segunda-feira, 30 de abril de 2012


" Começo a vislumbrar um sentido nesta sentença misteriosa: “Não resistais ao mal”.

As fogueiras arderam em bruxas e feiticeiras. De certo modo acertaram. Não é um macho o demônio, olhos e riso dele são mulher, um travestido, o pai da mentira. A virgem-demônio, não.  Sinto a misericórdia dele sobre mim, sua santidade, seu perpétuo socorro. Eu sou o anticristo, o homem sem pênis contra o céu. Quero excentrar-me, descansar como quando o Teo me beijou e não havia como separar em mim o que era corpo do que era alma. Disse quero excentrar-me, poderia ter dito valendo o mesmo: quero centrar-me.

Deus é inconsciente. A consciência d’Ele sou eu.

Depois que todos dormissem, o Adalberto da Têxtil viria arranhar feito um gato a janela do meu quarto e eu iria abrir só um pouquinho e ele falaria coisas comigo e proporia outras, com uma voz irreproduzível, de tanto desejo, e eu iria negar-me como Santa Maria Goretti. Ele me tocaria de leve, demoradamente, ou forte e rápido, numa mistura de perversão e respeito. Sairia noite afora, suspirando por mim, e eu passaria a noite em claro, suspirando por ele.

O que me fada é a poesia. Alguém já chamou Deus por este nome? Pois chamo eu que não sou hierática nem profética e temo descobrir a via alucinante: o modo poético de salvação.

A guerra é feia, porém charmosa, e é aí que me estrepo, tomada de aflição por gostar de uma coisa pela qual não sinto o menor amor.

Pai que estais no céu e dentro do meu coração, inclinai Vossos ouvidos para o meu sofrimento e tende misericórdia de mim que tenho casa de cimento e vidro e não posso dormir no campo sob um manto de estrelas. Coisa dolorosa feita de barro e poeira, o homem no seu quarto, de noite, pelejando para escrever no papel, com lápis, nó e tropeço a dor do seu peito. É que nada apazigua, Deus me deixa sofrer.

Amar sem fazer jejum. Ter licença de abrir o coração pra quem eu quiser. Abrir o coração, bem explicado: amar sem jejum de sentimento. Isto implica o esforço natural e necessário de conseguir e manter o amor: um decotezinho mais brejeiro, batom Anaconda de brilho, um puxadinho de nada a lápis de crayon no cantinho dos olhos, fazer aquela cara que eu sei fazer, pondo minha alma todinha num certo modo de baixar e levantar os olhos, primeiro oblíquo e depois direito.

Você, que me escuta e tem o coração maldoso, ri pra dentro pensando que sou fácil. Não sou. Eu sou muito pedregosa, caçadeira de chifre na cabeça de cavalo, caçadeira de indaca. Em vez de casar e cuidar dos filhos, pôr espinafre moído na sopa deles pra eles ficarem fortes, pregar com linha dupla os botões na camisa do meu homem, eu fico teologando em latim, fico querendo um Romeu constantemente na minha janela, falando e tocando violão pra mim como se eu fosse a única mulher desta terra e a mais bonita, sem a qual homem algum pode viver.

Eu, querido pai, quero um vestido feito com as águas do mar e os peixinhos nadando, quero um vestido de noite com as estrelas e a lua, um vestido tão belíssimo que choro choro e choro porque o vestido existe e eu não tenho ele. Ou este, ou um vestido de saco de farinha de trigo.

Gosto de ir até o fundo da cisterna e revirar o lodo, tirar ele com a mão, me emporcalhar bastante, só pra depois ver a água minando clarinha de novo. Gosto da cesta sobre a mesa com mamões e bananas, gosto de lavar o filtro todo sábado, encher as talhas com água nova, gosto. Gosto, mas exaspero-me esquecida dos dons, e parto, como hoje, o pão, sem reparti-lo. É verdade que sou uma mulher inscrita no seu ciclo. Mas já dura demais. Quero é neste dia mesmo, prenhe do meu mênstruo não vazado, escutar dos meus: esta é minha mãe, não vá agora, minha mulher vai fazer um café.

Envelheço feio, diferente de companheira minha a quem admiro e invejo. Ela, quando é o caso, telefona desmarcando devido a estar com os dentes na oficina e vai tranquila fazer tricô, enquanto espera, digna esposa e mãe, breve futura sogra e avó. Eu não, vez em quando perco a capacidade de figurar exato minha imagem e cometo as sandices: corto o cabelinho, depois me dá vontade de amarrar o cabelinho, cadê o cabelinho pra amarrar? Não falta quem me dê conselho, minha irmã bem me avisou: não faz permanente, Gerontília, você não vai aguentar permanente e fossa. Pois fui e fiz e enfossei e lancei olhar de amor pra arma de fogo e faca, num ódio dos meus cachos mecânicos.

Dor é vontade de ser.

Queria os medos antigos, de eletricidade, de cobra, de defunto, não os de agora, sem eira nem beira.

Como eu ia dizendo, homem é fraco e mulher é forte, fortíssima. Move os dedos do pé, ele diz: meu amor. Move os lábios, ele diz: casa comigo. Move o que está fadado a mover-se, ele diz: pede o que quiseres. Se a gente for doida, pede a cabeça de São João Batista numa bandeja de prata. Se for santa, não pede nada e vai transformando o mundo devagarinho, passando trator, destocando, arando, semeando. Depois haja celeiro, haja lugar pra tanta flor e fruto. Mesmo se nunca mais eu escrever um verso, como eu desejo com todas as minhas forças, eu vou morrer satisfeita. Meu corpo parece um terreno – eu, quero dizer.

Américo, eu te amo, Américo. Você tem uma loja de tecidos e uma mulher que você vive querendo não enganar, um filho tão bonitinho, Américo, as mãos macias de medir tecido, de apalpar meu pescoço com intenções de quem vai assassinar. Você é um colosso, Américo, tem tudo pra me agradar. Sua inteligência sem escolas é tão ignorante que eu me arrepio dos seus mundos novos.

Antigamente, se um homem falasse errado, descartava na hora. Hoje, não. Quero vinho de todos os barris."

trechos de O Homem da Mão Seca, Solte os cachorros e Filandras de Adélia Prado.

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