Os
grandes óculos de grau, sem eles, a nudez. Engraçado me sentir carnal por
estar com o rosto despido, como se estivesse cometendo o maior dos impudores.
Míope e vulgar, poucas combinações são mais providenciais. Tomada dessa estranha
luxúria eu saía correndo, desviando da chuva, demorando um segundo embaixo
das marquises tomando fôlego para outro mergulho na rua-correnteza. Um
vira-lata começou a correr atrás de mim, abanando o rabo molhado. Importava chegar a tempo para vê-lo e o eclipse nos seus olhos. A cada mil anos o sol se escondia atrás dos olhos dele e ele sentia minha falta,
por coincidência, nesse exato dia ele estava a dois quarteirões daqui. Se
cansaria de me esperar e voltaria de táxi para a Ilha do Governador? Não, espera,
deixa eu sentir de novo o toque das tuas mãos, uma sobre a outra, enquanto eu
coloco a minha, clandestina, entre elas. Não vai embora sem soprar teu silêncio
de montanha antiga em mim. Ele dança com a leveza da chuva que me atrasa e
persiste, em cada lugar por onde passou, como a memória de uma cidade em ruínas. Eu era Pompeia coberta de pó e lava depois da sua passagem. Fazia
apenas um mês que eu o conhecia, mas o tempo já se desdobrava confuso, entre
atrasos e aléns. Eu corria, mais feliz que o vira-lata que tinha acabado de me
adotar. Estremecia de frio, de alegria, de saudade e de uma insuflada liberdade. Calma, só mais
cinco minutos e eu já to aí, molhada como o cãozinho que me segue, só que menos
altiva. Todo vira-lata é altivo, porque é rei da sua vadiagem. E eu só sou uma
mulher míope molhada correndo. E nada parecia mais honesto que correr na chuva
atrás dele que eu conhecia como se conhece o escuro, que é sempre o mesmo, e que
compactua com todos os espantos. Ontem li no Livro de Hidelgarda uma menção à
noção aristotélica do ser-em-ato, a enteléquia, ser-sendo, ser-correndo-na-chuva.
Aristotélica, nadadora, vadia e ofegante, assim cheguei até você.
terça-feira, 27 de agosto de 2013
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Tempo de bala
Um escuro que escapa pelos dedos. Dentro de mim, esse rumor,
inquietude pelas frestas, o ar suspenso em frágeis fundações. Leio o livro de Hildegarda,
um apócrifo que só eu conheço e tenho em mãos. Ela fala sobre o amor dos homens,
sobre o abraço à terra e essa náusea que nos acompanha diante do obscuro de nós
mesmos. Faz sete dias que me vejo sozinha em casa. Mateus saiu e não mandou
recado qualquer. Não sinto desespero ou revolta, mas experimento uma sensação
de vazio que desconhecia. Mateus já foi o nome dos meus dias e o preenchimento
dos sulcos de cada manhã. Agora o céu é branco, o chão da casa acumula fina
camada de pó, as portas se debatem junto a mim. Tomo banhos demorados, deixo a
pele enrugar, experimento os calores e os gelados de cada superfície com meu
corpo nu. Estendida sobre a mesa de jantar, olhando o teto como quem se deixaria
tragar por uma noite iluminada. Faz sete dias que a casa parece ter uma
vida própria, toda vez que busco organizá-la algum caos se revela em formação.
Tempestades domésticas se anunciam, qualquer gaveta é o olho do furacão. Por
vezes vou até a rua e fico dando voltas em torno do prédio. A calma é sentir o
chão sob os pés, a dor é não haver ninguém que possa compreender minha deriva
circular. Estou sozinha e isso me enlouquece e me enche de desconhecido
ânimo. Meu corpo se estende e encolhe
sem que eu queira, tem vida própria. Caminha com as pernas mínimas, repousa com
imensos braços e um peito denso, repleto de palpitações. E meus olhos se
estreitam diante da luz, enquanto minha boca dilata de sede e de tanto silêncio
retido. No tempo de Mateus, meu corpo era moldado para ser o avesso do dele e
nos encaixávamos durante o dia todo. Mateus em silêncio e eu solta numa maré de
palavras, depois Mateus de pé e eu ao rés do chão. Ele quieto e eu eufórica,
ele cuidando da terra e eu trocando a lâmpada, ele querendo a salvação e eu me perdendo a cada instante. Todos nossos contraditórios eram os passos de uma dança. Meu pé na
direção das pernas dele e ele dando um passo atrás. Agora Mateus está longe do
meu conhecimento e eu mais próxima que nunca da minha própria atenção. O
próximo passo é aprender a inventá-lo só.
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