sábado, 1 de dezembro de 2012







Eu te confronto, as pernas onde deveria estar a cabeça, o coração batendo forte, formigando feito um pé cansado. Meu corpo correndo solto pela casa, tua voz galopante me pedindo quietude, me pedindo ajuda. Dias de sono partilhado: teus cansaços embalando meu sonho, minha fome pedindo teus olhos. Herdei de ti os olhos ansiosos, os dentes afiados, as mãos cortantes. Tu abrindo os tecidos, as peles, desvendando existências. Eu manuseando superfícies, roçando meu fôlego contra folhas, catalogando tatos.

Estamos, eu e tu, sob um sol pleno e vertical. Em volta, o dia quente, o chão seco de areia extensa. Sentamos uma de costas para a outra. Nossas respirações dançam, és sombra para mim. Tu, alívio para minha pele. 

Estamos em uma calçada, a casinha de bonecas que ganhei de ti vai embora rua abaixo como um monumento errante. Dou adeus a algo  que não sei o que é. Seguro tua mão. Inspiro longamente e inauguro uma nostalgia, o dia está repleto de promessas. Tu, solidez da minha tontura.

Andamos por corredores extensos, minha cabeça se ampara em teus quadris, dissolvo, escorro. Teus braços me mantém inteira. Tu, água calma onde ensaio tormentas. 

É porque tenho o dia todo para mim que abro gavetas, investigo armários. Tardes entre roupas, sendo coisa entre as coisas. Descobri uma vertigem nas gavetas: um espelho apontando para o teto, entre as minhas mãos, rente à minha barriga. Ando olhando para o teto refletido, faço dele um chão fantástico: tropeço, esbarro. Passo o dia deslizando pelo teto e tu não sabes. Teu corpo ausente, lugar da criação do meu.

Porque tua voz é o início do mundo que eu conheço, eu gestaria o som da tua fala, como tu gestaste o que eu sou. Engendraria um timbre teu, pra ver nascer de mim essa sonoridade primeira. Nossas vozes entrelaçadas, se estranhando. Tua voz me apresentando ao mundo e o mundo se despindo em mim: esse, o céu; esse, um sorriso de amor; essa, uma tristeza silente; esse, o mar; essa, tu.  

Como eu te dava as mãos, para te ver arrumar minhas unhas, cuidar do meu corpo inquieto, do meu cabelo agreste. Porque teus vigilantes olhos me alertavam quando ia mais fundo que devia - no mar, pelas ruas, pelos dias nebulosos. E também porque danças sem que ninguém saiba, teu corpo quieto, de discreta bailarina, é que danço pelo mundo. Porque de ti herdei o fôlego, a coragem, o grande aprendizado de estar só, a alegria no ameno, a infinita tarefa de dar à luz todos os dias aquilo que um dia se gestou. 

Um comentário:

  1. Emociona... de fato...
    lindo...
    Se eu fosse ela, me mudava pra perto de você!haha
    Lindo texto...

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