- Contornarei a solidez das coisas com a luz de uma tontura. Desconfiarei dos espelhos polidos. Serei tragada pelas grandes alturas, os rostos enfurecidos, os lábios silentes de corpos que brilham. Dançarei no mormaço dos dias quentes quando já nem se respira. O sol me queimará sem bondade e o torpor será outro nome para a vontade de romper a pele. O asfalto flutuará no delírio da quentura e nessa hora estarei com os dois pés bem fincados no chão.
- Darei as mãos aos espaços escuros, aos corpos
frágeis, às ideias traidoras. O cogito
derreterá diante dessa leveza furiosa que preenche a noite. Deitarei ao
lado do homem que mora na esquina. Beberei da sua aguardente. Falaremos tête-à-tête com o céu. O movimento das nuvens obedecerá minhas retinas. Quando eu
fechar os olhos, o sol sumirá e todos se abraçarão de medo, amor e mudez. Um imenso silêncio se fará enquanto diversas
mãos se procurarão no escuro já a um passo do naufrágio. Trovoadas dentro do
meu peito ecoarão.
- Operarei misteriosamente com a verdade. Deixarei que caiam
os edifícios de pedra, as cercas de arame, os monumentos constantes. Erguerei
tendas, altares provisórios. O instante será o nome bendito do tempo e o coração da eternidade baterá mais lento nas minhas mãos.
- Farei perguntas às
raízes, deixarei que meus olhos se tinjam de sol. Oferecerei o rosto ao apetite
da terra e minha boca à umidade infalível do chão. Feras virão banquetear
comigo. Eu beijarei o corpo das aves, confundirei dedos e penas, pernas e asas,
nuvens carregadas e a pele ardente, temporal e sono quieto.
- Quebrarei copos, observarei astros a olho nu, mostrarei
mais da minha pele.
- Olharei avidamente as curvas do corpo da dúvida. Passarei
os dedos em seus cabelos indomados. Beijarei sua boca quente. Lavarei seus pés.
- Repousarei no mínimo,
celebrarei o escasso, festejarei o nada. A fome será minha fartura, a sede, um
deleite. Meu cansaço será também um
ânimo. Mas o juízo, este eu perderei.
- Descerei à altura dos apetites brutos, como quem se abaixa
em uma saudação. Pensarei com o ventre porque todo pensamento é mágico.
- Na garganta, as armas estarão a postos.
- Abrirei mais janelas. O fora terá espaço dentro. O abrigo
não será de todo separado da ameaça. A festa será o norte do corpo.
- Celebrarei de dia aquilo que é o noturno, e à noite festejarei os dias. Lerei destinos em
tripas, no céu, na borra do café, nos rostos e nas mãos. Afinal o destino marca
tudo, não deixa nada impune.
- Não domarei o medo, mas tentarei sentar no seu dorso.
- O que me ofende será também o que me nomeia. Não deixarei
de percorrer a contramão. Esconderei tesouros na luz óbvia do meio-dia.
- Serei mansa e amarei os que me cercam, mas conspirarei até
o fim.