segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Bilhete para Adília Lopes


“Ah uma mão que me puxasse 
para o escuro”

Quem me dera ser um corpo solto no espaço, dançando vestida de incêndio, sem jeito,  mas apetitosa feito uma mulher num quadro de Rubens ( encrespada como se houvesse um naufrágio branco em cada pé).  Em vez de tormentas, me sobram bolores que  catalogo sobre a pele. Pratico vilanias  encenadas . Durante o dia, transtorno catalogações bibliográficas, apenas os  números e os nomes me  importam, nenhuma relação de antemão. Nenhuma exegese nas estantes.  O papel é um pão para a alma, superfície imaculada, sem remendos. 

É preciso ser doida para sacrificar a  página. Deslizo pela biblioteca à tarde e  o acontecimento é um incômodo.  A parte visível do iceberg é sempre a mais misteriosa. Para ocupar as noites,  escrevo com ossos e olhos e também vivo como  escrevo. A morte é um enfado, por isso prefiro viver. Se nada mais me anima, me consola que o bordel  está sempre lá, é um vigor. O amor mais cristalino do mundo deve estar enterrado em uma casa dessas,  feito a ervilha debaixo dos mil lençóis. Mas evito a zona porque sofro de trágicas constipações. Quando estou mal-humorada,  zombo do leitor, deixo que o tesouro escape e a inspiração me corta a  língua. Adormeço entre seres que roçam a barriga no chão. Cobras, lagartos, baratas.

Sofro humilhações ortográficas e administro doses não letais de desgosto. E vou do café da manhã à mais intensa paixão, esfrego os olhos até cair no insincero choro. E meu amado me esquece como quem esquece um guarda-chuva,  muito delicadamente. Para fazer das tripas coração é preciso: devorar qualquer semelhança, mesmo as siamesas. Ser mais quente que uma torradeira, pelar o fogo. Fazer comercio com as profundezas. Praticar homicídios que remoçam. Saber gerir os tempos. Ter a desordenada víscera como o centro, e o tumulto como um pulso acelerado. 

segunda-feira, 15 de setembro de 2014



Não era pelos olhos que lembravam um mar antigo, cheio da promessa de vida misteriosa estalando na pele prateada dos bichos insones. Também não era pelas pernas fina e longas, corpo de adaga oriental, cheia de sensual assimetria e os sons estranhos de uma estepe esquecida ecoando em seus recuos. Tampouco pela língua que rangia contra os dentes finos, proferindo as palavras mais simples do léxico, pegando os objetos pelas pernas, voz com textura de chão. 

Era sim pelo vento frio que carcomia seu rosto avermelhado em junho, pelos caracóis que matou suavemente com os dedos dos pés no jardim de infância, pelo amor dolorido ao cão de pelo negro que teve até os dezenove e que um dia fugiu. Era, sobretudo, pela devoção aos trabalhos noturnos: catar o lixo, sonhar, manchar o branco imaculado das toalhas com o preto dos olhos. Pelo manejo dos restos diurnos com elegância desvairada, o passo em linha torta, a cadência dos membros cansados. Era pela silenciosa compreensão da vida, pela aceitação corajosa de tudo que não podia tocar, pelo corpo simples e sem grandes cosméticas, porque lhe convinha as orelhas nuas, a boca crua, os cabelos suavemente impróprios. 

Era importante  que soubesse que nunca foi pelo seu rosto de angulações raras, pelos seus dedos finos, pelos panos orientais que lhe cobriam peito e ventre. Que sempre foi pelo tesouro que enxergava em cada erro, pelas ingênuas esculturas que fazia com caixas de feira abandonadas, pelas noites que passava com o coração explodindo no peito, pela alegria sem sentido, por sua imensa afinidade com a terra, pelo seu jeito de dançar sem jeito, porque sempre foi onde ela esquecia de ser que eu podia vê-la, onde ela suavizava os contornos e afrouxava a afirmação de que estava lá é que se fazia rara. Onde mostrava que era pura falha leve podia-se ver que reluzia.