Diabólico
é o caminho, isso não deixa negar a aproximação feita na cultura brasileira
entre o orixá africano Exu e o diabo judaico-cristão. O nosso Exu reina sobre as
encruzilhadas, a sobreposição de caminhos. Exu, em certo sentido, é uma das
faces do devir. Um dos nomes para o diabo é Gira
Mundo: o senhor dos caminhares, das estradas, dos moveres. Capaz de abrir
portas e ligar os caminhos, Exu é sempre dúbio, adorado e temido. É um elemento
dialético, nem bom nem mau, mas que pode
assustar e espantar, assim como aquilo que se pode encontrar quando se caminha.
Diabólica
é também a multiplicidade, as bordas. O Diabo, neste sentido, está sempre
contra o unitário, inimigo de todo centro. Michel Maffesoli em A Parte do Diabo (2004) localiza a sabedoria demoníaca contra a violência
totalitária de qualquer universalismo sendo uma sabedoria do corpo e da vida que
incorpora até mesmo o que há de mais selvagem na existência. O autor afirma que
o pensamento dicotômico e maniqueísta que assombra toda a racionalidade
ocidental o tem uma origem divina. O diabo como
multiplicidade seria o reconhecimento das misturas, dos enlaces entre luz e
sombra. O pensamento maniqueísta teria dado origem também à perversa associação
entre mesmo e bem contra outro e mau. Nesse sentido, o encontro com
qualquer alteridade radical se dá como encontro com o obscuro, com a face maldosa
do ser. O agir diabólico seria perceber no outro, no incógnito da terra, uma
outra coisa que não o puro mau. A
cultura europeia colocou durante séculos tudo de incompreensível, de excessivo,
de ambíguo, de irredutível ao sentido sob o signo do mau. A terra incógnita era
lugar do fantástico, do ilimitado e do heterogêneo, mas o que se descobria outro logo passava a habitar a anônima e
infame periferia do Idêntico. A sedutora terra incógnita é morada Outro e é,
portanto, local de medo e de desejo, de repulsa e de atração.
Diabólico
é o bordejante. É o sem identidade substancial, que pode existir de muitas
formas e, mais do que isso, o que quer desmoronar aquilo que só existe de um
modo, que sabota tudo que é idêntico a si.
Ettore Finazzi-Agrò ressalta que, não por acaso, muitas crônicas de conquista
da América contêm uma reprovação religiosa acerca das culturas politeístas: a multiplicidade seria, em si, uma
manifestação de Satã. Para o pensamento eurocêntrico, tudo que se esquiva de uma
individuação encontra logo a sua definição demoníaca. Exemplo extremado do outro demoníaco é alteridade-devoradora
dos indígenas: o canibalismo. Hans Staden foi um jovem aventureiro alemão do
século XVI que, após uma série se naufrágios e motins, encontrou-se com índios
antropófagos em São Vicente, atual litoral de São Paulo. Staden foi aprisionado
e, por pouco, não acaba devorado pelos seus sequestradores. Ao retornar à
Europa, o viajante relatou sua experiência em um livro que teve sua primeira
edição em 1557.
A antropofagia
assustou o europeu a ponto de este identificar o indígena com o diabo sem
nenhum esforço. Essa relação está marcada nas gravuras feitas por Theodor de
Bry a partir dos relatos de Staden. Muitas imagens do novo mundo podem ser
comparadas aos infernos de Hieronymus Bosch e de outros pintores medievais onde
devorações, entrelaçamento de corpos, festa, horror e orgias recorrem. Na
pintura Inferno, que um autor
português não identificado pintou no século XVI, reúnem-se corpos sendo
aviltados por demônios similares aos dos bestiários mediáveis. Porém, diante de
uma caldeira onde fervem homens – possivelmente falsos religiosos, devido o corte
de cabelo franciscano – está o diabo representado como um índio brasileiro
tendo como coroa um cocar de penas. A tangência mais evidente entre inferno e a
América são as prática antropofágicas: o inferno é sempre local para devorar ou
ser devorado. Mesmo no Grande Sertão:
Veredas há essa relação. O personagem Riobaldo fala: Quem tem mais dose de demo dentro de si é índio, qualquer raça de
bugre (ROSA, 2001, p.38).
Dentre
as inúmeras leituras acerca da antropofagia, interessa aqui pensar na operação
desistência de si implicada na incorporação do outro. Muito se pensa na
ingestão do inimigo sacro pelo desejo de aumento das forças, mas é interessante
pensar que as forças do antropófago não podem ser a reafirmação do mesmo, já
que a força pela incorporação do outro implica,
de algum modo, em desistir da consistência de si. Finazzi-Agrò (1991) afirma
ainda que a relação com a alteridade é o resultado de uma queda ou de um recuo
- é, em suma, a renúncia à coerência e à univocidade do que é Idêntico. Para
chegar ao Outro seria indispensável uma forma de desistência: desistir como um de-existir, um posicionar-se de outro modo na existência. Envolveria a criação
de porosidade na fronteira que separa o próprio do impróprio, o mesmo do outro;
e, só colocando-se nessa condição de permeabilidade, desistir poderia ser resistir. Fazendo conviver identidade e diferença se
poderia produzir uma espécie de ultrapassagem na qual a borda que divide o
lugar do conhecido do mesmo e a terra incógnita do outro se faz local de encontros profícuos. Nesse sentido, ter mais dose de demo em si pode ser pensado como: ter mais dose do
outro em si.
Da minha dissertação, Travessias praticadas: a viagem como ensaio, que pode ser lida aqui.