sábado, 15 de setembro de 2012



Diálogo 


Em uma biblioteca, estamos um de frente para o outro.[1]

Eu: Eu preciso desviar dessa mulher que me atravessa. Quem sou, nessa hora pálida, rodeada  pelo peso de um tempo antigo, procurando descrever o instante no momento  pleno de seu nascimento? É que as estratégias para me esvaziar são simples e me matam, faço um voto de silêncio, um voto de sede, um voto de jejum. Quero fazer surgir essa sobra: enquanto meu corpo não come, não fala, não bebe, o que pensa pelas mãos? Passar o dia na experiência de sentir o dia passar. Passar o dia me narrando o próprio dia.[2] Passar o dia sem saber como passa o dia. Jogar com o tempo, com as possibilidades do meu corpo e as possibilidades da escrita. Estou nessa biblioteca faz muito tempo e aqui ficarei por oito horas, o horário de um expediente de trabalho ou de uma boa noite de sono. Não farei nada além de olhar e escrever. Não sei como o tempo passa.

Ele: Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma mudança e uma aceleração do tempo. “Em meio aos passatempos contínuos e divertimentos vários, as horas, os dias, as semanas, passavam num lampejo.[3]

Eu: Vim por um deslumbre simples, as lombadas dos livros antigos empilhadas, pontos dourados nos letreiros, formando uma constelação de pequenos sóis sobre um fundo geométrico. A claraboia-rosácea , de onde pende um lustre pesado e antigo, feito um astrolábio de gigantes.  Desejo de tocar as lombadas dos livros intocáveis, como um amante cuidadoso  que acaricia a amada enquanto sonha em arrancar-lhe um grito de temor. Com esta dupla paixão, violaria estes livros antigos, já meio devorados por outros apetites. Quem me acompanha ?

Ele: Os ajudantes . Alguém – não se sabe direito quem – os confiou para nós, e não é fácil livrar-se deles . Em suma, “não sabemos quem são”; talvez sejam  “enviados” do inimigo (o que explicaria por que insistem em ficar à espreita e espiar). Mesmo assim, assemelham-se a anjos, a mensageiros que desconhecem o conteúdo das cartas que devem entregar, mas cujo sorriso, cujo olhar e cujo modo de caminhar parecem uma mensagem. Metade gênios celestes, metade demônios. [4]

Eu: Nessa solidão, quando não me integro a nenhum fluxo de tempo compartilhado, quem são meus ajudantes? As camadas de um tempo que aqui se inscrevem, a inspiração soprada por um ser luminoso ou diabólico, que me faz permanecer aqui e escrever. Sinto que estar aqui é cumprir uma espécie de flagelo.  Ideia instigante, quase perigosa, essa – da escrita como penitência. A escritura é sempre associada à formação de um espírito crítico, à auto-libertação. E quando escrever é se testar? É botar tudo à prova, em estado de estremecimento? Escrever com o sangue[5] até sentir-se sem sangue. Narrar com o desespero de Sherazade, para não morrer. Já tinha pensado no gesto de Sherazade como o de alguém que cria para se salvar, mas e se ela narrava para se punir? Já que a morte viria, inevitável, narrar era adentrar na angustia e prolonga-la.

Ele: O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício.[6]

Eu:  Separada permaneço de tudo que o tempo tem de confortável. A via para estar nesse estado de exceção do corpo e da narrativa passa por um sacrifício. E eu me penitencio para aprender o que? A densidade do frio e do tempo, que todos os estados importam,  para me apropriar de um método e de um rigor, para me encontrar no tempo com todos os que escreveram para se machucar ou para se salvar. Para aprender a estar presente nesse instante iluminado.

Ele: A distância  -  e, ao mesmo tempo, a proximidade – que define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente. [7]

Eu:  O tempo presente é o motivo de todo esse processo. Porque não é escrever sobre algo, mas escrever em algo. Então aqui vim, por sentir uma silenciosa atração por coisas mortas. E cada livro disposto nas estantes me parecer um túmulo, pelo qual sinto estranhas ternuras. O que faço aqui, finjo ?

Ele: Brincando, (...) desprende-se do tempo sagrado e o “esquece” no tempo humano.[8]


Dentro do rio, na areia e entre flores. [9]

Eu: Me acompanha essa mulher. Quem ela ? Há sempre essa que me atravessa ou me precede. Há sempre uma antiguidade, uma potência arcaica. A Mãe, a História, a Primeira, a que eu deveria ser e nunca sou. 

Ele: Aquilo com que brincam as crianças é a história.

Eu: Refaço gestos de mulheres que nunca fui. Enceno suas mortes. Mulheres que só existiram na pintura ou na literatura. Feito criança deslumbrada, brinco com a história? Brinco de embaralhar minha vida com outras vidas, e enceno mortes constantes, para evitar a minha própria, já que persistir numa existência fechada, sem atravessamentos, seria como morrer.  Será que todo mundo que escreve sente esse mesmo cansaço do eu ? Escrever para fugir de si e acabar sempre de volta a uma escura subjetividade. Há, diferente disso, o desejo de produzir peles, escrever para a superfície, para o que me roça, me espeta ou me faz cócegas. Escrever e dedicar a toda pele que não minha.

Ele: O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra.[10]

Eu: Sinto que, com esse gesto de colocar meu corpo e minha voz à disposição de narrativas que me precedem,  crio distâncias e as encurto ao mesmo tempo. Morro – junto desses corpos – para sobreviver . Empresto meu rosto, minhas feições mais íntimas a essa alteridade que me escapa. Olho para essas mulheres com o rosto nu e o corpo disponível. Serão dessa ordem as narrativas? Uma morte ao contrário, nascida de um corpo que - a ela - sobreviveu.

Ele: (...) o rosto humano, que não conhece a nudez, porque sempre já está nu. [11]

Eu: Por isso talvez a potência das máscaras, dos semblantes. A tragédia colada às têmporas, à boca. O rosto se protege com sua disponibilidade, sua coragem é estar sempre despido e dissimular essa camada a menos com a constante invenção de si. O rosto se dispõe ao mundo. Mas por que esse gesto ficcional, essa necessidade de revestir minhas narrativas de uma camada de fabulação? Às vezes desconfio que me entrego à escrita por inabilidade para a vida propriamente dita, a vida dos corpos, a vida das ruas, a vida de todos os contatos. Mas intuo que a escrita possa ser esse  território - como um rosto -  em que se proteger não difere de se expor. Não sei bem qual o sentido desse gesto que enceno. Morrer três vezes, por três corpos diferentes, me salva do que?

Ele: Tudo o que agora nos aparece envilecido e de pouco valor é a fiança que deveremos resgatar no último dia, e quem nos guia para a salvação  é precisamente o companheiro que se perdeu pelo caminho. É seu rosto que reconhecemos nos anjo que toca a trombeta ou em quem, distraído, deixa cair das mãos o livro da vida. A réstia de luz que nasce em nossos defeitos e nossas pequenas baixezas não era senão a redenção. [12]

Eu: A escrita é uma espécie de Hades, território infernal. Um rio para se olhar refletido na morte.

Ele: O poeta, que deveria pagar a sua contemporaneidade com a vida, é aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera, soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo.[13]

Eu: Como uma bailarina pesada demais, que luta contra a natureza, me debato na escritura. Escrever é sempre lutar contra uma natureza ? Escrever é torcer-se, é morrer de sono e manter os olhos abertos.

Ele: Fazer da fratura um lugar de um compromisso.[14]

Eu: Compromisso com o despedaçamento, essa ética do corpo que se cria.


No caminho para algum outro lugar.

Eu: Agora estamos a caminho de Valença, uma pequena cidade do interior. O que busco? Não sei. Reconheço apenas que me impulsionam essas imagens. Vê que lindas? São fotografias da década de 70, de quando minha mãe morava lá. Quero chegar em Valença e sentir o espaço, colocar meu corpo nessa experiência e produzir o que o contato com o meio me inspirar. O que fazem os homens, quando não tem utilidade prevista o que fazem?

Ele: Desperdiçam os seus bens, destroem suas heranças.[15]

Eu: Engraçado você falar de herança, porque, se parece que estou indo em busca dessa memória família para fortalecer esse imaginário herdado, não é disso que se trata. É muito mais um gesto de fratura: vou até lá macular o memorado na clave do vivido.

Ele: Somos todos devorados pela febre da história e devemos ao menos disso nos dar conta.[16]  

Eu: A febre, esse estado em que tudo fica agudo e fraco. Uma fraqueza até potente, que abre a mente para os desencadeamentos, os delírios. A história nos traga. Estar aqui, para ficar completamente só nesse lugar que desconheço, é efeito de ter sido tragada pela história da minha família, da minha origem. Se o impulso de me perder nessa investida, é ter sido tragada pela história, como fazer dessa paixão algo potente? Onde investir o meu olhar?

Ele: (...) Contemporâneo é aquele que recebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpela-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provem do seu tempo.[17]

Eu: Quero olhar o escuro e molhar a minha pena nessa tinta. Engraçado não saber com o que me munir para vir até aqui. De um grande álbum de fotos, algumas imagens me chamaram mais atenção que outras. Trago comigo a descrição desses locais e tenho o desejo de encontra-los, para me fotografar em lugares onde minha mãe também se fotografou há trinta anos atrás. Estranha sensação de não saber bem o que importa. Vou abruptamente em direção ao trabalho sem saber o que é o trabalho, então tudo é excesso e nada é excesso, tudo é dispensável e nada é.

Ele: Também entre as coisas aparecem ajudantes. Todos conservamos certos objetos inúteis, metade lembrança, metade talismã. (...) Onde vão acabar tais objetos-ajudantes, testemunhos de um éden não-confessado ? Porventura não existe para eles um armazém, uma arca em que sejam recolhidos para a eternidade, como acontece com a genizah em que os hebreus conservaram os velhos livros ilegíveis, porque mesmo assim poderia estar escrito o nome de Deus ?[18]

Eu: Antes você falou da arte como compartimento destinado a recolher estes significantes instáveis que não pertencem propriamente nem à sincronia nem à diacronia, nem ao rito, nem ao jogo. O gesto artístico como este que acolhe resíduos inapreensíveis. De Valença, busco reter mais do que posso, com medo de perder esse mistério inacessível, talvez inexistente, que vim buscar aqui. A sensação que me acompanha quando vou embora é a de tristeza. Uma tristeza que me impulsiona, agora, a criar algo de potente com esses textos, essas imagens e essas experiências.

Ele: Os ajudantes são nossos desejos insatisfeitos, aqueles que não confessamos sequer a nós mesmos.[19]

Eu: Trata-se mais de escrever sobre o irrealizado, o intocado, do que sobre o vivido.

Ele: O que o perdido exige não é ser lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e, unicamente por isso, como inesquecível. [20]

Eu: Estive aqui para lembrar que nunca estive aqui.

Ele: Isso porque do inesquecível só é possível a paródia. O lugar do canto está vazio. Ao lado e ao redor atarefam-se os ajudantes, que preparam o Reino.[21]




[1] Essa biblioteca é o Real Gabinete Português de Leitura, onde realizei a performance Pedagogia da Escrita – prática nº 1. Sobre qual a me refiro nessa primeira parte.
[2] Frase da poeta Ana Cristina Cesar.
[3] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005. p.82
[4] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 31.
[5] De tudo quanto se escreve, agrada-me apenas o que alguém escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que sangue é espírito escreveu Nietzsche em A Gaia Ciência.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 65.
[7] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. P.65
[8] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005. p.85.
[9] Cenários referentes aos das imagens do trabalho Das Mortes Constantes, no qual refaço imagens da História da Arte: Ofélia de Milais, A Morte de Bara de David e Vênus Verticordia de Rossetti.
[10] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.61.
[11] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.78.
[12] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.35.
[13] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.60.
[14] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.71.
[15] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005. p.83.
[16] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.58.
[17] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.64
 [18] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.33.
[19] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.35.
[20] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.35.
[21] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.  p.35.

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