cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma
graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por
você, e furiosa: é agora, nesta contramão.” (Ana C.)
céu nenhum estável. sobre nós, essa ameaça de queda ou de brasa. era preciso
esperar a hora mais quieta da noite para enxergar o dia com os olhos secos.
experimentar uma distância calculada com temor, um deles sobre o sofá da sala,
o outro vagando pelos corredores, o terceiro ia e vinha pelas escadas de
incêndio. eu diante da janela que dava pra avenida que era
o início das nossas fugas e o epicentro de um tremor que atingiria a
todos nós. como quando tateava os tremores do teu peito no alto do largo das
neves para então descermos a ladeira sem freios. quando um de nós empreendia um
improvável gesto de ternura no centro da paisagem mais brutal. como quando me vi tão irremediavelmente só andando pelo
centro, pegando o trem, indo para a sala de embarque. como naquele dia em que
falei sobre as pequenas rachaduras que ameaçavam as paredes e a
disposição dos móveis adquiriam o tamanho da tua ausência, a distância entre a
mesa e a cadeira, o lençol reto sobre a cama. voltar para casa era um
pouco como cair. as rachaduras aumentavam e podia-se sentir que as vigas
cediam, que o chão já não era firme, mas por algum motivo fingíamos que nada
disso era a véspera de um colapso definidor. escancarávamos as janelas nas
noites de chuva, eu com os olhos fixos na avenida úmida, planejando o momento
exato de partir. dançávamos rente ao que ameaçava, nessa prolongada queda que
nos amparou a todos durante os meses que atrasaram a nossa ida. andavam na
beira da praia, pelas brechas de uma mata, num deserto, pela avenida brasil.
entendiam-se no que dizia respeito à formulação dos caminhos e à sobrevivência ao longo do dia. entravam juntos nas vias que
encurtariam caminhos, pediam caronas, provocavam os desvios necessários para
alongar o tempo, saqueavam quando preciso, jejuavam também. um deles se
protegia na ideia de que eventualmente teriam que tomar estradas opostas, não sabiam quem
produzia o silêncio, quem pacientemente o escutava. depois as tempestades, a
janela imensa na beira da sala, o sono partilhado, alguns encontros durante a
madrugada, como quando tocavam as mãos por baixo dos lençóis, ou abriam os
olhos ao mesmo tempo para tornarem a adormecer. houve o alegre despertar
simultâneo, mas muito mais a insônia solitária ao lado de um corpo que dorme.
agora olho para baixo e vejo um condensado de tons cinza me separando de uma
cidade anônima. talvez eu sobrevoe alguma paisagem cujo impecável silêncio me
lembraria de você, talvez passe por cima de alguma vida selvagem da qual nada sei, talvez passe pela fagulha de um evento que, algum dia, me levará a
algum destino irreparável. meus pés bem firmes sobre um chão que corre e corta a
densidade do ar, nem origem nem destino, aqui onde começo.
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