A Pele de Vênus é um filme de Polanski baseado no romance de Sacher-Masoch intitulado A Vênus das Peles, clássico a partir do qual foi cunhado o termo masoquismo. É interessante lembrar que o masoquismo de Masoch diz respeito ao desejo de submissão de um homem a uma mulher, indo na contramão do imaginário da pornografia contemporânea na qual, via de regra, a mulher é submetida.
No filme de Polanski, Thomas é um diretor de teatro que está fazendo audições para uma adaptação do texto de Masoch e está tendo dificuldade em encontrar a atriz ideal. Vanda é uma atriz que chega atrasada para o teste e, num primeiro momento, desagrada o diretor em tudo. Seja como for, a atriz consegue convencê-lo a testá-la e, como não há mais atores presentes, ele próprio faz o papel de Severin, aquele que em A Vênus das Peles deseja se submeter à Wanda ( notadamente quase homônima à inquietante atriz).
O filme se desenrola de forma que o talento em atuação de Vanda vai se revelando surpreendente a cada momento. Vanda não apenas decorou todas as falas, como tem ideias perspicazes no que diz respeito à iluminação e cenografia, além de se mostrar bastante versada no teatro clássico, citando as Bacantes de Eurípedes com precisão. Aos poucos vamos assistindo Thomas se perturbar com o talento e a presença de Vanda, que de inapropriada passa a sedutora e intrigante. Um dos pontos interessantes do filme é como a leitura da peça vai se misturando com a relação que está sendo forjada entre a atriz e o diretor, mistura que chega a seu ápice no final do filme quando Thomas está totalmente rendido à Vanda realizando todos os estranhos pedidos que ela o faz.
Entretanto, no meu ponto de vista, a questão do Polanski não é apenas as tangências e as sobreposições entre atuação e realidade e muito menos uma simples crítica ao machismo presente no texto de Masoch. A última cena do filme é reveladora, pois Vanda não se se satisfaz em ver o diretor rendido às suas ordens, ela decide amarrá-lo em um objeto cenográfico em formato de falo e se transforma em uma Bacante, tomada de energia dionisíaca, dança e enloquece diante do homem antes de deixá-lo preso ao imenso falo. Não me parecem também gratuitos os planos de entrada e saída do teatro, nos quais a fachada é bem exibida e exaltada.
O teatro é a arena de Dionísio, Deus não apenas da embriaguez, da loucura e do hedonismo, mas também da multiplicidade e dos semblantes. Se consultarmos a obra de Eurípides citada por Vanda, leremos uma história na qual Dionísio quer matar o rei Penteu por este não acreditar em sua origem divina e por não permitir que seu culto fosse prestado. Para realizar sua vingança, o Deus precisa contar com as mulheres - as Bacantes - e também com a curiosidade de Penteu acerca das práticas dessas mênades. Enquanto as Bacantes estão no monte Citéron realizando feitos especialmente incríveis, como colocar serpentes em seus cabelos para reverenciar o Deus, amamentar gazelas e lobos selvagens e fazer vinho, leite e água brotar do solo, Dionísio, travestido de pastor estrangeiro, aconselha Penteu a vestir-se como uma mulher e ir ao Citéron. O rei chega próximo às Bacantes e sobe em uma árvore para poder testemunhar os seus feitos e então Dionísio grita às suas devotas, apontando-lhes o homem no topo da árvore. Em êxtase, as Bacantes arrancam Penteu da árvore e rasgam seu corpo em pedaços.
Polanski sabe que a encenação tem relação com as forças dionisíacas e que tais forças nada tem a ver com as essências ou com a crença absoluta na consistência fálica. O papel da dominadora falicizada, que obedece a um contrato que firma posições fixas, não interessa à Vanda, uma mulher que prefere a violência das Bacantes: essa que não requer as insígnias fálicas e que dá a ver a própria precariedade do que se acredita absoluto e assegurado. Vanda acredita nos semblantes, no êxtase e na multiplicidade como uma potência mais perigosa do que as coladas ao reforço das posições mestre-serviçal.
Assim, penso que Polanski não apenas faz uma crítica à inconsistência do pensamento machista como também à noção de que a solução ao machismo seria uma redistribuição pretensamente justa das insígnias fálicas ou uma ontologia do feminino que lhe desse consistência a partir dos significantes de "dominadora" ou "mestre". Polanski parece apostar nessa força não-toda fálica que sabota as crenças totalizantes e celebra o descontrole, a surpresa e a fúria desejante. Não se trata de transformar Vanda em uma "musa sádica" ou exaltá-la por via idealizada qualquer, trata-se justamente de positivar o feminino por sua resistente indefinição e sua afinidade com o jogo dos semblantes. Acredito cada vez mais na sabotagem do feminino ideal (seja qual for o ideal) como uma prática ética que assegura a dignidade da alteridade e acredito que A Pele de Vênus vai nessa direção apostando que a alternativa à violência contra o feminino é uma violência do feminino: essa que se ancora na diferença e tem como inimigo as forças idealizantes.