sexta-feira, 27 de junho de 2014

Notas sobre Nymphomaniac - parte II

Na segunda parte do filme Nymphomanic, Joe inicia sua narrativa se dizendo sexualmente insensível e recorre a uma experiência da infância para falar de sua primeira relação com o gozo. Em uma expedição às montanhas, tem uma experiência de flutuação na qual recebe a visão de duas mulheres: Messalina e a Grande Prostituta da Babilônia. Junto desta visão tem um orgasmo espontâneo.


Há algo de místico nesta experiência de gozo,  algo que transborda a anatomia e a linguagem. Lacan diria que há em Joe, como alguém que se posiciona no lado feminino, a possibilidade de um gozo não-fálico, de um gozo Outro. Convém lembrar que, para Lacan, o falo não é nada que se possa localizar no corpo, mas algo que nos inscreve no simbólico. Assim, dizer que há um gozo Outro – não-fálico – é admitir a possibilidade de uma realização pulsional que não se organiza no sentido, que escapa à medida simbólica. Fui à Bíblia ler sobre a Grande Prostituta da Babilônia, encontrei esta descrição:

E a mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada com ouro, e pedras preciosas e pérolas; e tinha na sua mão um cálice de ouro cheio das abominações e da imundícia da sua fornicação. E na sua testa estava escrito o nome: Mistério, a grande babilônia, a mãe das prostituições e abominações da terra. (Apocalipse 17, 4-5)

Da Grande Prostitua, portanto, sabe-se que tem relação com o sexo, com a imundice e que em sua testa há um significante: o do mistério. Assim como Messalina, trata-se de uma mulher mítica que encarna a potência infame. Como as mulheres de sua visão, Joe também se vê como uma criatura absolutamente infame.  Lacan, em seu projeto teórico, dignifica essa infâmia como aquilo que faz enigma à lógica fálica, à lógica da castração, já que ao feminino haveria a possibilidade de operar não-totalmente nesta lógica. .

Dessa primeira cena do filme passo imediatamente para a última: Joe dá um tiro em Siegfried. O simpático e assexuado senhor, que durante todo o filme detém o saber e concede sentido  às narrativas de Joe, sucumbe a um desmedido desejo e tenta fazer sexo com ela, sendo que Joe não concede e atira nele. O fato de Siegfried se dizer assexuado, um homem das letras, regido pela lógica é como se ele dissesse: sou  um sujeito erguido pelo pensamento e não-clivado pelo sexo, não barrado pelo desejo. Acontece de Lars Von Trier nos sugerir que o sentido nunca pode dar conta da existência.




Em suas sessões com K., Joe goza roçando-se em um livro. Essa imagem me parece fundamental: ali, onde não há “palavra de segurança”, existe a possibilidade de gozar. Ou seja, não reside na experiência do saber a possibilidade de ultrapassar a si próprio, de se surpreender com o mais íntimo. É no inseguro que se goza, é  na desmesura e não no sentido, é no corpo e não na palavra,.  


 Já que o sentido não dá conta da existência, a traição insurge como a marca desse real que implode a linguagem.  No filme, a traição recorre nas relações travadas pelos personagens de muitos modos. Me parece, entretanto, que a traição se dá não como a falência de cada um dos encontros, mas como a própria verdade do desejo: a verdade do desejo é trair o sentido. 

"Ninfomania" é uma patologização que tem relação com o excesso: na cultura, o feminino sempre está no lugar do excesso, é aquilo que excede em faltar. Mas o que é mais infame e o que provoca todo tipo de angústia  é que  a mulher não é quantificável.  Fico pensando que muito da obsessão em se fazer concursos de miss, ou eleições de musas, tem a ver com um desejo em quantificar o feminino. Tentam medir quem é mais mulher para apaziguar essa potência infernal do feminino de nunca estar onde promete, mas a medição se apresenta falha a cada vez que se renova a escolha ( A mulher, enfim, não era essa, nem aquela, nem a outra, talvez seja a próxima).  Não ser quantificável – escapar da hegemonia  do simbólico – é o que aponta à possibilidade desse gozo Outro, mas também o que provoca essa estreita e aviltante relação com a infâmia.  

Nymphomanic não é um filme didático, não aponta saídas para os impasses da sexualidade, mas mostra que é próprio do desejo não garantir nada (ainda sustente tudo). Creio que Lars Von Trier exalta a mulher como essa quem pode apontar para a cultura falocêntrica (obcecada por sentido) que o que nos é mais próprio – desejar – nos é mais estranho e que nos cabe a difícil tarefa de nos responsabilizarmos pela alteridade que nos habita. Ainda que não seja um filme com uma moral, Lars Von Trier, ao fim, mata o senhor falastrão assexuado,  o “inocente”, nos dando a ver que caber na medida da própria razão não é, e nunca será, o destino dos falantes. 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

vida forma


“Os fogos dos astros e a aurora boreal estremecem no que é, apesar de tudo, a noite negra.”  Marguerite Yourcenar


Afirmativa sem reservas: amar sem exceção. Era noite e andávamos, eu tropeçava nos teus pés, caíamos com a barriga rente ao chão. E de tudo sobrava um riso, uma espécie de loucura. Depois eram teus dedos que me abraçavam, eu dançava com as tuas mãos. Uma lenta e corrompida valsa com teu indicador, um tango triste com o anelar e um samba sem reparos com o dedo menor. Teus olhos me acompanhavam mudos enquanto eu dizia da minha paixão: que toda existência fosse uma dignidade.  Então tu seguravas meu braço, com feroz delicadeza, desenhava um invisível traço no meu peito e dizia: a vida, minha pobre criança, é muita coisa, mas é principalmente forma. Então eu revirava os olhos, tomava mais um gole, calava, depois repetia sem parar frases difíceis, como a gente vai embora daqui, eu posso dormir onde você mora, que ônibus passa lá, por que é que os céus não desabam, o que é mais importante reter dessa noite, será que dá pra nadar até aquela ilha, como a gente volta para casa, qual o limite do pensamento. O  mar era assombrado de mitos e lavamos nossos corpos com navegações, tormentas, espantos, sereias ardilosas e pequenos peixes prateados.  Te disse que eu queria ser um caleidoscópio, um lago. Isso te fortalece ou  te fragiliza? Perguntavas depois de morrer de rir.  E dedilhavas meus pés: passavas as mãos por cada osso, subias para as canela e depois pulavas direto para as têmporas. Teus ossos são firmes, parecem raízes, parece a estrutura de um templo, um emaranhado de galhos. Falavas. A vida não tem sentido, a essência não perfura, fica rente. E, se não tem sentido, só pode ter forma, semblante, direção.  Viver é desenhar o tempo.  Eu era tomada de alegria lampejante de uma morna compreensão. Me erguia de súbito, dançava de um jeito leve e torto, beijava tua boca com ternura e depois rangia meus dentes nos teus. Entendi que o limite do pensamento só poderia ser esse: amar a humanidade inteira, sem exceções. Mesmo aquele que me mata. Mesmo aquele que fere. O amor pela diferença radical era o limite. Não repetir o gesto que aniquila era o desafio mais apaixonado do meu corpo. Ser apenas aquilo que diz sim: afirmar a vida forma.  Era muito tarde e tínhamos medo de tanta sombria luz. Porque nada daquilo tinha parentesco com a eternidade. Falei que o efêmero doía. Você disse que a eternidade era o outro nome do instante. Que se eu fechasse os olhos ia entender que o mais importante era nascer e morrer com a mesma fúria, o mesmo choro alucinado, a mesma aceitação. O que é aquilo que tu mais amas, perguntei.  Poder recomeçar. Frustrar a encarnação. Mover-se junto dos movimentos do céu.  Ter sede pela ausência de todo nome. Êxtase telúrico.  Mas  tu és a própria terra, eu pegava nos teus ombros.  Para te habitar é preciso estar disposta a morrer em ti. É preciso confiar em tua imprevisível ordem.  De repente, amanheceu, e a luz era uma fera.  Teu som me embalava pela casa. Já quase não te via.  Pra onde vamos?  Te perguntei enquanto seguia com alegria e tropeço na direção oposta ao medo.