" Começo
a vislumbrar um sentido nesta sentença misteriosa: “Não resistais ao mal”.
As
fogueiras arderam em bruxas e feiticeiras. De certo modo acertaram. Não é um
macho o demônio, olhos e riso dele são mulher, um travestido, o pai da mentira.
A virgem-demônio, não. Sinto a
misericórdia dele sobre mim, sua santidade, seu perpétuo socorro. Eu sou o
anticristo, o homem sem pênis contra o céu. Quero excentrar-me, descansar como
quando o Teo me beijou e não havia como separar em mim o que era corpo do que
era alma. Disse quero excentrar-me, poderia ter dito valendo o mesmo: quero
centrar-me.
Deus
é inconsciente. A consciência d’Ele sou eu.
Depois
que todos dormissem, o Adalberto da Têxtil viria arranhar feito um gato a
janela do meu quarto e eu iria abrir só um pouquinho e ele falaria coisas
comigo e proporia outras, com uma voz irreproduzível, de tanto desejo, e eu
iria negar-me como Santa Maria Goretti. Ele me tocaria de leve, demoradamente,
ou forte e rápido, numa mistura de perversão e respeito. Sairia noite afora,
suspirando por mim, e eu passaria a noite em claro, suspirando por ele.
O
que me fada é a poesia. Alguém já chamou Deus por este nome? Pois chamo eu que
não sou hierática nem profética e temo descobrir a via alucinante: o modo
poético de salvação.
A guerra é feia, porém charmosa, e é aí que me estrepo,
tomada de aflição por gostar de uma coisa pela qual não sinto o menor amor.
Pai que estais no céu e dentro do meu coração, inclinai
Vossos ouvidos para o meu sofrimento e tende misericórdia de mim que tenho casa
de cimento e vidro e não posso dormir no campo sob um manto de estrelas. Coisa
dolorosa feita de barro e poeira, o homem no seu quarto, de noite, pelejando
para escrever no papel, com lápis, nó e tropeço a dor do seu peito. É que nada
apazigua, Deus me deixa sofrer.
Amar sem fazer jejum. Ter licença de abrir o coração pra
quem eu quiser. Abrir o coração, bem explicado: amar sem jejum de sentimento.
Isto implica o esforço natural e necessário de conseguir e manter o amor: um
decotezinho mais brejeiro, batom Anaconda de brilho, um puxadinho de nada a
lápis de crayon no cantinho dos olhos,
fazer aquela cara que eu sei fazer, pondo minha alma todinha num certo modo de
baixar e levantar os olhos, primeiro oblíquo e depois direito.
Você, que me escuta e tem o coração maldoso, ri pra
dentro pensando que sou fácil. Não sou. Eu sou muito pedregosa, caçadeira de
chifre na cabeça de cavalo, caçadeira de indaca. Em vez de casar e cuidar dos
filhos, pôr espinafre moído na sopa deles pra eles ficarem fortes, pregar com
linha dupla os botões na camisa do meu homem, eu fico teologando em latim, fico
querendo um Romeu constantemente na minha janela, falando e tocando violão pra
mim como se eu fosse a única mulher desta terra e a mais bonita, sem a qual
homem algum pode viver.
Eu, querido pai, quero um vestido feito com as águas do
mar e os peixinhos nadando, quero um vestido de noite com as estrelas e a lua,
um vestido tão belíssimo que choro choro e choro porque o vestido existe e eu
não tenho ele. Ou este, ou um vestido de saco de farinha de trigo.
Gosto de ir até o fundo da cisterna e revirar o lodo,
tirar ele com a mão, me emporcalhar bastante, só pra depois ver a água minando
clarinha de novo. Gosto da cesta sobre a mesa com mamões e bananas, gosto de
lavar o filtro todo sábado, encher as talhas com água nova, gosto. Gosto, mas
exaspero-me esquecida dos dons, e parto, como hoje, o pão, sem reparti-lo. É
verdade que sou uma mulher inscrita no seu ciclo. Mas já dura demais. Quero é
neste dia mesmo, prenhe do meu mênstruo não vazado, escutar dos meus: esta é
minha mãe, não vá agora, minha mulher vai fazer um café.
Envelheço feio, diferente de companheira minha a quem
admiro e invejo. Ela, quando é o caso, telefona desmarcando devido a estar com
os dentes na oficina e vai tranquila fazer tricô, enquanto espera, digna esposa
e mãe, breve futura sogra e avó. Eu não, vez em quando perco a capacidade de
figurar exato minha imagem e cometo as sandices: corto o cabelinho, depois me
dá vontade de amarrar o cabelinho, cadê o cabelinho pra amarrar? Não falta quem me dê conselho, minha
irmã bem me avisou: não faz permanente, Gerontília, você não vai aguentar
permanente e fossa. Pois fui e fiz e enfossei e lancei olhar de amor pra arma
de fogo e faca, num ódio dos meus cachos mecânicos.
Dor é vontade de
ser.
Queria os medos
antigos, de eletricidade, de cobra, de defunto, não os de agora, sem eira nem
beira.
Como eu ia
dizendo, homem é fraco e mulher é forte, fortíssima. Move os dedos do pé, ele
diz: meu amor. Move os lábios, ele diz: casa comigo. Move o que está fadado a
mover-se, ele diz: pede o que quiseres. Se a gente for doida, pede a cabeça de
São João Batista numa bandeja de prata. Se for santa, não pede nada e vai
transformando o mundo devagarinho, passando trator, destocando, arando,
semeando. Depois haja celeiro, haja lugar pra tanta flor e fruto. Mesmo se
nunca mais eu escrever um verso, como eu desejo com todas as minhas forças, eu
vou morrer satisfeita. Meu corpo parece um terreno – eu, quero dizer.
Américo, eu te
amo, Américo. Você tem uma loja de tecidos e uma mulher que você vive querendo
não enganar, um filho tão bonitinho, Américo, as mãos macias de medir tecido,
de apalpar meu pescoço com intenções de quem vai assassinar. Você é um colosso,
Américo, tem tudo pra me agradar. Sua inteligência sem escolas é tão ignorante
que eu me arrepio dos seus mundos novos.
Antigamente, se um
homem falasse errado, descartava na hora. Hoje, não. Quero vinho de todos os
barris."
trechos de O Homem da Mão Seca, Solte os cachorros e Filandras de Adélia Prado.