Na segunda
parte do filme Nymphomanic, Joe inicia sua narrativa se dizendo sexualmente insensível e recorre a uma
experiência da infância para falar de sua primeira relação com o gozo. Em uma expedição às montanhas, tem uma experiência de flutuação
na qual recebe a visão de duas mulheres: Messalina e a Grande Prostituta da
Babilônia. Junto desta visão tem um orgasmo espontâneo.
Há algo de místico nesta
experiência de gozo, algo que
transborda a anatomia e a linguagem. Lacan diria que há em Joe, como alguém que se posiciona no lado feminino, a
possibilidade de um gozo não-fálico, de um gozo Outro. Convém lembrar que,
para Lacan, o falo não é nada que se possa localizar no corpo, mas algo que nos inscreve no simbólico. Assim, dizer que há um gozo Outro
– não-fálico – é admitir a possibilidade de uma realização pulsional que não se
organiza no sentido, que escapa à medida simbólica. Fui à
Bíblia ler sobre a Grande Prostituta da Babilônia, encontrei esta descrição:
E a mulher estava vestida de púrpura e de
escarlata, e adornada com ouro, e pedras preciosas e pérolas; e tinha na sua
mão um cálice de ouro cheio das abominações e da imundícia da sua fornicação. E
na sua testa estava escrito o nome: Mistério, a grande babilônia, a mãe das
prostituições e abominações da terra. (Apocalipse 17, 4-5)
Da Grande Prostitua, portanto,
sabe-se que tem relação com o sexo, com a imundice e que em sua testa há um
significante: o do mistério. Assim como Messalina, trata-se de uma mulher
mítica que encarna a potência infame.
Como as mulheres de sua visão, Joe também se vê como uma criatura absolutamente
infame. Lacan,
em seu projeto teórico, dignifica essa infâmia como aquilo que faz enigma à
lógica fálica, à lógica da castração, já que ao feminino haveria a possibilidade
de operar não-totalmente nesta lógica. .
Dessa primeira cena do filme
passo imediatamente para a última: Joe dá um tiro em Siegfried. O simpático e
assexuado senhor, que durante todo o filme detém o saber e concede sentido às narrativas de Joe, sucumbe a um desmedido
desejo e tenta fazer sexo com ela, sendo que Joe não concede e atira nele. O fato de
Siegfried se dizer assexuado, um homem das letras, regido pela lógica é como se
ele dissesse: sou um sujeito erguido pelo
pensamento e não-clivado pelo sexo, não barrado pelo desejo. Acontece de Lars
Von Trier nos sugerir que o sentido nunca pode dar conta da existência.
Em suas sessões com K., Joe goza roçando-se em um livro. Essa imagem me parece fundamental: ali, onde não há “palavra de
segurança”, existe a possibilidade de gozar. Ou seja, não reside na experiência
do saber a possibilidade de ultrapassar a si próprio, de se surpreender com o
mais íntimo. É no inseguro que se goza, é na desmesura e não no sentido, é no corpo e não na palavra,.
Já que o sentido não dá conta da existência, a
traição insurge como a marca desse real que implode a linguagem. No filme, a traição recorre nas relações
travadas pelos personagens de muitos modos. Me parece, entretanto, que a traição se dá
não como a falência de cada um dos encontros, mas como a própria verdade do
desejo: a verdade do desejo é trair o sentido.
"Ninfomania" é
uma patologização que tem relação com o excesso: na cultura, o feminino sempre
está no lugar do excesso, é aquilo que excede em faltar. Mas o que é mais
infame e o que provoca todo tipo de angústia é que a mulher não é quantificável. Fico pensando que muito da obsessão em se
fazer concursos de miss, ou eleições de musas, tem a ver com um desejo em
quantificar o feminino. Tentam medir quem é mais mulher para apaziguar essa
potência infernal do feminino de nunca estar onde promete, mas a medição se apresenta falha a cada vez
que se renova a escolha ( A mulher, enfim, não era essa, nem aquela, nem a outra, talvez
seja a próxima). Não ser quantificável –
escapar da hegemonia do simbólico – é o
que aponta à possibilidade desse gozo Outro, mas também o que provoca essa
estreita e aviltante relação com a infâmia.
Nymphomanic não é um filme didático, não
aponta saídas para os impasses da sexualidade, mas mostra que é próprio do
desejo não garantir nada (ainda sustente tudo). Creio que Lars Von Trier exalta a mulher como
essa quem pode apontar para a cultura
falocêntrica (obcecada por sentido) que o que nos é mais próprio – desejar –
nos é mais estranho e que nos cabe a difícil tarefa de nos responsabilizarmos
pela alteridade que nos habita. Ainda que não seja um filme com uma moral, Lars
Von Trier, ao fim, mata o senhor falastrão assexuado, o “inocente”, nos dando a ver que caber na medida
da própria razão não é, e nunca será, o destino dos falantes.