Ao que não olhei
Foi porque pensava em pés que criam escritura
no gesto e no ato de tocar o chão
pensava em olhos dançarinos
que se curam no corpo a corpo
com o espaço
foi porque pensava em corpos que brincam com o perigo que eu não pude te olhar
porque não choravas nem gemias que
evitei teu rosto
porque envolveste tua dor em um plástico
preto e grosso
como esses de esconder os mortos
senti que era minha obrigação mais
urgente sentar do teu lado
lavar teu corpo com meu suor e minha
saliva
te dar pão, calor, morfina
te perfumar
e sobretudo olhar diretamente a tua carne
teus músculos, teus ligamentos
nascer na tua ferida, me recriar
depois te dar meus braços
para que tu também pudesses escolher provir de mim
era meu destino irresistível sujar minha
pele
minha roupa limpa ainda quente do sol
nas manchas do teu corpo
e mergulhar eu mesma no teu reino-chão
mas não pude porque pensava em corpos
leves
nas correntes de ar que enfrentavam os meus olhos
porque tive medo do inferno escuro da
tua esquina úmida
ou foi só porque eu pensava em corpos leves
que olhei teus pés
e tua ferida era minha ferida
e teus pés doentes, meus pés doentes
tua cachaça, minha morfina
teu cão imundo, o corpo do meu amante por
quem morro
porque tua cama era meu inferno que não
te olhei nos olhos
porque teu rosto calmo e silencioso e
teus pés em carne viva
eram meus pés querendo a intensidade de todos os riscos
teus olhos seriam o escuro do abismo
que meus pés hesitantes bordejam
e teus pés abertos eram o pleno e bruto
e teus pés abertos eram o pleno e bruto
encontro com o chão
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