quarta-feira, 18 de maio de 2016





“Voei pra
cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma
graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por
você, e furiosa: é agora, nesta contramão.”  (Ana C.)

céu nenhum estável. sobre nós, essa ameaça de queda ou de brasa. era preciso esperar a hora mais quieta da noite para enxergar o dia com os olhos secos. experimentar uma distância calculada com temor, um deles sobre o sofá da sala, o outro vagando pelos corredores, o terceiro ia e vinha pelas escadas de incêndio. eu diante da janela que dava pra avenida que era o início das nossas fugas e o epicentro de um tremor que atingiria a todos nós. como quando tateava os tremores do teu peito no alto do largo das neves para então descermos a ladeira sem freios. quando um de nós empreendia um improvável gesto de ternura no centro da paisagem mais brutal.  como quando me vi tão irremediavelmente só andando pelo centro, pegando o trem, indo para a sala de embarque. como naquele dia em que falei sobre as pequenas rachaduras que ameaçavam as paredes e a disposição dos móveis adquiriam o tamanho da tua ausência, a distância entre a mesa e a cadeira, o lençol reto sobre a cama.  voltar para casa era um pouco como cair. as rachaduras aumentavam e podia-se sentir que as vigas cediam, que o chão já não era firme, mas por algum motivo fingíamos que nada disso era a véspera de um colapso definidor. escancarávamos as janelas nas noites de chuva, eu com os olhos fixos na avenida úmida, planejando o momento exato de partir. dançávamos rente ao que ameaçava, nessa prolongada queda que nos amparou a todos durante os meses que atrasaram a nossa ida. andavam na beira da praia, pelas brechas de uma mata, num deserto, pela avenida brasil. entendiam-se no que dizia respeito à formulação dos caminhos e  à sobrevivência ao longo do dia. entravam juntos nas vias que encurtariam caminhos, pediam caronas, provocavam os desvios necessários para alongar o tempo, saqueavam quando preciso, jejuavam também. um deles se protegia na ideia de que eventualmente teriam que tomar estradas opostas, não sabiam quem produzia o silêncio, quem pacientemente o escutava. depois as tempestades, a janela imensa na beira da sala, o sono partilhado, alguns encontros durante a madrugada, como quando tocavam as mãos por baixo dos lençóis, ou abriam os olhos ao mesmo tempo para tornarem a adormecer. houve o alegre despertar simultâneo, mas muito mais a insônia solitária ao lado de um corpo que dorme. agora olho para baixo e vejo um condensado de tons cinza me separando de uma cidade anônima. talvez eu sobrevoe alguma paisagem cujo impecável silêncio me lembraria de você, talvez passe por cima de alguma vida selvagem da qual nada sei, talvez passe pela fagulha de um evento que, algum dia, me levará a algum destino irreparável. meus pés bem firmes sobre um chão que corre e corta a densidade do ar, nem origem nem destino, aqui onde começo.                 

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