Diálogo
Em
uma biblioteca, estamos um de frente para o outro.
Eu: Eu preciso desviar dessa mulher
que me atravessa. Quem sou, nessa hora pálida, rodeada pelo peso de um tempo antigo, procurando
descrever o instante no momento pleno de
seu nascimento? É que as estratégias para me esvaziar são simples e me matam,
faço um voto de silêncio, um voto de sede, um voto de jejum. Quero fazer surgir
essa sobra: enquanto meu corpo não come, não fala, não bebe, o que pensa pelas
mãos? Passar o dia na experiência de sentir o dia passar. Passar o dia me narrando o próprio dia.
Passar o dia sem saber como passa o dia. Jogar com o tempo, com as
possibilidades do meu corpo e as possibilidades da escrita. Estou nessa
biblioteca faz muito tempo e aqui ficarei por oito horas, o horário de um
expediente de trabalho ou de uma boa noite de sono. Não farei nada além de
olhar e escrever. Não sei como o tempo passa.
Ele: Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma
mudança e uma aceleração do tempo. “Em
meio aos passatempos contínuos e divertimentos vários, as horas, os dias, as
semanas, passavam num lampejo.”
Eu: Vim por um deslumbre simples, as
lombadas dos livros antigos empilhadas, pontos dourados nos letreiros, formando
uma constelação de pequenos sóis sobre um fundo geométrico. A claraboia-rosácea
, de onde pende um lustre pesado e antigo, feito um astrolábio de gigantes. Desejo de tocar as lombadas dos livros
intocáveis, como um amante cuidadoso que
acaricia a amada enquanto sonha em arrancar-lhe um grito de temor. Com esta
dupla paixão, violaria estes livros antigos, já meio devorados por outros
apetites. Quem me acompanha ?
Ele: Os ajudantes . Alguém – não se sabe direito quem – os confiou para nós,
e não é fácil livrar-se deles . Em suma, “não sabemos quem são”; talvez
sejam “enviados” do inimigo (o que
explicaria por que insistem em ficar à espreita e espiar). Mesmo assim,
assemelham-se a anjos, a mensageiros que desconhecem o conteúdo das cartas que
devem entregar, mas cujo sorriso, cujo olhar e cujo modo de caminhar parecem
uma mensagem. Metade gênios celestes, metade demônios.
Eu: Nessa solidão, quando não me
integro a nenhum fluxo de tempo compartilhado, quem são meus ajudantes? As
camadas de um tempo que aqui se inscrevem, a inspiração soprada por um ser
luminoso ou diabólico, que me faz permanecer aqui e escrever. Sinto que estar
aqui é cumprir uma espécie de flagelo. Ideia
instigante, quase perigosa, essa – da escrita como penitência. A escritura é
sempre associada à formação de um espírito crítico, à auto-libertação. E quando
escrever é se testar? É botar tudo à prova, em estado de estremecimento? Escrever com o sangue
até sentir-se sem sangue. Narrar com o desespero de Sherazade, para não morrer.
Já tinha pensado no gesto de Sherazade como o de alguém que cria para se
salvar, mas e se ela narrava para se punir? Já que a morte viria, inevitável,
narrar era adentrar na angustia e prolonga-la.
Ele: O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício.
Eu:
Separada permaneço de tudo que o tempo tem de confortável. A via para estar nesse estado de exceção do corpo e
da narrativa passa por um sacrifício. E eu me penitencio para aprender o que?
A densidade do frio e do tempo, que todos os estados importam, para me apropriar de um método e de um rigor,
para me encontrar no tempo com todos os que escreveram para se machucar ou para
se salvar. Para aprender a estar presente nesse instante iluminado.
Ele:
A
distância - e, ao mesmo tempo, a proximidade – que define
a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em
nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente.
Eu: O tempo presente é o motivo de todo esse
processo. Porque não é escrever sobre algo, mas escrever em algo. Então aqui
vim, por sentir uma silenciosa atração por coisas mortas. E cada livro disposto
nas estantes me parecer um túmulo, pelo qual sinto estranhas ternuras. O que
faço aqui, finjo ?
Ele: Brincando, (...) desprende-se do tempo sagrado e o “esquece” no tempo
humano.
Dentro
do rio, na areia e entre flores.
Eu: Me acompanha essa mulher. Quem
ela ? Há sempre essa que me atravessa ou me precede. Há sempre uma antiguidade,
uma potência arcaica. A Mãe, a História, a Primeira, a que eu deveria ser e
nunca sou.
Ele: Aquilo com que brincam as crianças é a história.
Eu:
Refaço gestos de mulheres que nunca fui. Enceno suas mortes. Mulheres que só
existiram na pintura ou na literatura. Feito criança
deslumbrada, brinco com a história? Brinco de embaralhar minha vida com outras
vidas, e enceno mortes constantes, para evitar a minha própria, já que
persistir numa existência fechada, sem atravessamentos, seria como morrer. Será que todo mundo que escreve sente esse
mesmo cansaço do eu ? Escrever para fugir de si e acabar sempre de volta a uma
escura subjetividade. Há, diferente disso, o desejo de produzir peles, escrever
para a superfície, para o que me roça, me espeta ou me faz cócegas. Escrever e
dedicar a toda pele que não minha.
Ele: O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o
tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra.
Eu: Sinto que, com esse gesto de
colocar meu corpo e minha voz à disposição de narrativas que me precedem, crio distâncias e as encurto ao mesmo tempo.
Morro – junto desses corpos – para sobreviver . Empresto meu rosto, minhas
feições mais íntimas a essa alteridade que me escapa. Olho para essas mulheres
com o rosto nu e o corpo disponível. Serão dessa ordem as narrativas? Uma morte
ao contrário, nascida de um corpo que - a ela - sobreviveu.
Ele: (...) o rosto humano, que não conhece a nudez, porque sempre já está
nu.
Eu: Por isso talvez a potência
das máscaras, dos semblantes. A tragédia colada às têmporas, à boca. O rosto se
protege com sua disponibilidade, sua coragem é estar sempre despido e dissimular
essa camada a menos com a constante invenção de si. O rosto se dispõe ao mundo.
Mas por que esse gesto ficcional, essa necessidade de revestir minhas narrativas
de uma camada de fabulação? Às vezes desconfio que me entrego à escrita por
inabilidade para a vida propriamente dita, a vida dos corpos, a vida das ruas,
a vida de todos os contatos. Mas intuo que a escrita possa ser esse território - como um rosto - em que se proteger não difere de se expor.
Não sei bem qual o sentido desse gesto que enceno. Morrer três vezes, por três
corpos diferentes, me salva do que?
Ele: Tudo o que agora nos aparece envilecido e de pouco valor é a fiança que
deveremos resgatar no último dia, e quem nos guia para a salvação é precisamente o companheiro que se perdeu
pelo caminho. É seu rosto que reconhecemos nos anjo que toca a trombeta ou em
quem, distraído, deixa cair das mãos o livro da vida. A réstia de luz que nasce
em nossos defeitos e nossas pequenas baixezas não era senão a redenção.
Eu: A escrita é uma espécie de
Hades, território infernal. Um rio para se olhar refletido na morte.
Ele: O poeta, que deveria pagar a sua contemporaneidade com a vida, é aquele
que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera, soldar com o seu sangue
o dorso quebrado do tempo.
Eu: Como uma bailarina pesada
demais, que luta contra a natureza, me debato na escritura. Escrever é sempre
lutar contra uma natureza ? Escrever é torcer-se, é morrer de sono e manter os
olhos abertos.
Ele: Fazer da fratura um lugar de um compromisso.
Eu: Compromisso com o
despedaçamento, essa ética do corpo que se cria.
No
caminho para algum outro lugar.
Eu:
Agora estamos a
caminho de Valença, uma pequena cidade do interior. O que busco? Não sei.
Reconheço apenas que me impulsionam essas imagens. Vê que lindas? São
fotografias da década de 70, de quando minha mãe morava lá. Quero chegar em
Valença e sentir o espaço, colocar meu corpo nessa experiência e produzir o que
o contato com o meio me inspirar. O que fazem os homens, quando não tem
utilidade prevista o que fazem?
Ele:
Desperdiçam os seus bens, destroem suas
heranças.
Eu: Engraçado
você falar de herança, porque, se parece que estou indo em busca dessa memória
família para fortalecer esse imaginário herdado, não é disso que se trata. É
muito mais um gesto de fratura: vou até lá macular o memorado na clave do
vivido.
Ele:
Somos todos devorados pela febre da
história e devemos ao menos disso nos dar conta.
Eu: A febre, esse estado em que tudo fica agudo e fraco. Uma fraqueza até potente,
que abre a mente para os desencadeamentos, os delírios. A história nos traga.
Estar aqui, para ficar completamente só nesse lugar que desconheço, é efeito de
ter sido tragada pela história da minha família, da minha origem. Se o impulso
de me perder nessa investida, é ter sido tragada pela história, como fazer
dessa paixão algo potente?
Onde investir o meu olhar?
Ele:
(...) Contemporâneo é aquele que recebe o
escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpela-lo,
algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele.
Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provem
do seu tempo.
Eu: Quero
olhar o escuro e molhar a minha pena nessa tinta. Engraçado não saber com o que
me munir para vir até aqui. De um grande álbum de fotos, algumas imagens me
chamaram mais atenção que outras. Trago comigo a descrição desses locais e
tenho o desejo de encontra-los, para me fotografar em lugares onde minha mãe
também se fotografou há trinta anos atrás. Estranha sensação de não saber bem o
que importa. Vou abruptamente em direção ao trabalho sem saber o que é o
trabalho, então tudo é excesso e nada é excesso, tudo é dispensável e nada é.
Ele:
Também entre as coisas aparecem
ajudantes. Todos conservamos certos objetos inúteis, metade lembrança, metade
talismã. (...) Onde vão acabar tais objetos-ajudantes, testemunhos de um éden
não-confessado ? Porventura não existe para eles um armazém, uma arca em que
sejam recolhidos para a eternidade, como acontece com a genizah em que os
hebreus conservaram os velhos livros ilegíveis, porque mesmo assim poderia
estar escrito o nome de Deus ?
Eu:
Antes você falou da arte como compartimento destinado a recolher estes
significantes instáveis que não pertencem propriamente nem à sincronia nem à
diacronia, nem ao rito, nem ao jogo. O gesto artístico como este que acolhe
resíduos inapreensíveis. De Valença, busco reter mais do que posso, com medo de
perder esse mistério inacessível, talvez inexistente, que vim buscar aqui. A
sensação que me acompanha quando vou embora é a de tristeza. Uma tristeza que
me impulsiona, agora, a criar algo de potente com esses textos, essas imagens e
essas experiências.
Ele: Os ajudantes são nossos desejos
insatisfeitos, aqueles que não confessamos sequer a nós mesmos.
Eu:
Trata-se mais de escrever sobre o irrealizado, o intocado, do que sobre o
vivido.
Ele:
O que o perdido exige não é ser lembrado
ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e,
unicamente por isso, como inesquecível.
Eu:
Estive aqui para lembrar que nunca estive aqui.
Ele:
Isso porque do inesquecível só é possível
a paródia. O lugar do canto está vazio. Ao lado e ao redor atarefam-se os
ajudantes, que preparam o Reino.
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. P.65
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.61.
AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.78.
AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.35.
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.60.
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.71.
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.58.
AGAMBEN,
Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009. p.64
AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.35.
AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.35.
AGAMBEN,
Giorgio. Profanações. São Paulo:
Boitempo, 2007. p.35.