um tropismo estranho, que era mesmo vergonha de te olhar
minhas olheiras deviam estar enormes e estavam
e além disso eu me sentia com irremediável expressão de alívio
desde a hora que te encontrei
eu notei um pequeno rio que corria pela tua nuca
o nascedouro em lugar desconhecido
preso nalgum ponto do teu cabelo
noite quente e o rio na tua nuca a setenta por hora
e eu não sabia por que
estava indo embora se tinha faltado te falar da ilha
dos seus contornos ferozes
como se tivesse sido separada do continente por uma mordida
faltava contar da ducha abundante na casa da minha mãe
dos dias de sol pleno
de ter pegado um ônibus lotado, que quebrou bem no meio da avenida beira-mar
justo quando eu estava chorando atrás de uns óculos baratos
(sem proteção UVB nem UVA)
não te contei dos meus rompantes de despudor
da gula violenta
não te contei que chorava porque subitamente me vi de novo
no mesmo lugar de sempre
e que esse é o motivo pelo qual eu mais choro
a noite derretia minha franja cheia de laquê
eu sentia uma coxa escorregar na outra quando
a luz artificial já era imensa
e era então a luz de um caminhão que ia bater na gente
a primeira coisa que pensei foi que não ia mais ver a noite
quente
a ilha, a ducha abundante, a tua nuca
e logo veio outro carro se meter na história
os três agora, nós a setenta por hora e o caminhão provavelmente
a uns oitenta
aprendi na aula de física que para calcular a velocidade
média de uma colisão
na qual os veículos vem de direções opostas, basta somar a
velocidade de ambos
(se fosse uma batida na mesma direção, helás!, teria que
subtrair)
vamos então a cento e cinquenta por hora rumo ao terrível clímax
- o carro que vem de lado
eu não sei botar na conta
agarro teu ombro e
enfio a cara nele
sem querer te mordo quando o carro gira
lembra aquele filme do Resnais
lembra aquele vestido que eu comprei e nunca usei, acho que
ia ficar bom
lembra o sorriso daquela menina linda que te fez hesitar
lembra que estávamos indo para casa e morrendo de medo de
nós dois
lembra que isso aqui é uma encruzilhada
e que ninguém nunca me ensinou que onde os caminhos se cruzam também
colidem os corpos
som e silêncio na mesma frequência
ninguém me ensinou que quando tudo passa fica esse manancial
esse choro de represa rachada
e depois esse riso torto
essa dor sem fonte
essa cicatriz suave
e enfim essa luz bem menos artificial que a da noite
essa que emana a memória do perigo
tão feroz quanto a silhueta daquela ilha
tão guardada no corpo quanto o aviso de que a vida é mistura perigiosa de caminhos
véspera do choque paixão silenciosa a imensa dor do susto
o imenso prazer do susto
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