sexta-feira, 16 de maio de 2014

faca cega

havia gargalhadas, tilintares, um bocejo
havia Lucio despedindo-se dos entes
ia para longe, nunca mais se soube dele
a pele morena de Lucio contra aquela faca cega
era de morrer de amor
mas havia um corpo exposto sobre a mesa
e milhares de olhos nadando sobre ele
havia a marca de um molar
rente ao meu pescoço
eu já não entendia o que era sono
e o que era aquele efeito de subitamente se ver de fora
era eu de pé, aquela mulher loira, o contador
e, como se não soubéssemos que iria amanhecer
violentamente,
nos apalpávamos com uma alegria furiosa
quem propôs a roleta russa não fui eu
foi alguém com os pulsos mais delgados
naquela hora eu tive tanto medo que achei que ia quebrar em dois
mas não foi pior que aquela noite de verão
não foi pior que desmoronar em pleno ataque
que perder o equilíbrio rente àqueles olhos
que tremer e apertar o gatilho contra o peito errado
aquela hora não foi pior
que queimar a língua
que perder o sono numa madrugada pesada de tanto silêncio
que estar viva numa madrugada  toda feita de silêncio
não foi pior
porque logo houve algo como uma dança
uma mão que agarrou meus braços
um vermelho tingindo os meus pés
a hora de partir
havia a lembrança de uma ternura extrema
de um sufoco tão total
havia eu escapando na hora exata
fugindo pelos corredores
descendo por um elevador
ganhando um texto pronto em plena madrugada
um crime sem culpados em plena madrugada
eu imaginando se Lucio teria se arrepiado
com a minha pele
antes de partir
em plena madrugada
agora havia apenas meu peito ofegante
o pulso aberto
a sensação que quase morte
é coisa de carne viva

segunda-feira, 12 de maio de 2014



A dança ou A anatomia dos Anjos

para Holbein Menezes

Há uma outra versão que diz que quando ele chega ao céu os anjos dançam. Incontáveis querubins andróginos o saúdam com um baile de samba de gafieira. Entre zig-zags, malandragens, inversões, travadas, abraços e enroscos, os anjos riem. Ele fica de canto, só olhando, os pequenos pés afundando as nuvens fofas. De vez em quando um querubim tropeça e é a maior troça. Aos anjos só é permitido fazer festa quando uma alma alegre é acolhida. Suas grandes asas atrapalham um pouco a movimentação, mas também criam uma impensada forma de erotismo. As penas roçam os olhos angelicais, acariciam seus braços, por vezes se prendem por um instante entre suas pernas. Quando dançam, os anjos elaboram seu complicadíssimo sexo. Feito de purezas dilatadas e perversas conjunturas de cócegas e ânsias.  Quando acontece esse baile é possível que na terra chova, ou que ventanias exageradas varram as ruas e os campos nus. O tremor dos anjos bailarinos afeta a terra sobremaneira, por isso  é sabido no céu que alegria é a força mais perigosa que há.                                 
A anatomia dos anjos é uma coisa interessante. Uma espécie de maquinaria, um labirinto de carne e voo. Quando ele chegou ao baile, se impressionou primeiro foi com aqueles corpos. Diferente do que se pensa, os anjos não são menos carnais que os humanos. São apenas corpos densos que o Misterioso dotou com longas asas. Pura humanidade alada. Não são perfeitamente belos e santos, talvez um pouco pálidos e entediados, isso sim. Uma anja que já tinha cansado de dança chegou perto dele e lhe deu boas-vindas:

- O céu dança sua vida. Esteja em casa.

Olhou bem para a anja e viu que parecia uma mulher do norte, uma cabocla, mistura de negra com índia, de lábios grossos, cabelo escuro e olhos puxadinhos. Suas asas não eram perfeitamente brancas, tendiam mais para um ocre sutil. Outros anjos tinham as asas cor de chumbo; essas, em sua opinião, as mais garbosas. A anja-cabocla lhe olhava com certo interesse amedrontado, um ar de dissimulação. Quando conseguiu falar, perguntou:

- Mas o que é isso, afinal?

- Esse é o céu em festa. Sempre que sobe até nós uma alma verdadeiramente alegre, temos permissão do Misterioso para dançarmos e ouvirmos músicas populares. Lá pelo quinto dia, também poderemos beber vinho. Sim, porque a festa dura vinte dias e vinte noites terrestres. O Misterioso fica meio contrariado, porque diz que o vinho bebido assim para a festa, e não na sagrada comunhão, é homenagem aos deuses antigos, é Bacanal, entende? Mas trato é trato. Nós sustentamos as arquiteturas celestes, vigiamos o obscuro e a claridade do humano, levamos mensagens para o mundo inferior, passamos dias meditando diante de claridades, assistimos ao balé do Espírito que insiste em tremular sobre as águas por um velho hábito. Em troca de tudo, podemos fazer festas quando uma alma verdadeiramente alegre vem até nós. É a Lei.

Ele estava estarrecido. Um pouco com aquela história toda, com aqueles tratos, com o fato de ser ele a alma alegre. Mas, sobretudo, porque a anja-cabocla era uma perdição. Como podia uma anja ser assim tão sensual? Os lábios carnudos, o sotaque do norte, um hálito de cajá. Havia muitas coisas que, aquela altura, desejava saber, uma delas era se lhe seria permitido flertar com aquela anja, ou mesmo chegar a toca-la. Ali, era preciso reaprender tudo, até a arte do cortejar.

- Escuta, como é o teu nome ?

- É Lidiane.

- Ô Lidiane, não tá parecendo que essa festa é para mim não. Eu não estou entendendo nada, será que alguém pode me explicar alguma coisa ?

- Você sabe dançar ?

Não sabia. Mas notou que ali, sobre as nuvens, seus pés adquiriam uma sabedoria própria. A gafieira foi substituída por um  Fox Trot, percebeu que conseguia dar incríveis giros, viradas e twists. Dançou por muitas horas, parando apenas quando passava um avião muito perto da nuvem onde estava. Os anjos estavam acostumados, mas ele levava um enorme susto cada vez que isso acontecia. Quando anoiteceu, começaram a dançar um forró arrasta-pé e os ânimos se exaltaram. Sentiu que era hora de buscar alguma explicação. Notou que  um anjo bastante andrógino observava tudo de canto. Magro, negro, alto, cabelos cheios, começando a virar um black power  e traços bastante delicados, deixando em dúvida o gênero da criatura em questão. Decidiu puxar assunto.

-  Oi, você também não dança forró?

 - Na verdade danço muito bem, eu queria mesmo era falar com você.

Tinha a voz aguda e aveludada, mas ainda poderia apostar que era um rapaz. Sua pele era belíssima e reluzia sob a noite estrelada. Tinha olhos que cintilavam, como quem olha para algo perigoso. Sua asas eram alvas, usava uma camiseta preta de algodão e calças justas também pretas. Seus sapatos pareciam pantufas, só que mais modernas. O anjo continuou:

- Eu vi você dançando. É de fato uma alma alegre. Apenas os alegres conseguem dançar em meio à incompreensão.

- Mas eu não gosto de não entender. Você pode me explicar como é o céu? Por que eu estou aqui e como será minha estadia?

- Olhe, aos anjos é vedada a possibilidade de dizer verdades. Segundo as Misteriosas Leis, dizer verdades é um dos pecados capitais, nos  arremessaria direto ao submundo, para que ardêssemos, corpo e asa, na caldeira dos Contadores de Verdade.

- Mas então, terei que ficar aqui sem nada saber?

- O Misterioso, porém, tem misericórdia. Deixa que nos comuniquemos com o que há de mais puro no ser: o corpo.

Por essa ele não esperava. Não parecia do caráter de Deus considerar o corpo superior às verdades metafísicas, aquilo o surpreendia verdadeiramente. Mas ainda não entendia como faria para obter qualquer informação. Estava cansado, com fome, queria um pouco de privacidade e, além de tudo, começava a sentir os sinais de uma enxaqueca terrível.

- Mas, então, como você se comunica pelo corpo?

- Você pode tocar em mim, cada parte do meu corpo, e do seu também, tem um pensamento. Está nos Secretos Escritos que o ser humano se engana muito acreditando ser a cabeça o centro da razão. A razão é elétrica, sanguínea, corre na pele. Basta que você toque na parte do meu corpo que quiser que verá o que meu corpo pensa e sabe.

Aquilo mais parecia roteiro de pornochanchada. Um argumento metafísico, até sublime, mas que só pode funcionar com algum tipo de sacanagem. Sentia que aqueles anjos estavam tirando uma com a cara dele. Mas o anjo estendeu sua bela mão e, sem pensar muito, ele o tocou.  Foi como se seu corpo fosse tragado para dentro de uma esfera luminosa. Primeiro só conseguia enxergar a luz, aos poucos sua visão foi voltando ao normal. Quando pode olhar, viu que estava em outra nuvem, esta isolada e silenciosa. Olhava para baixo e, estranhamente, podia ver tanto à distância, como de perto, dependendo apenas do seu desejo de ver. De repente, soube. 

Entendeu a fragilidade dos mistérios além-vida. Como se levasse um choque, ele recebeu um lampejo revelador: os anjos são aquilo que querem ser. Em verdade, os anjos eram apenas homens e mulheres que acreditavam, em vida, que quando morressem virariam anjos. O Mistério, de fato, era a fé. Dependia da criatividade de cada mente fervorosa o seu destino na Eternidade. Mas “fé” ainda não era a palavra certa, mais do que crer, era preciso desejar. Os anjos eram aqueles que desejavam sê-lo.  Então a Lei secreta que rege o universo era o desejo. Daí uma certa androginia na maioria dos corpos angelicais, fruto desse desejo bruto que transborda o gênero como é entendido na Terra. Os Anjos, acima de tudo, eram os que desejavam para muito além do corpo. Queriam ser meio macho, meio fêmea. Queriam o dom impensado do vôo. Queriam a carne em brasa toda suspensa em penas. Queriam ser a própria medida do impossível.                                                                                      

Com outro choque, soube então porque não lhe coube esse destino: nunca em vida havia desejado ser anjo após a morte, bem pelo contrário, se sentia muito mais tentado a dar uma olhada no que se passada no submundo, nas obscuras e fervorosas câmeras do Outro.  Então, com a sensação de um súbito arremesso, viu-se em uma nuvem muito alta, de onde já não podia saber mais nada da Terra. Soube que estava muito perto do limite onde se pode chegar sem se queimar no Sol. Soube que estava só. Ali, o esclarecimento que havia obtido lhe parecia uma triste notícia. Se os homens viviam, após a morte, aquilo que em vida desejavam viver, por que é que ele estava ali naquele céu banal repleto de clichês? Nunquinha que em vida tinha desejado isso para si. Então, como se um soco no estômago lhe tirasse o fôlego, veio-lhe a resposta: o texto.              

Era de conhecimento do Misterioso, esse grande amante das letras, que ele havia deixado por escrito um longa descrição de como seria sua experiência no Além. Havia descrito, em um belo texto, longos acontecimentos em um céu como aquele: feito de nuvens, anjos e a notícia de um Deus ausente. Seus anjos eram burocratas falastrões que, por ora, apenas dançavam. Estava tudo planejado para que, em seguida, tivesse a oportunidade de viver o céu assim como ele havia desejado, a ponto de tê-lo criado por escrito. Sentiu então o fervor da raiva subindo-lhe pelo corpo: eles não haviam entendido nada!            

Acontece que seu desejo não era pelo céu, mas pelo texto! Seu texto, por sua vez, não era confissão de um desejo escuso, nem atestado de nenhuma fé. O sentido do texto se fazia na escritura e só texto poderia revelar o seu próprio mistério, quem o escreve pouco sabe sobre ele. O escritor só sabe de uma coisa: do irresistível chamado da escrita. Seus temas, seus argumentos, suas aporias nada mais são que vias  por onde percorrer para frequentar o texto.  Esse sim, seu verdadeiro interesse.                                                                                   

Quando voltou à nuvem, o anjo estava com os olhos arregalados pois havia compreendido que o Misterioso – pasmem – tinha cometido um engano. Não era aquele, pois, o destino-desejo daquele homem.  O anjo silenciosamente recolheu sua mão e pediu que ele o seguisse. Andaram na direção de uma pequena torre de pedras que, até então, não havia notado. Dentro dela, havia uma escada em formato caracol, que descia rumo a uma escuridão indevassável. O anjo disse:

- É preciso corrigir um engano. Seu destino é outro. Esse você encontrará quando descer por essas escadas.

Ele sentiu um novo  ânimo lhe afetar o corpo, mas também um certo medo. O que encontraria ali? O anjo continuou:

- Aqui é o paraíso dos escritores: a biblioteca. Nunca soube como é de fato, pois não é o meu. Olha, a verdade é que todos vamos ao paraíso depois da vida. Não importa se o sujeito deseja o inferno e vai para lá, pois em verdade aquele inferno é a sua delícia, seu ardor. Houve um erro, digamos, de interpretação de texto.  O Misterioso, através dos meus olhos, deu-se conta disso agora quando você acessou os Mistérios. Seu desejo não era o céu como escreveu, mas o próprio escrever. E é por isso que você vai ser transferido. Mas saiba que você conseguiu aquilo que talvez todos os escritores desejam: você confundiu a ordem perfeita do Mistério. Agora descerá em direção aos Mistérios da Biblioteca. Boa viagem.

Enquanto ia descendo as estreitas escadarias, sentiu um fervor de orgulho animando o peito: conseguira, trapaceara o próprio Deus. Sempre tinha tido admiração por João Grilo, esse astuto enganador, e agora havia superado mesmo a mais brilhante de suas façanhas. E não sabia bem como, só sabia que tinha sido assim. Antes de mergulhar no obscuro e encontrar seu definitivo e correto Paraíso, pode ouvir a Misteriosa Gargalhada. Deus ria de seu próprio engano. Quanto a ele, estava orgulhoso e animado, mas lamentara uma única coisa: não poder mais dançar com Lidiane. Ô Anja deliciosa!