quinta-feira, 7 de abril de 2011

"Amar a Deus através da destruição de Tróia e de Cartago, e sem consolo. O amor não é consolo, é luz. " (Simone Weil)

Ouve, que já não te escrevo mais. Que minha voz é da noite escura e minhas mãos são dos mistérios fundos: o ar gelado e branco, a pele fina do meu corpo quieto. Que hoje meu repouso é a minha recusa, meu conforto é minha insubmissão. Ouve, que já não me olhas mais, que não compreendi nada da vida, que não entendi nada de mim. Que dou passos de contradição e meu alívio único será a manhã e sua potência de invadir frestas. Hoje eu permaneço em uma margem fina entre o todo e os pedaços, entre os olhos fechados do sim e a náusea do não, entre a concavidade do céu e a tua pura carne. Hoje sou o eixo e a espuma, sou coluna e linfa. Tantas velas, tantas genuflexões, tantas memórias ofertadas, tantos esvaziamentos em troca de um instante de suspensão desses contrários, um instante de tocar a pura vida, essa intensidade plena, esse sufoco que respira. Mas a minha ânsia de vida é também a minha vontade de inferno. Meus pés plantados no chão, meu corpo de lama e sal, carregam meus olhos que ardem em fogo. Minha paixão pelo todo é a minha disposição para o rasgo, e o rasgo nunca tarda. Ouve, que te escrevo desde um buraco de poucas luzes conhecidas, que te escrevo da minha cama estreita, meu quarto cosmos, meu corpo texto, minha noite vida. Hoje as dores do dia se deitam mansamente no meu colo, olhos fechados de anjos tortos, dores ferrão, que me envenenam e não me tomam. Antes uma atrocidade, antes esse teto devastado, esse chão rachado. Antes meu corpo inteiro dentro do perigo. Mas a tarefa é conviver com essas mãos que me mantêm acordada e não me abraçam, essas mãos dolorosas da minha existência rasa, do meu ser improvisado, que comunga com a face escura do mundo pela ponta afiada das unhas. Sabes dessas minhas horas que são tuas? Não sabes. Nem ouves essa minha voz que te fecundaria e te faria uns filhos-ruído, uma prole de espasmos. Eu escrevo como quem conjura, como quem confessa, como quem comete, eu te escrevo como te amaria, como te seduziria na demora, como te arranharia de tanta paz desperdiçada. Hoje eu sou um corpo imenso, de imensas dobras, secretos líquidos e suores fortes. Hoje sou um corpo mínimo, que nada olha, nada toca. Sou um corpo maquiado, corpo escama, traidor e mártir de mim mesma, carne víbora, pele cruz. Hoje te sorrio ternamente e te apunhalo e te assassino e te exalto. Ouve, tu que és tantos, e todas, e o único, de um só dia, de toda a vida. Ouve, que minha voz é minha força e meu fracasso, que te evoco já tão lúcida, que já nunca soube quem tu és.

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