domingo, 5 de agosto de 2012




Natureza Faminta*

Priscilla Menezes


Somente os selvagens olhos das feras me verão. (Mário C. Rasec)


Jarina Menezes derramava o incontido do gesto na superfície da folha e contornava o acaso com seu bico-de-pena, que era como a navalha afiada de quem dá à luz a forma viva.  Feito criança, criava castelos de areia à beira do mar, emprestava do informe a fundação de seus elaborados edifícios. Sujava-se de terra e água, ungia-se do orgânico para conceber seus desenhos, descia ao mais antigo da Terra, desvelava o mais fundo do corpo.  Jarina Menezes refazia o gesto do oráculo, aquele que busca o conhecimento nas vísceras, na borra, na revelação embriagada: fazia do caos uma gramática, do inominável uma afirmativa, do acidente uma liturgia. Seu método ao desenhar consistia em criar manchas de maneira impremeditada com uma aquarela muito líquida, a ecoline, contorna-las e preenche-las com hachuras minuciosas. Quando começava cada desenho, não tinha conhecimento acerca de sua forma final. Empenhava-se, assim, no desvendamento de sua criação; revelando em cada um de seus desenhos mais um pouco do que ainda não conhecia.
Penso em pelo menos dois movimentos lampejantes presentes no ato criativo de Jarina: o da revelação e o do milagre. O lampejo revelador se aproxima de uma ideia mística de interação com o mistério, místico seria aquele que se coloca em um estado extremo – o da ascese, da embriaguez, do claustro – e, a partir da experiência intensa, recebe uma revelação advinda de algum lugar desconhecido. Penso, sobretudo, na revelação como um gesto da pitonisa grega – a mulher oráculo que fornecia previsões herméticas a quem as procurava. Um aparente paradoxo nelas se apresenta: o aspecto embriagado da revelação. Se para um paradigma científico a revelação parte de uma pesquisa neutra e despojada de subjetividade, a revelação mística – ou poética – tem mais a ver com um flerte com a loucura, uma dança sobre a corda bamba. Trata-se da revelação quando é magia, acrobacia, truque.  Esta imagem me atinge quando penso nos desenhos de Jarina através da ideia que faço de sua fatura: Jarina Menezes debruçada sobre machas, traçando durante longas horas, sem premeditar. Como não pensar no asceta, no místico rezando um rosário até o transe, na pitonisa balançando-se para frente e para trás até ser atingida pela palavra revelatória? Que alegria perigosa pensar nessa revelação que não tem a ver com a certeza, nem com o justo, ou o nítido.
O lampejo miraculoso me ocorre como ocorreu à Simone Weil a noção de graça. Todos os movimentos naturais da alma são regidos por leis análogas às da gravidade material. Somente a graça constitui exceção. Devemos sempre esperar que as coisas se passem conforme a gravidade, salvo a intervenção do sobrenatural, afirmou Weil. Só a graça transforma o aspecto determinado das coisas: se todos os corpos tendem ao chão, por uma lei natural, a graça é que leva ao alto, ao inverso da determinação. Também penso neste aspecto intempestivo da imagem miraculosa, que não advém de encadeamentos causais e assombra pela sua injustificação. Há uma lógica secreta que permeia a fisiologia dos seres desenhados por Jarina, uma taxinomia miraculosa de corpos absurdos. O milagre, em certo sentido, é o impossível que se deixa existir. Os desenhos de Jarina abrigam esse lampejo do miraculoso, daquilo que irrompe sem se explicar.
            O lampejo revelador passa pela ideia da criação que atravessa o ser criador por um golpe misterioso. O milagre tem a ver com o movimento de aparição da coisa criada, essa coisa espantada e estrangeira no mundo que é a obra de arte.  Busco tocar nessas duas imagens para falar sobre esta natureza faminta, pois ambas se relacionam com um certo excesso ou desvio na ordem natural das coisas. Tratam-se do inexplicável, do assombro. É esse aspecto do natural que pressinto nos desenhos de Jarina: a natureza quando não é pureza, economia, homeostase, mas apetite - pulsão transformadora - paisagem de espantos, solo dos desvios. Este território impreciso, confuso, borrado no qual o mais natural, o mais visceral, o verdadeiro – revelador - pode ser o forjado, o artificial. Essa intimidade fingida, esse excesso vital. Em um de seus escritos, Jarina afirmou: acho que crio para fazer catarse, mas não dos pecados cometidos e sim dos inventados.
            Não desconheço as familiaridades possíveis de serem traçadas entre a obra de Jarina Menezes e outros artistas da História da Arte. Quando falo de irrompimento e aparição, não estou propondo que seu imaginário seja descontaminado de influências – Jarina apontava Joan Miró e Hans Belmer como grandes inspirações, além de sua vida pessoal, seus filhos, os galhos, as raízes, os animais, as mulheres e o céu do Massapê (cidade cearense onde nasceu). A intempestividade se trata de um efeito da imagem, um artifício da forma que se apresenta assombrosa mesmo no cerne de sua repetição.  Não importa se o milagre é sagrado, se a revelação é comprovável, importa a obra como coisa revelada, nascida, assombrosa.
            Entre flores, frutos, brocados, esqueletos, arabescos, Jarina criava sua ecologia de artifícios, sua natureza inquieta, que não cessa de produzir-se outra. Lidava com a certeza medieval de que  a vida é trânsito, mas, ao contrário de um pintor de vanitas, que alerta para o perigo da provisoriedade  das coisas, Jarina celebrava o milagre do orgânico, festejava a vocação dos corpos para o florescimento e a dissolução. Entre vôos e desmaios, os seres que criou dançam, se habitam, se confundem uns nos outros, se constituem de identidades mutáveis, feitas devorações e contágios.
Além do aspecto mágico e intempestivo presente nos desenhos da artista, há a força de uma ancestralidade que se revela. Às vezes penso que os desenhos de Jarina podem ser tanto miragens de um mundo lisérgico, quando mapas de uma antiguidade fundadora e imemorial.  A esta face rochosa, lítica, telúrica da obra de Jarina relaciono a ideia da natureza como o domínio de Pã, uma natureza pânica. Este antigo deus – metade homem, metade bode -guardião da Arcádia vigiava seus bosques e assustava seus visitantes, causando-lhes pânico. Há um aspecto monstruoso explícito nos desenhos de Jarina Menezes, que sempre se disse interessada em um primitivismo da forma.  Quando olhamos seus bichos-gente, monstros-bicho, árvores-pássaro -como ela os nomeava – nos deparamos com esse primitivo assustador, essa natureza  dos sustos que desvia da noção de generosidade, fertilidade, adaptação, e aponta para os domínios obscuros, misteriosos, inexplicáveis da forma orgânica.  
Lacan pergunta: será que se um pássaro pintasse não seria deixando cair suas penas, uma serpente suas escamas, uma árvore se desfolhar e fazer chover suas folhas? Jarina Menezes responde que todo trabalho pictórico é trabalho de superfícies, propõe a artificialização como uma forma de integração. Seus seres rugosos são feitos de pedra ou de fibra, mas não de sangue, de interioridade. Os seus desenhos são superfícies atormentadas que revestem corpos instáveis. A pena, a escama e a folha são a pintura do orgânico proposta na formulação de Lacan. As peles, esses tecidos de vocação para a renovação, a abertura e a regeneração são o traço do orgânico nos desenhos de Jarina.
 Se Nietzsche reivindica uma escritura feita de sangue, Jarina propõe um desenho feito de pele. Curioso território do corpo, esse limite, essa veladura velada, essa nudez que reveste. Ponto limítrofe que suspira e dói. Esse lugar do corpo que oferecemos, maquiamos, perfumamos e vestimos. Seria a pele campo onde instinto e moral se tocam, onde orgânico e artifício convivem? E ainda, talvez por isso mesmo, campo de batalha e de deleite?
Escrevo sobre imagens e lampejos que me atingem agora quando penso nesta noção, para mim também misteriosa, de natureza faminta que premeditei nos desenho de Jarina. Quando este nome me ocorreu, pesquisei a existência de outras obras com essa mesma nomenclatura e por uma boa sorte, ou inexplicado acaso, encontrei a dupla de palavras em um verso de um lindo poema de João Cabral de Melo Neto, Estudos para uma bailadora andaluza. Reproduzo um trecho abaixo:


Todos os gestos do fogo /que então possui dir-se-ia: /gestos das folhas do fogo, /de seu cabelo, sua língua; /gestos do corpo do fogo, /de sua carne em agonia, /carne de fogo, só nervos, /carne toda em carne viva. / Então, o caráter do fogo /nela também se adivinha: /mesmo gosto dos extremos, /de natureza faminta, /gosto de chegar ao fim /do que dele se aproxima, /gosto de chegar-se ao fim, / de atingir a própria cinza. /Porém a imagem do fogo /é num ponto desmentida: /que o fogo não é capaz /como ela é, nas siguiriyas, /de arrancar-se de si mesmo / numa primeira faísca, /nessa que, quando ela quer, /vem e acende-a fibra a fibra, /que somente ela é capaz /de acender-se estando fria, /de incendiar-se com nada, / de incendiar-se sozinha.


Penso que a forma de Jarina Menezes também dança, aparece – lampejo –e promete profundidades, feito pele, revelando-se prolixa, barroca, guardando-se misteriosa, inacessível.  Guarda a vocação de produzir esse conjunto de imagens-faísca, inventora de uma natureza faminta da forma, de apetites inquietos e renovados, de generosidades e privações, de eloquência e profundo mistério.



Bibliografia consultada:


 WEIL, Simone. A Gravidade e a Graça. SP: Martins Fontes, 1993. 

 LACAN, Jacques. Escritos. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra.Petrópolis: Editora Vozes, 2011. 

NETO, João Cabral de Melo. Estudos para uma bailadora andaluza in Quaderna, 1960.



*texto publicado no Catálogo Memorial Meyer Filho 2011. Organizado por Kamilla Nunes e publicado através do Instituto Meyer Filho no ano de 2012.

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