terça-feira, 5 de maio de 2015

O corpo mole do cosmos


Mas dizei-me, irmãos, 
que pode fazer a criança que nem o leão pode fazer?
(Assim Falava Zarastustra, Nietzsche)

A infância comparece na pintura de Marcela Cantuária menos como um tema e mais como uma materialidade inquietante. Corpos infantis são figurados em situações insólitas que não incitam à narrativa, ao encadeamento causal ou à qualquer simbologia decifrável, sendo antes figurações do próprio mistério da presença. Na pintura de Marcela recorrem corpos infantis que performam gestos herméticos, banais ou misteriosos; mas sempre carregados de um teor de estranheza, no limiar entre o doméstico e o onírico, o provável e o possível, o próprio e o impróprio.                
             
Hannah Arendt, no seu texto A Condição Humana, apontou a infância como o campo dos  nascimentos e, portanto, como aquilo que salvaguarda a renovação do mundo e a descontinuidade do tempo. Para a filósofa, um nascimento é sempre o aparecimento de uma novidade radical: tudo que nasce carrega a potência de colocar o mundo em questão . Assim, para além de leituras que relacionam o infantil à pureza e à ingenuidade; na leitura de Arendt, a criança é essa que irrompe no mundo e produz inquietude a partir da novidade  que há em sua existência súbita.                                                                                                            

Os corpos criados pela artista apresentam a infância como uma anti-essência, contrária à aposta na infância como uma tábula-rasa ou um estado mais aproximado à natureza edêmica, aqui o infantil se dá como a intensificação dos possíveis, matéria geradora de presenças imprevisíveis e não totalmente controláveis. A infância como o avesso da essência coloca em cena a possibilidade de uma origem que fosse pura intempestividade, o acontecimento em sua face mais radical. A criança, ao levar a linguagem e o corpo a estados-limite, põe a existência em perspectiva, lançando-a para além do dogma e dos sentidos absolutos. Hannah Arendt já falava do nascimento como o acontecimento anacrônico por excelência, sendo aquilo que fragiliza as causas e efeitos e o que insere na história o elemento do imprevisível, ou ainda: como o elemento caótico que vem reiventar ao cosmos.                                                                                                                                                           



Amazonita

Os gregos antigos utilizam o termos kosmos como uma espécie de sinônimo para ordem; atualmente, entretanto, o vocábulo adquiriu uma proximidade à noção de mundo. Havia também um verbo derivado de kosmos, o kosmein, mais aproximado às noções de adornar, enfeitar, o que terminou produzindo o termo cosmética. Existe, portanto, nesse caminho etimológico a indicação de um parentesco entre ordem e artifício, ou entre mundo e invenção. Essas relações também são colocadas em cena na obra de Marcela, pois a artista se engaja na invenção de um mundo estruturado sobre potências caóticas e cosméticas.                                                                                 

Os corpos infantis, suas práticas indecifráveis e suas economias existenciais dispendiosas são por vezes figurados em paisagens densas. Manchas espessas em tons de verde, preto e azul ambientam esses corpos em florestas onde folhas e galhos são apenas sugeridos pela paleta cromática e se condensam em uma materialidade consistente, que é menos a floresta dos exotismos e das taxonomias e mais a floresta como uma atmosfera, pele rugosa e consistente do mundo. Em outros momentos os corpos aparecem em um ambiente lamacento, estão mergulhados na lama ou apresentam suas peles revestidas de terra úmida. A lama, aqui, é a intensificação dessa materialidade informe, elemento sem contornos nem limites, mas com alto potencial de formar e constituir.                                                                                                                                                                   
Na mitologia Iorubá conta-se que a Orixá Nanã, Senhora da lama, entra em conflito Ogum, o Senhor do ferro; e, para desafiá-lo, decide mostrar que é possível construir o mundo sem usar a lâmina, apenas o barro. Nanã assim demonstra que é possível inventar sem excluir, que é possível criar pela transmutação do informe. Esse mito pode ser aproximado à narrativa das Três Metamorfoses do Espírito escrita por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra. Nesse texto, Nietzsche na voz de Zaratustra aponta um caminho de transformações pelo qual um espírito humano deveria passar: da servidão do camelo à combatividade do leão e, por fim, da negação combativa do leão à aceitação desejante da criança. O leão é o sagrado direito de dizer não – a força do corte, mas a criança e o sagrado dizer sim – a força da transformação. Escreve Nietzsche: para brincar o brinquedo dos criadores é necessário ser uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade; tendo perdido o mundo, quer ganhar para si o seu mundo. Essas narrativas colocam em cena a ideia da criação do mundo a partir das potências da lama e da criança,  potências dos corpos moles.     


Caboclinho d´água

O corpo infantil perturba porque sua materialidade opera na lógica da transformação e da anti-fixidez. A cabeça de um bebê tem uma parte que se chama moleira, que é uma região do crânio que ainda está aberta. Tem dentes de leite, provisórios, e passa pela experiência de perder todos eles para sentir os permanentes nascendo novamente. Seu corpo se transforma rapidamente e o significante da moleza, em dentes moles e moleira, é isso que garante a potência variável do corpo infantil.  Se um corpo adulto é estruturado e se percebe como “formado”, o corpo da criança carrega esse teor do informe, daquilo que não cessa de se transformar. Nesse aspecto, lama e infância se tocam como portadoras dessa materialidade inquietante porque ao mesmo tempo desestruturadas e carregadas da potência estruturante e é como uma investigação em torno dessa matéria que  parte da produção de Marcela Cantuária se dá.   A singularidade das investigações pictóricas da artista passa por uma desconstrução das estruturas  que não visa à iconoclastia ou à nadificação do ser e sim à criação de um mundo feito de caos que se elabora com a engenhosidade de um cosmos. Aqui, anti-estrutura não é o que resvala no impossível, mas no espanto, no maravilhamento e no estranhamento dos infinitamente possíveis.        
                             
Na pintura Lembrança de mil anos,  um corpo feminino surge entre folhagens com o rosto coberto de argila. Poderia ser uma cena de um imaginário ancestral caso a mulher não estivesse com alcinhas verdes sobre os ombros e duas pequenas fileiras de azulejos não aparecessem no canto da pintura. Não se pode definir se a mulher tem um jardim dentro de casa ou se azulejou uma paisagem externa, o doméstico e  o natural são aqui potências indistintas. A lama sobre o rosto aponta aos domínios do cosmos como uma prática cosmética: do mais ancestral o excessivo, do fundamental o artificial. A lembrança de mil anos figurada pela artista não tem nada a ver com a ancestralidade como teatro das essências, mas com a rememoração de uma origem que é, desde sempre, matéria da invenção.                                                                                                                            

No Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade propõe uma espécie de transmutação do espírito desejável à ética antropofágica, diz ele: da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Na matemática, a equação é aquilo que visa produzir uma prova; já na lógica, o axioma é uma proposição que não é provada, sendo considerada óbvia ou consensual. Nesse sentido, o que é reivindicado no manifesto é um deslocamento do provar-se parte do mundo para o reconhecimento de que o cosmos é o que constitui tudo que há. Do pensar para existir ao existir para reinventar a existência, porque, conforme nos ensinam as pinturas de Marcela, o cosmos é aquilo que não cessa de  recusar a se formar e tampouco de convidar a ser inventado.   


Lembrança de mil anos


Mais sobre o trabalho da Marcela Cantuária pode ser visto aqui: http://marcelacantuaria.tumblr.com/

Um comentário:

  1. linda metáfora para pensar o informe do corpo infantil, pri!
    e que interessante o trabalho dessa artista! ela é aí do rio?

    beijos!

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