segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Mundus Muliebris

(inspirado no trabalho Formas de Brincar do ERRO Grupo)

Três mulheres se oferecem, armadilha, desacato. O nome sugere um jogo - prosaico ritual, maquiagem, desperdício. Três mulheres demonstram seus talentos absurdos, suas inúteis vocações. Assim, causam desespero, porque não se sabe a que servem as mulheres quando só servem a elas mesmas. Vazio virado em si, falta transbordante. Amedrontam, provocam desvios, atraem, causam desejo, desejam. Corpos pedintes que se inventam em suas imprevistas solicitações. Elas rabiscam os corpos umas das outras, se mascaram, vestem roupas pós-cirúrgicas. Brincam, brigam, exigem. Que operação terão realizado sobre os próprios corpos? A mesa de jogos, elas. Mulheres-tabuleiro cujas regras não se pode conhecer. Elas pertencem a uma antiga linhagem, Sherazade criando mil e uma fábulas para se manter viva, Judith seduzindo para praticar um noturno crime, Salomé dançando para tudo merecer. Essas mulheres encenam uma potência feminina de urdir a teia-ficção-arapuca, nem femininas - no senso comum -, nem feministas - no senso comum -, antes jogo, máquina e emplume. Baudelaire escreveu o Elogio da Maquiagem e afirmou ser o artifício a única possibilidade de beleza, referindo-se a uma beleza demoníaca, maldita e profunda - a beleza quando é arte. Plínio, um enciclopedista romano, conta que Zêuxis, mitológico pintor grego, desejava pintar uma Vênus, mas não conseguia encontrar modelo à altura de sua intenção, portanto, resolveu convocar as cinco mulheres mais bonitas da corte de Creonte para que todas elas juntas, e juntamente recortadas, posassem para a pintura do que seria a Vênus ideal. O que Plínio nos conta é que a beleza já nasceu mutilada, recortada, ferida, artificial. Artifício que, recalcado pelo platonismo grego, irrompe no procedimento do artista-cirurgião. Os corpos dessas três mulheres em cena se dão como o roubo do pincel da mão do homem-artífice-platônico pelas próprias Vênus que, então, se autorizam a um auto-enxerto, auto-cirurgia, auto-invenção. Esses corpos-vênus desejantes se montam a si mesmos num ideal acéfalo, feito de potência e pulsão, escapando assim da posição da mulher-em-Falta, da histérica limitada ao divã do ser-da-razão. Aproximam-se, antes, de um feminino obscuro, aracnídeo, da vocação de perturbar a polidez e a economia do mundo. Baudelaire escreveu que a mulher “é uma espécie de ídolo, estúpido talvez, mas deslumbrante, enfeitiçador, que mantém os destinos e as vontades suspensas a seus olhares”. Graciosamente estúpidas, porque recusam o saber estéril, cartesiano, simples e positivo de qualquer forma de diplomacia. Artifício intempestivo, maquinaria acidental. Lembro de um trabalho do Walter de Maria, o Lightning Field. Nele, o artista ocupa uma planície semidesértica do Novo México com quatrocentas estacas de sete metros de altura, colocadas numa matriz geométrica rigorosa. Sendo esta zona frequentemente assolada por tempestades, as estacas metálicas passam a funcionar como pára-raios. Os raios manipulados pelo artista parecem ser da mesma ordem destes corpos que, inexplicavelmente, irrompem nas ruas da cidade. Caos premeditado, desmedido calculado, delírio ensaiado.

Baudelaire escreveu sobre as cortesãs como temática da pintura moderna, mais desconcertantes que as próprias cortesãs, por se tratarem de pura imagem, pura inapreensão.

“ Aqui majestosa, lá delicada: ora esbelta, frazina até, ora ciclópica: uma elegância provocante e bárbara . Caminha, desliza, dança e rodopia com seu peso as crinolinas bordadas que lhe servem ao mesmo tempo de pedestal e contrapeso. Representa perfeitamente a selvageria na civilização. (...) Às vezes assumem sem querer poses de uma audácia e nobreza que fascinariam o estatuário mais delicado, se este tivesse a coragem e o espírito de colher a nobreza em toda parte, mesmo na lama.”

Os corpos das performers de Formas de Brincar me afetam, porque jogam na tensão entre a obscena doação e a desoladora impermanência. A excessiva majestosidade do que se esvai. Mundus Muliebris é um termo latino que designa o mundo da ornamentação feminina, um cosmos excessivo, assemântico, agramatical . Explosão sem desígnio, pura imagem dançarina. O contrário de uma Medusa rancorosa, pedrificada e pretificante, elas são Eurídice se divertindo no Hades. Lampejos desconcertantes que me engolem por inteiro e depois somem na noite escura de um dia em sua normalidade.

Um comentário:

  1. Oi, Priscilla!
    Vamos conversar?
    Gostei muito do seu texto inspirado no Formas de Brincar.
    Trabalhamos com o conceito de objetificação do corpo para reler o jogo das Cinco Marias. Existem semelhanças com partes do seu texto e muito do que conversamos em grupo durante o processo de criação do trabalho.
    Muito obrigado pelas palavras,
    Pedro Bennaton
    ERRO Grupo

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