terça-feira, 30 de agosto de 2011

meu deus, se eu tiver que pedir uma coisa só, me livra primeiro dessa vontade de falar de mim. depois, me faz mais pedra, mais ponta, mais sal. arranca de mim esse medo, me livra da ternura vazia, espanta a leveza de mim. ou então transforma minha solidão em pano, e me envolve, me cobre, me veste: faz do meu medo uma pele. e, se eu merecer, me dá olhos escuros, me mostra um silêncio mais fundo, me ensina outra alegria, uma que não seja tão parecida com a dor. eu queria também amar coisas mais fáceis, se for da minha sina e do meu merecimento. queria menos livros e mais janelas. um vestido com menos pano, um corpo com menos receio de ser só corpo. um corpo mais físico, entende. queria também sentir um amor mais justo, um de querer menos, de aceitar mais. me ampara também quando eu tiver medo de ser rasa, me conforta quando eu for bruta e sem jeito. me afasta de tanta perplexidade, meu deus. me faz simples, me faz chão, me faz terra. faz de mim também um lugar bom para o choro, me dá uma linha mais firme, um bordado mais limpo. e, se ainda puder, coloca mais do mundo em mim, me tira um pouco do prazer da solidão e do amor pela estranheza, me dá mais vontade de sentar à mesa, de sorrir sem felicidade, de dar as mãos por gentileza. por fim, eu peço uma vida mais limpa, mais centrada em si mesma, sem tanto medo do que não existe, sem tanta paixão pelo ar.






2007

terça-feira, 23 de agosto de 2011

(de 2008)


Hora um - Contra todas as paredes
Não disponho de nenhum sigilo, pratico catarses pela avenida intransigente. Casualidade: temo pelas horas que virão. Ainda ontem me pus de frente ao nada - as horas pesadas, meu corpo retraído, procurando evita-lo de todas as maneiras. Ele não se engana quando diz que não me entende. Não existe entendimento, há apenas o vasto e terrível reconhecimento de si. Eu o penso inteiro, mas breve caio na lucidez da sua desaparição. Faço de seu olho meu mais grave espelho, e me improviso - feia, pouca, gasta. Então eu visto vermelho, mostro que sou carne, borro os olhos com nanquim. Feito mulher rasgada, de risinho estridente e olhar de sortilégio, me mostro explícita ao mundo que não toco na busca de algum olhar, algum roçar, algum atingimento que me ponha de frente a isso que procuro todo instante: o lampejo de um encontro

Hora dois - Inunda
Quando me toca, me alegram seus impulsos. Me alegra suas mãos serem breves, sua fala ser febril. Quero o desatar de suas palavras despencando no meu corpo, recebe-lo impulso , edema, lampejo. Quero sua presença se fazendo instante, sem receio da mácula, sem cansaço do olhar. Quero permanecer, porque na demora de nossas peles nos cabemos. Sem atar, sem estancar, sem inquirir. Quero o indizível se fazendo pele. Romper o contorno, que é esforço; desabar o fora, que é mentira. Anseio por me desfazer de rouquidões, abandonar trincamentos, dissolver acúmulos. Ser inteira e lúcida, na medida do meu próprio gesto; sem que calar seja o meu esforço, sem que a espera de ti seja o maior exílio de mim.

Hora três - Em algum lugar escuro
Isolamento voluntário. Mantenho as portas lacradas, evito os espaços que me tomem. Batizo catástrofes: abandono é caminhada, perda é deslize, ferimento é abertura, ruína é distração.

Hora quatro - À beira
Distendo o dia entre o livro e a janela. Evito o instante em que te perco, sempre alongando o momento que te deixarei. Quando numa praça num quarto no abismo de um dia qualquer eu te direi meu amor eu fui tão boa meu amor eu te dei tudo mas eu errei tanto eu não sabia que amor não era oferta eu não pensava que amor fosse silêncio fosse segurar o pranto que amor maior entre nós dois seria não te conhecer pois se me agarro a teu ressoar é porque me encanto com o que se esvai sabe aquele livro que me deste meu amor as páginas que tantas vezes se tocaram agora se esgotam e o perfume que imprimiste nelas agora é só a passagem do ar amor eu preciso tanto ser deixada por que é que não me deixas meu amor eu tenho carregado essas malas há tanto tempo esperando a manhã quando irias me dizer que eu não servia mais pra cuidar da tua casa alimentar teus filhos ocupar tua cama mas olha bem o que aconteceu tu não me reparas nem quando estou prestes nem quando estou quase nem mesmo quando eu estou à beira repara meu amor eu vou embora eu não volto mais repara bem meu amor eu nunca mais vou te olhar

Hora cinco - Eu nunca mais vou te olhar
Primeira vez que lhe disse 'eu me entrego', ele ficou assustado, achando que lhe oferecia algo como a submissão interessada de quem amacia a voz e pede esmolas. Eu me entrego, eu disse, e ele ouviu 'toma conta de mim'. Quis lhe dizer que quem se entrega, se entrega por dentro, exatamente porque não aceita o controle externo a si. Mas ele ficou parado, me olhando com uns olhos pesados. Seus olhos mais escuros e mais antigos.