Mas
dizei-me, irmãos,
que pode fazer a criança que nem o leão pode fazer?
(Assim
Falava Zarastustra, Nietzsche)
A infância comparece
na pintura de Marcela Cantuária menos como um tema e mais como uma materialidade
inquietante. Corpos infantis são figurados em situações insólitas que não
incitam à narrativa, ao encadeamento causal ou à qualquer simbologia decifrável,
sendo antes figurações do próprio mistério da presença. Na pintura de Marcela
recorrem corpos infantis que performam gestos herméticos, banais ou misteriosos;
mas sempre carregados de um teor de estranheza, no limiar entre o doméstico e o
onírico, o provável e o possível, o próprio e o impróprio.
Hannah Arendt, no seu texto A Condição Humana, apontou a infância como o campo dos nascimentos e, portanto, como aquilo que salvaguarda a
renovação do mundo e a descontinuidade do tempo. Para a filósofa, um nascimento
é sempre o aparecimento de uma novidade radical: tudo que nasce carrega a
potência de colocar o mundo em questão . Assim, para além de leituras que
relacionam o infantil à pureza e à ingenuidade; na leitura de Arendt, a criança
é essa que irrompe no mundo e produz inquietude a partir da novidade que há em sua existência súbita.
Os corpos criados pela artista
apresentam a infância como uma anti-essência, contrária à aposta na infância
como uma tábula-rasa ou um estado mais aproximado à natureza edêmica, aqui o
infantil se dá como a intensificação dos possíveis, matéria geradora de
presenças imprevisíveis e não totalmente controláveis. A infância como o avesso
da essência coloca em cena a possibilidade de uma origem que fosse pura
intempestividade, o acontecimento em sua face mais radical. A criança, ao levar
a linguagem e o corpo a estados-limite, põe a existência em perspectiva, lançando-a
para além do dogma e dos sentidos absolutos. Hannah Arendt já falava do
nascimento como o acontecimento anacrônico por excelência, sendo aquilo que
fragiliza as causas e efeitos e o que insere na história o elemento do imprevisível,
ou ainda: como o elemento caótico que vem reiventar ao cosmos.
Amazonita
Os gregos antigos utilizam o termos kosmos como uma espécie de sinônimo para
ordem; atualmente, entretanto, o vocábulo adquiriu uma proximidade à noção de
mundo. Havia também um verbo derivado de kosmos,
o kosmein, mais aproximado às noções
de adornar, enfeitar, o que terminou produzindo o termo cosmética. Existe, portanto, nesse caminho etimológico a indicação
de um parentesco entre ordem e artifício, ou entre mundo e invenção. Essas
relações também são colocadas em cena na obra de Marcela, pois a artista se
engaja na invenção de um mundo estruturado sobre potências caóticas e
cosméticas.
Os
corpos infantis, suas práticas indecifráveis e suas economias existenciais
dispendiosas são por vezes figurados em paisagens densas. Manchas espessas em
tons de verde, preto e azul ambientam esses corpos em florestas onde folhas e
galhos são apenas sugeridos pela paleta cromática e se condensam em uma
materialidade consistente, que é menos a floresta dos exotismos e das taxonomias
e mais a floresta como uma atmosfera, pele rugosa e consistente do mundo. Em
outros momentos os corpos aparecem em um ambiente lamacento, estão mergulhados
na lama ou apresentam suas peles revestidas de terra úmida. A lama, aqui, é a
intensificação dessa materialidade informe, elemento sem contornos nem limites,
mas com alto potencial de formar e constituir.
Na
mitologia Iorubá conta-se que a Orixá Nanã, Senhora da lama, entra em conflito
Ogum, o Senhor do ferro; e, para desafiá-lo, decide mostrar que é possível
construir o mundo sem usar a lâmina, apenas o barro. Nanã assim demonstra que é
possível inventar sem excluir, que é possível criar pela transmutação do
informe. Esse mito pode ser aproximado à narrativa das Três Metamorfoses do Espírito escrita por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra. Nesse texto,
Nietzsche na voz de Zaratustra aponta um caminho de transformações pelo qual um
espírito humano deveria passar: da servidão do camelo à combatividade do leão
e, por fim, da negação combativa do leão à aceitação desejante da criança. O
leão é o sagrado direito de dizer não – a força do corte, mas a criança e o
sagrado dizer sim – a força da transformação. Escreve Nietzsche: para brincar o brinquedo dos criadores é
necessário ser uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade; tendo
perdido o mundo, quer ganhar para si o seu mundo. Essas narrativas colocam
em cena a ideia da criação do mundo a partir das potências da lama e da
criança, potências dos corpos moles.
Caboclinho d´água
O
corpo infantil perturba porque sua materialidade opera na lógica da
transformação e da anti-fixidez. A cabeça de um bebê tem uma parte que se chama
moleira, que é uma região do crânio que ainda está aberta. Tem dentes de leite,
provisórios, e passa pela experiência de perder todos eles para sentir os
permanentes nascendo novamente. Seu corpo se transforma rapidamente e o
significante da moleza, em dentes moles e moleira, é isso que garante a potência
variável do corpo infantil. Se um corpo
adulto é estruturado e se percebe como “formado”, o corpo da criança carrega
esse teor do informe, daquilo que não cessa de se transformar. Nesse aspecto,
lama e infância se tocam como portadoras dessa materialidade inquietante porque
ao mesmo tempo desestruturadas e carregadas da potência estruturante e é como
uma investigação em torno dessa matéria que
parte da produção de Marcela Cantuária se dá. A
singularidade das investigações pictóricas da artista passa por uma
desconstrução das estruturas que não
visa à iconoclastia ou à nadificação do ser e sim à criação de um mundo feito
de caos que se elabora com a engenhosidade de um cosmos. Aqui, anti-estrutura
não é o que resvala no impossível, mas no espanto, no maravilhamento e no
estranhamento dos infinitamente possíveis.
Na
pintura Lembrança de mil anos, um corpo feminino surge entre folhagens com o
rosto coberto de argila. Poderia ser uma cena de um imaginário ancestral caso a
mulher não estivesse com alcinhas verdes sobre os ombros e duas pequenas
fileiras de azulejos não aparecessem no canto da pintura. Não se pode definir
se a mulher tem um jardim dentro de casa ou se azulejou uma paisagem externa, o
doméstico e o natural são aqui potências
indistintas. A lama sobre o rosto aponta aos domínios do cosmos como uma
prática cosmética: do mais ancestral o excessivo, do fundamental o artificial.
A lembrança de mil anos figurada pela artista não tem nada a ver com a
ancestralidade como teatro das essências, mas com a rememoração de uma origem
que é, desde sempre, matéria da invenção.
No
Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade propõe uma espécie de transmutação
do espírito desejável à ética antropofágica, diz ele: da equação eu parte
do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Na matemática, a
equação é aquilo que visa produzir uma prova; já na lógica, o axioma é uma
proposição que não é provada, sendo considerada óbvia ou consensual. Nesse sentido, o que é reivindicado no
manifesto é um deslocamento do provar-se parte do mundo para o reconhecimento
de que o cosmos é o que constitui tudo que há. Do pensar para existir ao
existir para reinventar a existência, porque, conforme nos ensinam as pinturas
de Marcela, o cosmos é aquilo que não cessa de recusar a se formar e tampouco de convidar a
ser inventado.
Lembrança de mil anos
Mais sobre o trabalho da Marcela Cantuária pode ser visto aqui: http://marcelacantuaria.tumblr.com/