segunda-feira, 15 de junho de 2015






a chuva fina  afunda a terra e eu
pés fincados sobre chão incerto
ouço o céu ranger  
que alegria perigosa
não querer nenhum toldo
nenhuma enxuta proteção
teu corpo de milagres úmidos, sim
assim eu estaria salva: numa quina do teu quarto
nossos pensamentos entrelaçados como ataduras claras
tapando ferida ainda fresca
é aqui nesse ponto que perdes tua arbórea ascendência
e ganhas a consciência dos bichos que não sabem
esse esquecimento será doravante tua origem
aqui crias parentesco com os nós
a terra escura, o mármore, os novilhos
eu te transmito esse dom:
eis que não serás remédio para nada em mim
vagarás pelo meu corpo, supérfluo
orientado pela tua própria errância
apenas quando souberes ser insuficiente
poderás transitar em liberdade
o que quer dizer falhando
e tua caminhada te levará ao desencontro
justo nesse ponto em que nos achamos
tua mão toca o mais fundo do meu peito raso
e eu reajo como se esperasse uma flecha
acertar a maçã equilibrada sobre a minha cabeça
e, com gula plena de um corpo alimentado,  
mordo tua pele
arranho tua pele agora órfã
e escapo no instante em que me entrego
feito bicho que morde a isca e se salva
um segundo antes da armadilha desabar
em mim, tu amas a terra, os solos férteis e os incêndios
tens amor pelo vidro, as prateleiras, os tapetes
amas também o meu corpo
e amando meu corpo sabes amar
alegremente a transitoriedade desse instante
agora
pesado e flutuante como o navio e também
traiçoeiro como o mar
subitamente, nasces
consanguíneo a tudo que ignoras
e eu juntamente
no repouso provisório do teu peito
trincheira e escudo
improvável berço meu    

terça-feira, 5 de maio de 2015

O corpo mole do cosmos


Mas dizei-me, irmãos, 
que pode fazer a criança que nem o leão pode fazer?
(Assim Falava Zarastustra, Nietzsche)

A infância comparece na pintura de Marcela Cantuária menos como um tema e mais como uma materialidade inquietante. Corpos infantis são figurados em situações insólitas que não incitam à narrativa, ao encadeamento causal ou à qualquer simbologia decifrável, sendo antes figurações do próprio mistério da presença. Na pintura de Marcela recorrem corpos infantis que performam gestos herméticos, banais ou misteriosos; mas sempre carregados de um teor de estranheza, no limiar entre o doméstico e o onírico, o provável e o possível, o próprio e o impróprio.                
             
Hannah Arendt, no seu texto A Condição Humana, apontou a infância como o campo dos  nascimentos e, portanto, como aquilo que salvaguarda a renovação do mundo e a descontinuidade do tempo. Para a filósofa, um nascimento é sempre o aparecimento de uma novidade radical: tudo que nasce carrega a potência de colocar o mundo em questão . Assim, para além de leituras que relacionam o infantil à pureza e à ingenuidade; na leitura de Arendt, a criança é essa que irrompe no mundo e produz inquietude a partir da novidade  que há em sua existência súbita.                                                                                                            

Os corpos criados pela artista apresentam a infância como uma anti-essência, contrária à aposta na infância como uma tábula-rasa ou um estado mais aproximado à natureza edêmica, aqui o infantil se dá como a intensificação dos possíveis, matéria geradora de presenças imprevisíveis e não totalmente controláveis. A infância como o avesso da essência coloca em cena a possibilidade de uma origem que fosse pura intempestividade, o acontecimento em sua face mais radical. A criança, ao levar a linguagem e o corpo a estados-limite, põe a existência em perspectiva, lançando-a para além do dogma e dos sentidos absolutos. Hannah Arendt já falava do nascimento como o acontecimento anacrônico por excelência, sendo aquilo que fragiliza as causas e efeitos e o que insere na história o elemento do imprevisível, ou ainda: como o elemento caótico que vem reiventar ao cosmos.                                                                                                                                                           



Amazonita

Os gregos antigos utilizam o termos kosmos como uma espécie de sinônimo para ordem; atualmente, entretanto, o vocábulo adquiriu uma proximidade à noção de mundo. Havia também um verbo derivado de kosmos, o kosmein, mais aproximado às noções de adornar, enfeitar, o que terminou produzindo o termo cosmética. Existe, portanto, nesse caminho etimológico a indicação de um parentesco entre ordem e artifício, ou entre mundo e invenção. Essas relações também são colocadas em cena na obra de Marcela, pois a artista se engaja na invenção de um mundo estruturado sobre potências caóticas e cosméticas.                                                                                 

Os corpos infantis, suas práticas indecifráveis e suas economias existenciais dispendiosas são por vezes figurados em paisagens densas. Manchas espessas em tons de verde, preto e azul ambientam esses corpos em florestas onde folhas e galhos são apenas sugeridos pela paleta cromática e se condensam em uma materialidade consistente, que é menos a floresta dos exotismos e das taxonomias e mais a floresta como uma atmosfera, pele rugosa e consistente do mundo. Em outros momentos os corpos aparecem em um ambiente lamacento, estão mergulhados na lama ou apresentam suas peles revestidas de terra úmida. A lama, aqui, é a intensificação dessa materialidade informe, elemento sem contornos nem limites, mas com alto potencial de formar e constituir.                                                                                                                                                                   
Na mitologia Iorubá conta-se que a Orixá Nanã, Senhora da lama, entra em conflito Ogum, o Senhor do ferro; e, para desafiá-lo, decide mostrar que é possível construir o mundo sem usar a lâmina, apenas o barro. Nanã assim demonstra que é possível inventar sem excluir, que é possível criar pela transmutação do informe. Esse mito pode ser aproximado à narrativa das Três Metamorfoses do Espírito escrita por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra. Nesse texto, Nietzsche na voz de Zaratustra aponta um caminho de transformações pelo qual um espírito humano deveria passar: da servidão do camelo à combatividade do leão e, por fim, da negação combativa do leão à aceitação desejante da criança. O leão é o sagrado direito de dizer não – a força do corte, mas a criança e o sagrado dizer sim – a força da transformação. Escreve Nietzsche: para brincar o brinquedo dos criadores é necessário ser uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade; tendo perdido o mundo, quer ganhar para si o seu mundo. Essas narrativas colocam em cena a ideia da criação do mundo a partir das potências da lama e da criança,  potências dos corpos moles.     


Caboclinho d´água

O corpo infantil perturba porque sua materialidade opera na lógica da transformação e da anti-fixidez. A cabeça de um bebê tem uma parte que se chama moleira, que é uma região do crânio que ainda está aberta. Tem dentes de leite, provisórios, e passa pela experiência de perder todos eles para sentir os permanentes nascendo novamente. Seu corpo se transforma rapidamente e o significante da moleza, em dentes moles e moleira, é isso que garante a potência variável do corpo infantil.  Se um corpo adulto é estruturado e se percebe como “formado”, o corpo da criança carrega esse teor do informe, daquilo que não cessa de se transformar. Nesse aspecto, lama e infância se tocam como portadoras dessa materialidade inquietante porque ao mesmo tempo desestruturadas e carregadas da potência estruturante e é como uma investigação em torno dessa matéria que  parte da produção de Marcela Cantuária se dá.   A singularidade das investigações pictóricas da artista passa por uma desconstrução das estruturas  que não visa à iconoclastia ou à nadificação do ser e sim à criação de um mundo feito de caos que se elabora com a engenhosidade de um cosmos. Aqui, anti-estrutura não é o que resvala no impossível, mas no espanto, no maravilhamento e no estranhamento dos infinitamente possíveis.        
                             
Na pintura Lembrança de mil anos,  um corpo feminino surge entre folhagens com o rosto coberto de argila. Poderia ser uma cena de um imaginário ancestral caso a mulher não estivesse com alcinhas verdes sobre os ombros e duas pequenas fileiras de azulejos não aparecessem no canto da pintura. Não se pode definir se a mulher tem um jardim dentro de casa ou se azulejou uma paisagem externa, o doméstico e  o natural são aqui potências indistintas. A lama sobre o rosto aponta aos domínios do cosmos como uma prática cosmética: do mais ancestral o excessivo, do fundamental o artificial. A lembrança de mil anos figurada pela artista não tem nada a ver com a ancestralidade como teatro das essências, mas com a rememoração de uma origem que é, desde sempre, matéria da invenção.                                                                                                                            

No Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade propõe uma espécie de transmutação do espírito desejável à ética antropofágica, diz ele: da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Na matemática, a equação é aquilo que visa produzir uma prova; já na lógica, o axioma é uma proposição que não é provada, sendo considerada óbvia ou consensual. Nesse sentido, o que é reivindicado no manifesto é um deslocamento do provar-se parte do mundo para o reconhecimento de que o cosmos é o que constitui tudo que há. Do pensar para existir ao existir para reinventar a existência, porque, conforme nos ensinam as pinturas de Marcela, o cosmos é aquilo que não cessa de  recusar a se formar e tampouco de convidar a ser inventado.   


Lembrança de mil anos


Mais sobre o trabalho da Marcela Cantuária pode ser visto aqui: http://marcelacantuaria.tumblr.com/

sexta-feira, 20 de março de 2015

Ninguém é Ana C.

Debocho da assimetria
Profetizo passados, crio  sistemas de medida
Esvazio e preencho o mistério
Ainda não estou curada
Amém
Ainda ontem voltei à cena do crime
Pelo menos três crimes naquela mesma esquina
Um eu cometi contra você quando roçávamos joelhos
Encarávamos a tevê do bar e dividíamos uma porção engordurada
O outro você cometeu contra mim, quando roçávamos joelhos
Um silêncio tão bruto e tão alegre
O terceiro não teve vítimas nem culpados
Foi súbito, terrível, maravilhoso
Na tevê anunciavam a cotação de um dinheiro estrangeiro
uma manobra espacial, a cura de uma doença rara
Você sorria calmo
As flutuações monetárias, a solidão dos astronautas e todas curas
Não eram mais incertos que o seu sorriso
Retoquei o batom, sujei seu garfo e depois seu corpo
Sem testemunhas
O mistério suspenso, sem medida nem história
Mas ninguém sobreviveu  

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Verticordia


O corpo pesa, disso eu sei desde criança. Em cada desejo por um impossível voo, que cedo ou tarde resultava em uma queda. O remédio era pegar um pequeno espelho, posicioná-lo rente à minha barriga, apontá-lo para cima e andar pela casa olhando para o reflexo do teto. A notícia do chão vinha nos esbarros, nos choques, em tropeços, mas havia o desejo de transtornar o peso, suspender a gravidade e inventar uma gravidade própria. Pisar no teto era a vertigem conquistada. Anos depois eu li sobre o mito do pós-vida no egito kemético, no qual todo aquele que morresse seria julgado pela deusa Maat no Saguão das Duas Verdades. O julgamento consistiria em pesar o coração do julgado usando a pena de um avestruz de contrapeso. Caso o coração pesasse mais que essa pluma, a alma perderia a chance de reencarnar. Para os egípcios antigos o critério de uma vida justa era vive-la com o coração sobrenaturalmente leve.    

O coração leve, gosto de pensar, é também um coração frágil. Onde pulsa a vida abunda a fragilidade. O momento do equilíbrio é instante da crise. Para burlar o peso é preciso não de mais força, mais afirmação, mais consistência, é preciso justo do contrário.  É na desistência de si, no sentido de colocar tudo que há de consistente à prova, que a criação da existência tem vez. Em alguns de meus trabalhos percebo recorrer esse desejo pela invenção da víscera. Desconfiar do visceral como estrutura, desorganizá-lo. Desconfiar do visceral como puro caos, compreender a superfície do profundo, sua pele, o seu desenho. 

Quando trabalho com o corpo, percebo que meu interesse é pelo corpo qualquer.  O pobre, o maldito, o visitante, o errante como imagens potentes do ser qualquer. Giorgio Agamben, no livro A Comunidade que vem, faz o elogio  do ser qualquer e diferencia o qualquer do ‘não importa qual’ afirmando-o antes como ‘o ser tal que, de todo modo, importa’. Para Agamben o mais próprio de uma criatura é a sua substituibilidade, aí residiria toda singularidade do comum. Esse é o corpo qualquer que me interessa, isso que é pleno de singularidade justo no ponto em que é  absolutamente substituível, já que não se trata aqui de afirmações identitárias, mas de dispersões de formas de viver. O ser qualquer me interessa na medida em que não se unifica na essência, mas que se dispersa na existência. Agamben afirma ainda que a singularidade do qualquer pode ser expressa na noção de exemplo. O exemplo escapa da antinomia entre  universal e  particular. É uma singularidade entre outras e está, porém, no lugar de cada uma delas, vale para todas.  Em grego para-deigma é aquilo que se mostra ao lado. Em alemão Bei-spiel, aquilo que joga ao lado. O lugar próprio do exemplo é sempre ao lado de si mesmo, no espaço vazio em que se desdobra sua vida inquantificável e inesquecível. 

Recentemente realizei a performance Verticordia, que consistiu em amarrar uma pedra de aproximadamente 400g no meu peito e tentar boiar com ela no mar. 400g é o peso médio de um coração humano. Verticordia é o epíteto de uma Vênus: aquela que coloca os corações em vertigem. Nessa série de performances nas quais pretendo investigar os epítetos da Vênus busco sair da noção mitológica para criar uma acepção afetiva de cada um deles. Assim, na minha mitologia afetiva, Verticordia coloca os corações em estado vertiginoso apenas porque ela mesma sabe sustentar o peso do coração comum. Como na noção de exemplo para Agamben, amarrei o peso do coração ao lado do meu. Dois corações justapostos, empilhados. Boiar era uma questão de deixar o corpo inexplicavelmente leve, de não lutar, de desistir do meu próprio peso e sustentar esse peso outro que era, a um só tempo, comum e impróprio.
   
Agamben diz:  a passagem da potência ao ato, da língua à fala, do comum ao próprio acontece a cada vez nos dois sentidos segundo uma linha de cintilação alternante na qual natureza comum e singularidade, potência e ato trocam de papéis e se penetram reciprocamente. O ser que se gera nessa linha é o ser qualquer e a maneira na qual ele passa do comum ao próprio e do próprio ao comum se chama uso – ou seja, ethos.

O ser, para Agamben, portanto, é o modo de ser. Aqui o filósofo indica um caminho comum entre ontologia e ética. Ser nunca precederia o modo como se é. Vislumbro aqui uma ideia de arte como ética – que divergiria de  arte como política – pela exaltação dos usos de si como dignificação de todo ser. Inventar o próprio peso como uma ética. Interessar-me pelo outro como a busca por aquilo que houvesse de mais singular em mim. Meu constante interesse pelo impróprio como um olhar atento ao que me é mais íntimo. Criar, não o faço com o estômago, faço com toda a pele que não minha. Crio no instante silencioso entre uma batida do coração e a outra.


Aqui, portanto, penso que o estado atual da minha pesquisa poderia formulado a partir do desejo pela afirmativa: equilibro o peso do coração comum.  





Imagens da performance endereçada à fotografia Verticordia feita no começo de 2015 com colaboração da fotógrafa Daniela Paoliello. 

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

colisão



meu rosto, a setenta por hora, virado para luz artificial
um tropismo estranho, que era mesmo vergonha de te olhar
minhas olheiras deviam estar enormes e estavam
e além disso eu me sentia com irremediável expressão de alívio
desde a hora que te encontrei
eu notei um pequeno rio que corria pela tua nuca
o nascedouro em lugar desconhecido
preso nalgum ponto do teu cabelo 
noite quente e o rio na tua nuca a setenta por hora
e eu não sabia  por que estava indo embora se tinha faltado te falar da ilha
dos seus contornos ferozes
como se tivesse sido separada do continente por uma mordida
faltava contar da ducha abundante na casa da minha mãe
dos dias de sol pleno
de ter pegado um ônibus lotado, que quebrou bem no meio da avenida beira-mar
justo quando eu estava chorando atrás de uns óculos baratos
(sem proteção UVB nem UVA)
não te contei dos meus rompantes de despudor
da gula violenta
não te contei que chorava porque subitamente me vi de novo
no mesmo lugar de sempre
e que esse é o motivo pelo qual eu mais choro
a noite derretia minha franja cheia de laquê
eu sentia uma coxa escorregar na outra quando
a luz artificial já era imensa
e era então a luz de um caminhão que ia bater na gente
a primeira coisa que pensei foi que não ia mais ver a noite quente
a ilha, a ducha abundante, a tua nuca
e logo veio outro carro se meter na história
os três agora, nós a setenta por hora e o caminhão provavelmente a uns oitenta
aprendi na aula de física que para calcular a velocidade média de uma colisão
na qual os veículos vem de direções opostas, basta somar a velocidade de ambos
(se fosse uma batida na mesma direção, helás!, teria que subtrair)
vamos então a cento e cinquenta por hora rumo ao terrível clímax
- o  carro que vem de lado eu não sei botar na conta
agarro  teu ombro e enfio a cara nele
sem querer te mordo quando o carro gira
lembra aquele filme do Resnais 
lembra aquele vestido que eu comprei e nunca usei, acho que ia ficar bom
lembra o sorriso daquela menina linda que te fez hesitar
lembra que estávamos indo para casa e morrendo de medo de nós dois
lembra que isso aqui é uma encruzilhada
e que ninguém nunca me ensinou que onde os caminhos se cruzam também colidem os corpos
som e silêncio na mesma frequência
ninguém me ensinou que quando tudo passa fica esse manancial
esse choro de represa rachada
e depois esse riso torto 
essa dor sem fonte
essa cicatriz suave
e enfim essa luz bem menos artificial que a da noite 
essa que emana a memória do perigo
tão feroz quanto a silhueta daquela ilha
tão guardada no corpo quanto o aviso de que a vida é mistura perigiosa de caminhos
véspera do choque paixão silenciosa  a imensa dor do susto 
o imenso prazer do susto

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Promessas


- Contornarei a solidez das coisas com a luz de uma tontura. Desconfiarei dos espelhos polidos. Serei tragada pelas grandes alturas, os rostos enfurecidos, os lábios silentes de corpos que brilham. Dançarei no mormaço dos dias quentes quando já nem se respira. O sol me queimará sem bondade e o torpor será outro nome para a vontade de romper a pele. O asfalto flutuará no delírio da quentura e nessa hora estarei com os dois pés bem fincados no chão.

- Darei as mãos aos espaços escuros, aos corpos frágeis, às ideias traidoras. O cogito derreterá diante dessa leveza furiosa que preenche a noite. Deitarei ao lado do homem que mora na esquina. Beberei da sua aguardente. Falaremos tête-à-tête com o céu. O movimento das nuvens obedecerá minhas retinas. Quando eu fechar os olhos, o sol sumirá e todos se abraçarão de medo, amor e mudez.  Um imenso silêncio se fará enquanto diversas mãos se procurarão no escuro já a um passo do naufrágio. Trovoadas dentro do meu peito ecoarão. 

- Operarei misteriosamente com a verdade. Deixarei que caiam os edifícios de pedra, as cercas de arame, os monumentos constantes. Erguerei tendas, altares provisórios. O instante será o nome bendito do tempo e o coração da eternidade baterá mais lento nas minhas mãos.

-  Farei perguntas às raízes, deixarei que meus olhos se tinjam de sol. Oferecerei o rosto ao apetite da terra e minha boca à umidade infalível do chão. Feras virão banquetear comigo. Eu beijarei o corpo das aves, confundirei dedos e penas, pernas e asas, nuvens carregadas e a pele ardente, temporal e sono quieto.

- Quebrarei copos, observarei astros a olho nu, mostrarei mais da minha pele.

- Olharei avidamente as curvas do corpo da dúvida. Passarei os dedos em seus cabelos indomados. Beijarei sua boca quente. Lavarei seus pés.

-  Repousarei no mínimo, celebrarei o escasso, festejarei o nada. A fome será minha fartura, a sede, um deleite. Meu  cansaço será também um ânimo. Mas o juízo, este eu perderei.

- Descerei à altura dos apetites brutos, como quem se abaixa em uma saudação. Pensarei com o ventre porque todo pensamento é mágico.

- Na garganta, as armas estarão a postos.

- Abrirei mais janelas. O fora terá espaço dentro. O abrigo não será de todo separado da ameaça. A festa será o norte do corpo.

- Celebrarei de dia aquilo que é o noturno, e à noite festejarei os dias. Lerei destinos em tripas, no céu, na borra do café, nos rostos e nas mãos. Afinal o destino marca tudo, não deixa nada impune.

- Não domarei o medo, mas tentarei sentar no seu dorso.

- O que me ofende será também o que me nomeia. Não deixarei de percorrer a contramão. Esconderei tesouros na luz óbvia do meio-dia.

- Serei mansa e amarei os que me cercam, mas conspirarei até o fim.


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Femme fatale


Eu sou aquele que não te salvou 
Sou  teu choro preso na goela
A minha infância em terra ensolarada
uma noite úmida
teu coração que dispara agora

Eu sou esse  êxtase doméstico
[teu rosto se vira rapidamente para lâmpada fluorescente enquanto pintas as unhas dos pés]
E você, esperta como uma órfã, anda pelas ruas adivinhando o meu olho  
Sempre essa certeza de que quando eu te visse você estaria despreparada
Você ficava tentando se despreparar

Cozinhava um frango com mostarda
chorava no sofá amarelo
escondia quadros atrás de móveis
Era genial, de súbito
Bruta e chata ao fim do dia.
Sentia-se desprezada pelo porteiro
Trocava olhares com a caixa do mercado
Comentava sobre a parricida
que agora vai casar

Mas nada disso era ainda eu,
que te esqueci durante aquela semana inteira,
que não voltei apesar de ter dito que era bom.
Eu que te fascinei porque te lembrava:
um mar não exótico, como o de Ipanema,
um encontro ferozmente curto,
 um porre imenso com um passeio de táxi depois,
uma cachoeira que nunca se achou,
o livro que você escreve há anos mesmo sabendo que nem escreve assim tão bem.

Eu sou esse corpo que observaste dormir, meio rosto,
metade afundada num travesseiro escuro,
metade iluminada.


Eu sou esse teu rosto insone que não entende nada e sorri.