entrelaçados às suas costas, está escrito: Há um segredo esquecido nas coisas.
Na barriga dele está escrito: Não há alegria no perdão.
O peito dela está todo revestido de pequenas plantas afiadas.
Ele tira, um a um, os espinhos de seu peito.
- Cena na praia
Dentro do mar, ela o afoga, com precisão e sutileza, forçando a cabeça dele dentro da água. Cada vez que a cabeça dele está imersa, toca uma música muito alta (podem ser trechos de Der Ring des Nibelugen de Wagner).
Na areia, há um pássaro morto sobre o sexo dela, ele beija e acaricia o pássaro.
Pequenos galhos saem dos olhos dela. Ela sorri por um minuto inteiro.
Ela entrega dentes de criança para ele. Ele os coloca sobre a própria língua.
Ela tenta levantar, ele a empurra pro chão, como uma dança. Toda vez que ela cai, a câmera fecha numa parte diferente do corpo dela: boca, olhos, nariz, mãos, testa e pés.
- Cena na cama
Muitos peixes sobre o lençol. Eles se se tocam.
- Cena na praia
Ele coloca pérolas falsas, de vários tamanhos, em reentrâncias do corpo dela. Ela fica deitada, equilibrando pérolas, enquanto, no horizonte, vê-se o corpo dele indo embora até sumir.
sábado, 11 de agosto de 2012
domingo, 5 de agosto de 2012
Natureza Faminta*
Priscilla
Menezes
Somente
os selvagens olhos das feras me verão. (Mário C. Rasec)
Jarina Menezes derramava o
incontido do gesto na superfície da folha e contornava o acaso com seu
bico-de-pena, que era como a navalha afiada de quem dá à luz a forma viva. Feito criança, criava castelos de areia à
beira do mar, emprestava do informe a fundação de seus elaborados edifícios.
Sujava-se de terra e água, ungia-se do orgânico para conceber seus desenhos,
descia ao mais antigo da Terra, desvelava o mais fundo do corpo. Jarina Menezes refazia o gesto do oráculo,
aquele que busca o conhecimento nas vísceras, na borra, na revelação embriagada:
fazia do caos uma gramática, do inominável uma afirmativa, do acidente uma
liturgia. Seu método ao desenhar consistia em criar manchas de maneira
impremeditada com uma aquarela muito líquida, a ecoline, contorna-las e
preenche-las com hachuras minuciosas. Quando começava cada desenho, não tinha
conhecimento acerca de sua forma final. Empenhava-se, assim, no desvendamento
de sua criação; revelando em cada um de seus desenhos mais um pouco do que
ainda não conhecia.
Penso em pelo menos dois
movimentos lampejantes presentes no ato criativo de Jarina: o da revelação e o
do milagre. O lampejo revelador se aproxima de uma ideia mística de interação
com o mistério, místico seria aquele que se coloca em um estado extremo – o da
ascese, da embriaguez, do claustro – e, a partir da experiência intensa, recebe
uma revelação advinda de algum lugar desconhecido. Penso, sobretudo, na
revelação como um gesto da pitonisa grega – a mulher oráculo que fornecia
previsões herméticas a quem as procurava. Um aparente paradoxo nelas se
apresenta: o aspecto embriagado da revelação. Se para um paradigma científico a
revelação parte de uma pesquisa neutra e despojada de subjetividade, a
revelação mística – ou poética – tem mais a ver com um flerte com a loucura,
uma dança sobre a corda bamba. Trata-se da revelação quando é magia, acrobacia,
truque. Esta imagem me atinge quando penso
nos desenhos de Jarina através da ideia que faço de sua fatura: Jarina Menezes
debruçada sobre machas, traçando durante longas horas, sem premeditar. Como não
pensar no asceta, no místico rezando um rosário até o transe, na pitonisa
balançando-se para frente e para trás até ser atingida pela palavra revelatória? Que alegria perigosa pensar nessa
revelação que não tem a ver com a certeza, nem com o justo, ou o nítido.
O lampejo miraculoso me ocorre como ocorreu à Simone Weil a
noção de graça. Todos os movimentos
naturais da alma são regidos por leis análogas às da gravidade material.
Somente a graça constitui exceção. Devemos sempre esperar que as coisas se
passem conforme a gravidade, salvo a intervenção do sobrenatural, afirmou
Weil. Só a graça transforma o aspecto determinado das coisas: se todos os corpos
tendem ao chão, por uma lei natural, a graça é que leva ao alto, ao inverso da
determinação. Também penso neste aspecto intempestivo da imagem miraculosa, que
não advém de encadeamentos causais e assombra pela sua injustificação. Há uma
lógica secreta que permeia a fisiologia dos seres desenhados por Jarina, uma
taxinomia miraculosa de corpos absurdos. O milagre, em certo sentido, é o
impossível que se deixa existir. Os desenhos de Jarina abrigam esse lampejo do
miraculoso, daquilo que irrompe sem se explicar.
O lampejo revelador passa pela ideia
da criação que atravessa o ser criador por um golpe misterioso. O milagre tem a
ver com o movimento de aparição da coisa criada, essa coisa espantada e estrangeira
no mundo que é a obra de arte. Busco
tocar nessas duas imagens para falar sobre esta natureza faminta, pois ambas se relacionam com um certo excesso ou
desvio na ordem natural das coisas. Tratam-se do inexplicável, do assombro. É
esse aspecto do natural que pressinto nos desenhos de Jarina: a natureza quando
não é pureza, economia, homeostase, mas apetite
- pulsão transformadora - paisagem de espantos, solo dos desvios. Este
território impreciso, confuso, borrado no qual o mais natural, o mais visceral,
o verdadeiro – revelador - pode ser o forjado, o artificial. Essa intimidade
fingida, esse excesso vital. Em um de seus escritos, Jarina afirmou: acho que crio para fazer catarse, mas não
dos pecados cometidos e sim dos inventados.
Não desconheço as familiaridades
possíveis de serem traçadas entre a obra de Jarina Menezes e outros artistas da
História da Arte. Quando falo de irrompimento e aparição, não estou propondo
que seu imaginário seja descontaminado de influências – Jarina apontava Joan
Miró e Hans Belmer como grandes inspirações, além de sua vida pessoal, seus
filhos, os galhos, as raízes, os animais, as mulheres e o céu do Massapê
(cidade cearense onde nasceu). A intempestividade se trata de um efeito da imagem, um artifício da forma
que se apresenta assombrosa mesmo no cerne de sua repetição. Não importa se o milagre é sagrado, se a
revelação é comprovável, importa a obra como coisa revelada, nascida,
assombrosa.
Entre flores, frutos,
brocados, esqueletos, arabescos, Jarina criava sua ecologia de artifícios, sua
natureza inquieta, que não cessa de produzir-se outra. Lidava com a certeza
medieval de que a vida é trânsito, mas, ao contrário de
um pintor de vanitas, que alerta para
o perigo da provisoriedade das coisas,
Jarina celebrava o milagre do orgânico, festejava a vocação dos corpos para o florescimento
e a dissolução. Entre vôos e desmaios, os seres que criou dançam, se habitam,
se confundem uns nos outros, se constituem de identidades mutáveis, feitas
devorações e contágios.
Além do aspecto mágico e
intempestivo presente nos desenhos da artista, há a força de uma ancestralidade
que se revela. Às vezes penso que os desenhos de Jarina podem ser tanto
miragens de um mundo lisérgico, quando mapas de uma antiguidade fundadora e
imemorial. A esta face rochosa, lítica,
telúrica da obra de Jarina relaciono a ideia da natureza como o domínio de Pã,
uma natureza pânica. Este antigo deus – metade homem, metade bode -guardião da
Arcádia vigiava seus bosques e assustava seus visitantes, causando-lhes pânico. Há um aspecto monstruoso
explícito nos desenhos de Jarina Menezes, que sempre se disse interessada em um
primitivismo da forma. Quando olhamos seus bichos-gente,
monstros-bicho, árvores-pássaro -como
ela os nomeava – nos deparamos com esse primitivo assustador, essa
natureza dos sustos que desvia da noção
de generosidade, fertilidade, adaptação, e aponta para os domínios obscuros,
misteriosos, inexplicáveis da forma orgânica.
Lacan pergunta: será
que se um pássaro pintasse não seria deixando cair suas penas, uma serpente
suas escamas, uma árvore se desfolhar e fazer chover suas folhas? Jarina
Menezes responde que todo trabalho pictórico é trabalho de superfícies, propõe
a artificialização como uma forma de integração. Seus seres rugosos são feitos
de pedra ou de fibra, mas não de sangue, de interioridade. Os seus desenhos são
superfícies atormentadas que revestem corpos instáveis. A pena, a escama e a
folha são a pintura do orgânico proposta na formulação de Lacan. As peles,
esses tecidos de vocação para a renovação, a abertura e a regeneração são o
traço do orgânico nos desenhos de Jarina.
Se Nietzsche
reivindica uma escritura feita de sangue, Jarina propõe um desenho feito de pele.
Curioso território do corpo, esse limite, essa veladura velada, essa nudez que
reveste. Ponto limítrofe que suspira e dói. Esse lugar do corpo que oferecemos,
maquiamos, perfumamos e vestimos. Seria a pele campo onde instinto e moral se
tocam, onde orgânico e artifício convivem? E ainda, talvez por isso mesmo, campo
de batalha e de deleite?
Escrevo sobre imagens e lampejos que me atingem agora quando penso nesta noção, para mim também misteriosa, de natureza faminta que premeditei nos desenho de Jarina. Quando este nome me ocorreu, pesquisei a existência de outras obras com essa mesma nomenclatura e por uma boa sorte, ou inexplicado acaso, encontrei a dupla de palavras em um verso de um lindo poema de João Cabral de Melo Neto, Estudos para uma bailadora andaluza. Reproduzo um trecho abaixo:
Todos os gestos do fogo /que então possui dir-se-ia: /gestos das folhas do fogo, /de seu cabelo, sua língua; /gestos do corpo do fogo, /de sua carne em agonia, /carne de fogo, só nervos, /carne toda em carne viva. / Então, o caráter do fogo /nela também se adivinha: /mesmo gosto dos extremos, /de natureza faminta, /gosto de chegar ao fim /do que dele se aproxima, /gosto de chegar-se ao fim, / de atingir a própria cinza. /Porém a imagem do fogo /é num ponto desmentida: /que o fogo não é capaz /como ela é, nas siguiriyas, /de arrancar-se de si mesmo / numa primeira faísca, /nessa que, quando ela quer, /vem e acende-a fibra a fibra, /que somente ela é capaz /de acender-se estando fria, /de incendiar-se com nada, / de incendiar-se sozinha.
Escrevo sobre imagens e lampejos que me atingem agora quando penso nesta noção, para mim também misteriosa, de natureza faminta que premeditei nos desenho de Jarina. Quando este nome me ocorreu, pesquisei a existência de outras obras com essa mesma nomenclatura e por uma boa sorte, ou inexplicado acaso, encontrei a dupla de palavras em um verso de um lindo poema de João Cabral de Melo Neto, Estudos para uma bailadora andaluza. Reproduzo um trecho abaixo:
Todos os gestos do fogo /que então possui dir-se-ia: /gestos das folhas do fogo, /de seu cabelo, sua língua; /gestos do corpo do fogo, /de sua carne em agonia, /carne de fogo, só nervos, /carne toda em carne viva. / Então, o caráter do fogo /nela também se adivinha: /mesmo gosto dos extremos, /de natureza faminta, /gosto de chegar ao fim /do que dele se aproxima, /gosto de chegar-se ao fim, / de atingir a própria cinza. /Porém a imagem do fogo /é num ponto desmentida: /que o fogo não é capaz /como ela é, nas siguiriyas, /de arrancar-se de si mesmo / numa primeira faísca, /nessa que, quando ela quer, /vem e acende-a fibra a fibra, /que somente ela é capaz /de acender-se estando fria, /de incendiar-se com nada, / de incendiar-se sozinha.
Penso
que a forma de Jarina Menezes também dança, aparece – lampejo –e promete
profundidades, feito pele, revelando-se prolixa, barroca, guardando-se
misteriosa, inacessível. Guarda a vocação
de produzir esse conjunto de imagens-faísca, inventora de uma natureza faminta
da forma, de apetites inquietos e renovados, de generosidades e privações, de eloquência
e profundo mistério.
Bibliografia consultada:
WEIL, Simone. A Gravidade e a Graça. SP: Martins Fontes, 1993.
LACAN, Jacques. Escritos. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra.Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
NETO, João Cabral de Melo. Estudos para uma bailadora andaluza in Quaderna, 1960.
*texto publicado no Catálogo Memorial Meyer Filho 2011. Organizado por Kamilla Nunes e publicado através do Instituto Meyer Filho no ano de 2012.
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