sexta-feira, 17 de agosto de 2012
Diante da tua face escura
(roteiro para um filme preto e branco)
- O mar ao fundo, um de frente para o outro.
Ele enche a boca dela de conchas do mar, até o limite.
O corpo dela é um pouco transparente, há um sol dentro do seu peito.
Ela entrega um pequeno cavalo-marinho para ele. Quando ele fecha mão, faz um barulho agudo como de uma gaivota.
- Em uma cama
Ela está bem no centro na cama. Às vezes seu corpo vira um aglomerado de plantas, que se espalham até chão.
Ele pega o cavalo-marinho, coloca diante dos olhos dela. Depois ele o mastiga e engole. Muito barulho de gaivotas.
Ele a coloca ajoelhada no chão. Nos braços dela, entrelaçados às suas costas, está escrito: Há um segredo esquecido nas coisas.
Na barriga dele está escrito: Não há alegria no perdão.
O peito dela está todo revestido de pequenas plantas afiadas.
Ele tira, um a um, os espinhos de seu peito.
- Cena na praia
Dentro do mar, ela o afoga, com precisão e sutileza, forçando a cabeça dele dentro da água. Cada vez que a cabeça dele está imersa, toca uma música muito alta (podem ser trechos de Der Ring des Nibelugen de Wagner).
Na areia, há um pássaro morto sobre o sexo dela, ele beija e acaricia o pássaro.
Pequenos galhos saem dos olhos dela. Ela sorri por um minuto inteiro.
Ela entrega dentes de criança para ele. Ele os coloca sobre a própria língua.
Ela tenta levantar, ele a empurra pro chão, como uma dança. Toda vez que ela cai, a câmera fecha numa parte diferente do corpo dela: boca, olhos, nariz, mãos, testa e pés.
- Cena na cama
Muitos peixes sobre o lençol. Eles se se tocam.
- Cena na praia
Ele coloca pérolas falsas, de vários tamanhos, em reentrâncias do corpo dela. Ela fica deitada, equilibrando pérolas, enquanto, no horizonte, vê-se o corpo dele indo embora até sumir.
sábado, 11 de agosto de 2012
domingo, 5 de agosto de 2012
Natureza Faminta*
Priscilla
Menezes
Somente
os selvagens olhos das feras me verão. (Mário C. Rasec)
Jarina Menezes derramava o
incontido do gesto na superfície da folha e contornava o acaso com seu
bico-de-pena, que era como a navalha afiada de quem dá à luz a forma viva. Feito criança, criava castelos de areia à
beira do mar, emprestava do informe a fundação de seus elaborados edifícios.
Sujava-se de terra e água, ungia-se do orgânico para conceber seus desenhos,
descia ao mais antigo da Terra, desvelava o mais fundo do corpo. Jarina Menezes refazia o gesto do oráculo,
aquele que busca o conhecimento nas vísceras, na borra, na revelação embriagada:
fazia do caos uma gramática, do inominável uma afirmativa, do acidente uma
liturgia. Seu método ao desenhar consistia em criar manchas de maneira
impremeditada com uma aquarela muito líquida, a ecoline, contorna-las e
preenche-las com hachuras minuciosas. Quando começava cada desenho, não tinha
conhecimento acerca de sua forma final. Empenhava-se, assim, no desvendamento
de sua criação; revelando em cada um de seus desenhos mais um pouco do que
ainda não conhecia.
Penso em pelo menos dois
movimentos lampejantes presentes no ato criativo de Jarina: o da revelação e o
do milagre. O lampejo revelador se aproxima de uma ideia mística de interação
com o mistério, místico seria aquele que se coloca em um estado extremo – o da
ascese, da embriaguez, do claustro – e, a partir da experiência intensa, recebe
uma revelação advinda de algum lugar desconhecido. Penso, sobretudo, na
revelação como um gesto da pitonisa grega – a mulher oráculo que fornecia
previsões herméticas a quem as procurava. Um aparente paradoxo nelas se
apresenta: o aspecto embriagado da revelação. Se para um paradigma científico a
revelação parte de uma pesquisa neutra e despojada de subjetividade, a
revelação mística – ou poética – tem mais a ver com um flerte com a loucura,
uma dança sobre a corda bamba. Trata-se da revelação quando é magia, acrobacia,
truque. Esta imagem me atinge quando penso
nos desenhos de Jarina através da ideia que faço de sua fatura: Jarina Menezes
debruçada sobre machas, traçando durante longas horas, sem premeditar. Como não
pensar no asceta, no místico rezando um rosário até o transe, na pitonisa
balançando-se para frente e para trás até ser atingida pela palavra revelatória? Que alegria perigosa pensar nessa
revelação que não tem a ver com a certeza, nem com o justo, ou o nítido.
O lampejo miraculoso me ocorre como ocorreu à Simone Weil a
noção de graça. Todos os movimentos
naturais da alma são regidos por leis análogas às da gravidade material.
Somente a graça constitui exceção. Devemos sempre esperar que as coisas se
passem conforme a gravidade, salvo a intervenção do sobrenatural, afirmou
Weil. Só a graça transforma o aspecto determinado das coisas: se todos os corpos
tendem ao chão, por uma lei natural, a graça é que leva ao alto, ao inverso da
determinação. Também penso neste aspecto intempestivo da imagem miraculosa, que
não advém de encadeamentos causais e assombra pela sua injustificação. Há uma
lógica secreta que permeia a fisiologia dos seres desenhados por Jarina, uma
taxinomia miraculosa de corpos absurdos. O milagre, em certo sentido, é o
impossível que se deixa existir. Os desenhos de Jarina abrigam esse lampejo do
miraculoso, daquilo que irrompe sem se explicar.
O lampejo revelador passa pela ideia
da criação que atravessa o ser criador por um golpe misterioso. O milagre tem a
ver com o movimento de aparição da coisa criada, essa coisa espantada e estrangeira
no mundo que é a obra de arte. Busco
tocar nessas duas imagens para falar sobre esta natureza faminta, pois ambas se relacionam com um certo excesso ou
desvio na ordem natural das coisas. Tratam-se do inexplicável, do assombro. É
esse aspecto do natural que pressinto nos desenhos de Jarina: a natureza quando
não é pureza, economia, homeostase, mas apetite
- pulsão transformadora - paisagem de espantos, solo dos desvios. Este
território impreciso, confuso, borrado no qual o mais natural, o mais visceral,
o verdadeiro – revelador - pode ser o forjado, o artificial. Essa intimidade
fingida, esse excesso vital. Em um de seus escritos, Jarina afirmou: acho que crio para fazer catarse, mas não
dos pecados cometidos e sim dos inventados.
Não desconheço as familiaridades
possíveis de serem traçadas entre a obra de Jarina Menezes e outros artistas da
História da Arte. Quando falo de irrompimento e aparição, não estou propondo
que seu imaginário seja descontaminado de influências – Jarina apontava Joan
Miró e Hans Belmer como grandes inspirações, além de sua vida pessoal, seus
filhos, os galhos, as raízes, os animais, as mulheres e o céu do Massapê
(cidade cearense onde nasceu). A intempestividade se trata de um efeito da imagem, um artifício da forma
que se apresenta assombrosa mesmo no cerne de sua repetição. Não importa se o milagre é sagrado, se a
revelação é comprovável, importa a obra como coisa revelada, nascida,
assombrosa.
Entre flores, frutos,
brocados, esqueletos, arabescos, Jarina criava sua ecologia de artifícios, sua
natureza inquieta, que não cessa de produzir-se outra. Lidava com a certeza
medieval de que a vida é trânsito, mas, ao contrário de
um pintor de vanitas, que alerta para
o perigo da provisoriedade das coisas,
Jarina celebrava o milagre do orgânico, festejava a vocação dos corpos para o florescimento
e a dissolução. Entre vôos e desmaios, os seres que criou dançam, se habitam,
se confundem uns nos outros, se constituem de identidades mutáveis, feitas
devorações e contágios.
Além do aspecto mágico e
intempestivo presente nos desenhos da artista, há a força de uma ancestralidade
que se revela. Às vezes penso que os desenhos de Jarina podem ser tanto
miragens de um mundo lisérgico, quando mapas de uma antiguidade fundadora e
imemorial. A esta face rochosa, lítica,
telúrica da obra de Jarina relaciono a ideia da natureza como o domínio de Pã,
uma natureza pânica. Este antigo deus – metade homem, metade bode -guardião da
Arcádia vigiava seus bosques e assustava seus visitantes, causando-lhes pânico. Há um aspecto monstruoso
explícito nos desenhos de Jarina Menezes, que sempre se disse interessada em um
primitivismo da forma. Quando olhamos seus bichos-gente,
monstros-bicho, árvores-pássaro -como
ela os nomeava – nos deparamos com esse primitivo assustador, essa
natureza dos sustos que desvia da noção
de generosidade, fertilidade, adaptação, e aponta para os domínios obscuros,
misteriosos, inexplicáveis da forma orgânica.
Lacan pergunta: será
que se um pássaro pintasse não seria deixando cair suas penas, uma serpente
suas escamas, uma árvore se desfolhar e fazer chover suas folhas? Jarina
Menezes responde que todo trabalho pictórico é trabalho de superfícies, propõe
a artificialização como uma forma de integração. Seus seres rugosos são feitos
de pedra ou de fibra, mas não de sangue, de interioridade. Os seus desenhos são
superfícies atormentadas que revestem corpos instáveis. A pena, a escama e a
folha são a pintura do orgânico proposta na formulação de Lacan. As peles,
esses tecidos de vocação para a renovação, a abertura e a regeneração são o
traço do orgânico nos desenhos de Jarina.
Se Nietzsche
reivindica uma escritura feita de sangue, Jarina propõe um desenho feito de pele.
Curioso território do corpo, esse limite, essa veladura velada, essa nudez que
reveste. Ponto limítrofe que suspira e dói. Esse lugar do corpo que oferecemos,
maquiamos, perfumamos e vestimos. Seria a pele campo onde instinto e moral se
tocam, onde orgânico e artifício convivem? E ainda, talvez por isso mesmo, campo
de batalha e de deleite?
Escrevo sobre imagens e lampejos que me atingem agora quando penso nesta noção, para mim também misteriosa, de natureza faminta que premeditei nos desenho de Jarina. Quando este nome me ocorreu, pesquisei a existência de outras obras com essa mesma nomenclatura e por uma boa sorte, ou inexplicado acaso, encontrei a dupla de palavras em um verso de um lindo poema de João Cabral de Melo Neto, Estudos para uma bailadora andaluza. Reproduzo um trecho abaixo:
Todos os gestos do fogo /que então possui dir-se-ia: /gestos das folhas do fogo, /de seu cabelo, sua língua; /gestos do corpo do fogo, /de sua carne em agonia, /carne de fogo, só nervos, /carne toda em carne viva. / Então, o caráter do fogo /nela também se adivinha: /mesmo gosto dos extremos, /de natureza faminta, /gosto de chegar ao fim /do que dele se aproxima, /gosto de chegar-se ao fim, / de atingir a própria cinza. /Porém a imagem do fogo /é num ponto desmentida: /que o fogo não é capaz /como ela é, nas siguiriyas, /de arrancar-se de si mesmo / numa primeira faísca, /nessa que, quando ela quer, /vem e acende-a fibra a fibra, /que somente ela é capaz /de acender-se estando fria, /de incendiar-se com nada, / de incendiar-se sozinha.
Escrevo sobre imagens e lampejos que me atingem agora quando penso nesta noção, para mim também misteriosa, de natureza faminta que premeditei nos desenho de Jarina. Quando este nome me ocorreu, pesquisei a existência de outras obras com essa mesma nomenclatura e por uma boa sorte, ou inexplicado acaso, encontrei a dupla de palavras em um verso de um lindo poema de João Cabral de Melo Neto, Estudos para uma bailadora andaluza. Reproduzo um trecho abaixo:
Todos os gestos do fogo /que então possui dir-se-ia: /gestos das folhas do fogo, /de seu cabelo, sua língua; /gestos do corpo do fogo, /de sua carne em agonia, /carne de fogo, só nervos, /carne toda em carne viva. / Então, o caráter do fogo /nela também se adivinha: /mesmo gosto dos extremos, /de natureza faminta, /gosto de chegar ao fim /do que dele se aproxima, /gosto de chegar-se ao fim, / de atingir a própria cinza. /Porém a imagem do fogo /é num ponto desmentida: /que o fogo não é capaz /como ela é, nas siguiriyas, /de arrancar-se de si mesmo / numa primeira faísca, /nessa que, quando ela quer, /vem e acende-a fibra a fibra, /que somente ela é capaz /de acender-se estando fria, /de incendiar-se com nada, / de incendiar-se sozinha.
Penso
que a forma de Jarina Menezes também dança, aparece – lampejo –e promete
profundidades, feito pele, revelando-se prolixa, barroca, guardando-se
misteriosa, inacessível. Guarda a vocação
de produzir esse conjunto de imagens-faísca, inventora de uma natureza faminta
da forma, de apetites inquietos e renovados, de generosidades e privações, de eloquência
e profundo mistério.
Bibliografia consultada:
WEIL, Simone. A Gravidade e a Graça. SP: Martins Fontes, 1993.
LACAN, Jacques. Escritos. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra.Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
NETO, João Cabral de Melo. Estudos para uma bailadora andaluza in Quaderna, 1960.
*texto publicado no Catálogo Memorial Meyer Filho 2011. Organizado por Kamilla Nunes e publicado através do Instituto Meyer Filho no ano de 2012.
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
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