quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Nada sólido, nenhuma morna permanência. Dias cheios de desmoronar, esbarrar, esperar, à noite deitar ao teu lado, amor sem rosto, te criar. Teorizar sob a chuva fina, embriagada de mim mesma, da vida sutilíssima e de bebida quente. Seminários sonolentos, compreensões contraditórias, lampejo. O céu ameaça, range. Medovontade de te encontrar, mostrar a ti a marca que deixaste em mim, tão perfeita, tão simétrica. Brancos jejuns, noites de amnésia, carinho dolorido de tão súbito. Não me dedico a importâncias, não quero nenhuma elevação, quero um corpo anão, terreno, simples, quero que pules desse prédio em chamas. Fico calma, contemplando teus desastres, teu cansaço. Meu quarto inteiro me confunde, empilho livros, componho elaborados diagramas, estratagemas, planos de ataque. Não me desfaço de nada, dizem que onde há perigo cresce também a salvação. Mas eu não quero ser salva, quero um milagre inútil, acordar de repente sobre Quéopes e voltar a sonhar. Violo correspondências, pretendo descobrir algum mistério, alguma secreta quantidade. Quero aprender teu nome, amor perdido. Por enquanto, sou volátil e lítica. Permaneço na inconstância, fixo-me em velocidades, indecifráveis perfis. Sagrado amor ao fardo, sagrada trivialidade do tesouro.


formigamento

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

hagiografia

pensava a anatomia dos nós. esquecia de vestir meias finas, esquecia de incorporar a virtude do inimigo. gritava feito pedra. seu corpo era uma fortaleza em tempos de paz. uma armadura cheia de brechas, sua roupa de dormir. interessava-a um fervoroso descaso, mas ardia em tédio, em vigílias dóceis e sonhos cheios de vergonha dos quais se lavava logo de manhã. queria ser graciosa, mal educada, repetente e intocada. se doava ingenuamente e depois perversamente. repleta de bom senso, bom gosto, tinha olhos de animal preso em armadilha. orava: Altíssimo, me concede a inconstância de uma alma bruta, me concede o dom do improviso e a extrema graça da rasura.

domingo, 5 de setembro de 2010

delírio tátil
nossos corpos fracos
pele sem bondade
puro jogo de ausências
vontade de ir para casa achar que tudo dói
acreditar na liberdade de um exílio
te desejar segura de que não tentarias me salvar
e trocar calor como quem troca confidências
sem ter nada dizer
assim como
o segredo de um mar

é sua transparência

terça-feira, 31 de agosto de 2010

"Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias
Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante na fila em frente no cinema...
As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na
madrugada feita de binóculos da gávea
e chuverinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano."
Ana C.


Teu vulto, da cintura para baixo, ofuscado por uma janela
Então és insosso, anônimo e não sabes me fazer chorar
Brincas com os dedos de outra mão e eu perco a fome
Ensaio diante do espelho uma fala extrema
E meu segredo dança com superfícies falhas
Durmo pouco
Daqui a alguns anos lembrarei das noites insones com uma ternura gasta
Nada me interessa que não esse instante inerte
Não me acorda do pesadelo de te ver morrer
Teu beijo morno de bom-dia não será melhor que meu sonho mais escuro
Formulo um plano sem falhas de desejar as coisas ao contrário
para que essa atenção profunda que dedico a mim não se torne o mais banal dos meus cansaços
Brinco de solidão ao meio-dia, simulo calma e despudor
Caço tesouros, no escuro, com gigantes
Vou abraçar a mulher que você ama e dançar com ela passinhos de um dois três
passar a mão em seus cabelos doces e inventar um bigode falso pro meu rosto
É só isso que eu quero
Vou falhar em um suicídio cômico e serei oportuna para todos
Meu consolo é esse rosto monstruoso que carrego no pescoço e ninguém vê

domingo, 22 de agosto de 2010

gentil, sucinta, pedras vulcânicas sobre um criado-mudo
todo dia, pressinto uma verdade, depois lavo os cabelos, produzo espuma, repito o enxague
corto os pés enquanto danço, corto as unhas muito curtas, corto o frágil fio das coincidências entre nós
leio Augusto dos Anjos, extraio um siso, sinto um desejo longo e burro
choro sem controle antes do jantar, pergunto as horas, cometo um crime
pequeno acidente geométrico, minha imagem refletida, meu cansaço
carne plana, desordem bidimensional
acredito na teoria lamarckiana, rasgo papeis, não me reconheço em meus impulsos
faço uma prece, afio as armas, improviso uma conquista
sinto minhas mãos, não sinto mais
penso no teu rosto, numerosas vezes, com delicada força