quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Interessa-me pensar a matéria biográfica como fábula. Esquize confessional. Gênese de si mesmo, e o si mesmo como ficção. Imaginar uma vida, vivê-la. Abandonar a subjetividade como estrutura e pensar uma subjetividade fraturada, estatelada, transtornada pelo acaso. Buscar em mim, na minha incontornável imanência, uma transcendência inventada, rápida, provisória. Auto-assombro, auto-desconhecimento, íntima inquietação, fratura exposta. Não quero falar de mim, quero me inventar na minha fala. Confissão como dispositivo de fabulação. A profunda verdade do absurdo. Como se a redenção fosse a invenção da mácula. E a mácula me interessa, como o ato torto, desvairado que é. Confessar o impensável, para cometê-lo. Propor-me a estados de desproteção. Investigar-me a partir de ações para as quais me sinta despreparada e desprevenida. A imagem e o relato como espólio, resto desejado de um combate indizível, porque vão. É preciso exercitar a rebelião. Recusar-se a ficar preso a regras. Recusar o próprio sucesso. Recusar-se a se repetir. Criar a minha catástrofe. Estetizar a vertigem, amar o inevitável, transformar o imprevisto em destino querido. Exercer a vontade retroativamente, transfigurar todo assim foi em assim quis que fosse. Resignação desejante. Nietzsche disse que só acreditaria em um Deus que soubesse dançar. Eu só acredito em um ato criador que seja dança à beira do abismo, acrobacia dançante que é ao mesmo tempo risco e salvação. Meu fantasma. Formigamento. Teus olhos. Dor pequena. Cair, para perder o medo da queda. Inventar intimidade com a queda, para perder o medo da queda. Inventar a queda, para deixar de morrer caindo. Desejo de me exceder. Atração pela paisagem, paixão pelo fora. Os Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito desta frase: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

As operações ficcionais a que me proponho se dão como montagens entre o improvável e o plausível; lampejam como acontecimentos cuja ordenação se dá interna a eles mesmos. Acontecimentos quem possuem potência para além da verificação de suas verdades factuais, pois constroem um campo de veracidades próprias. Chegar a esta vontade que nos faz o acontecimento, tornar-se a quase-causa do que se produz em nós, produzir as superfícies e as dobras em que o acontecimento se reflete. Penso que todo acontecimento guarda em si um sentido de efetuação concomitante a um sentido de contra-efetuação. A efetuação seria o acontecimento encadeado a uma noção cronológica da narratividade, amarrada por sentidos de causalidade. Já o sentido de contra-efetuação seria da ordem do irrompimento, no qual o presente do acontecimento é sempre seu próprio passado e seu futuro e sua causa não tem fundamento para além de afirmação de si. Penso na guerra travada contra a casualidade como motor produtor de acontecimento. Não a repetição do sintoma subjetivante, mas a batalha contra o sintoma do eu. Perverter causalidades. Não dar explicações. Afirmar o absurdo. Realizar o absurdo. Não revelar o truque. Revelar que não existe truque algum. Suspender temporalidades. Fingir o combate e, assim, combater.

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