quinta-feira, 29 de dezembro de 2016



desenho: Amélie Fontaine

Existe aquilo que navega, aquilo que derruba muros, aquilo que cega. Com todos podemos aprender esse gesto de nada fixar, de estar à altura do que advém. Um dia estava num ônibus e vi um menino colocar a cabeça para fora e apanhar a chuva com a língua e isso tinha a forma e a força de um milagre. Mas era preciso ser um pouco criança, um pouco sede e um pouco chuva para ver. Poucas vezes eu soube distinguir o que era desvio do que era rota, mas sabia que queria pegar o mundo pelas margens, ali onde é altitude, abismo, fratura, terreno baldio. Soube que precisava me assombrar, tatear as coisas sem nome, me saber mínima e cheia de coragem. Alcançar e demolir o olhar que mais desejo. Mas não deixei nem por um instante de desejar o tremor do impossível rente ao peito e o peito em marcha. Ontem vi crianças correrem para dentro do mar à noite, fascinadas pela impossibilidade de distinguir água e horizonte, cheias de atração por essa matéria escura que tudo preenche e forma. Ontem olhei uma fera nos olhos e me camuflei no seu silêncio analfabeto feito de perigosa compreensão. Ali me desnudei e me escondi. Vi sorrirem os que seguem pela contramão, vi derrubarem o monumento para um general e plantarem uma horta no lugar. Vi quebrarem as fachadas só para mostrá-las frágeis. Vi que a revolução não será refrigerada, não será civilizada, não será letrada. A revolução é a terra, são nossos corpos sob o sol violento dançando para aplacar e atiçar o mistério, somos nós mais vivos do que nunca. Seguimos rumo ao que nada estanca, onde tudo flui impetuosamente na direção inesperada. Tão fundo que nem vejo, tão à flor da pele que mal permaneço em mim.