a chuva fina afunda a terra e eu
ouço o céu ranger
que alegria perigosa
não querer nenhum toldo
nenhuma enxuta proteção
teu corpo de milagres úmidos, sim
assim eu estaria salva: numa
quina do teu quarto
nossos pensamentos entrelaçados
como ataduras claras
tapando ferida ainda fresca
é aqui nesse ponto que perdes tua arbórea ascendência
e ganhas a consciência dos bichos
que não sabem
esse esquecimento será doravante
tua origem
aqui crias parentesco com os
nós
a terra escura, o mármore, os
novilhos
eu te transmito esse dom:
eis que não serás remédio para
nada em mim
vagarás pelo meu corpo, supérfluo
orientado pela tua própria
errância
apenas quando souberes ser
insuficiente
poderás transitar em liberdade
o que quer dizer falhando
e tua caminhada te levará ao desencontro
justo nesse ponto em que nos achamos
tua mão toca o mais fundo do meu
peito raso
e eu reajo como se esperasse uma flecha
acertar a maçã equilibrada sobre a minha
cabeça
e, com gula plena de um corpo alimentado,
mordo tua pele
arranho tua pele agora órfã
e escapo no instante em que me
entrego
feito bicho que morde a isca e se
salva
um segundo antes da armadilha
desabar
em mim, tu amas a terra, os solos
férteis e os incêndios
tens amor pelo vidro, as
prateleiras, os tapetes
amas também o meu corpo
e amando meu corpo sabes amar
alegremente a transitoriedade desse
instante
agora
pesado e flutuante como o navio e
também
traiçoeiro como o mar
subitamente, nasces
consanguíneo a tudo que ignoras
e eu juntamente
no repouso provisório do teu
peito
trincheira e escudo
improvável berço meu